A Palavra de Deus - Salmos

A PALAVRA DE DEUS, segundo Santo Agostinho, apartir do comentário aos Salmos.
A BÍBLIA SAGRADA DA DIFUSORA BÍBLICA
(Franciscanos – Capuchinhos, é a versão utilizada)
SALMO 1

COMENTÁRIO

Versículo 1: “Feliz o homem que não segue os conselhos dos ímpios” (1 a). Trata-se de Nosso Senhor Jesus Cristo, homem e Senhor. “Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios (1 a), “como o homem terreno, que consentiu na sugestão da mulher, enganada pela serpente e desobedeceu aos preceitos de Deus. “Nem se deteve nos caminhos dos pecadores” (1 b). Cristo, de facto veio pelo caminho dos pecadores, ao nascer com os pecadores, mas não se deteve, porque não o retiveram as seduções do mundo. “Nem toma parte na reunião dos libertinos” (1 c). Recusou o reinado terrestre e a soberba, pois quase não existe quem esteja isento da ambição de dominar e do desejo de glória humana. Em seguida, observamos a ordem das palavras: segue, se detém, toma parte. Segue quem de Deus se afastar; se detém quem se deleita no pecado; toma parte o obstinado na soberba, que não retrocedeu enquanto não foi libertado por quem não entrou no conselho dos ímpios, não se deteve no caminho dos pecadores.

V. 2: “Antes põe o seu enlevo na lei do Senhor e nela medita dia e noite” (2). “A lei não é destinada ao justo”, diz o Apóstolo (1 Tm 1, 9). Difere estar dentro da lei, estar sob a lei. Quem se acha dentro da lei, age conforme a lei, quem está sob a lei é coagido por ela. O primeiro é livre, o segundo é escravo. Por conseguinte, uma coisa é a lei escrita imposta ao escravo e outra, a lei aprendida pelo intelecto de quem pode dispensar a letra. “E nela medita dia e noite” sem interrupção; ou então, por “dia” entende a alegria e por “noite” as tribulações. Pois foi dito: “Abraão exultou pensando em ver o meu dia” (Jo 8, 56), e diz da tribulação: “Até durante a noite a minha consciência me adverte”. (Sl 15, 7).

V. 3: “É como a árvore plantada à beira da água corrente” (3 a), isto é, ao lado da própria sabedoria, que se dignou a assumir a natureza humana, para nossa salvação; o próprio homem seria a árvore plantada à beira das águas correntes. Pode adoptar-se esta interpretação também para a passagem de outro Salmo: “Enches, a transbordar, os rios caudalosos” (Sl 64, 10b). Talvez se refira ao Espírito Santo, conforme a palavra: “Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo” (Mt 3, 11). E ainda: “Se alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede” (Jo 7, 37). E: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: “Dá-me de beber”, tu é que lhe pedirias e Ele havia de dar-te água viva! “Quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que eu lhe der há-de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna”(Jo 4, 10. 13. 14).

Ou talvez, “à beira da água corrente”, isto é, os pecados dos povos, porque no Apocalipse (Ap 17, 15), águas significam povos. Não é absurdo entender por corrente toda uma queda, referente a delito. A árvore, a saber, nosso Senhor, “dá fruto na estação própria”, estabelecerá igrejas, formadas de águas correntes, os povos pecadores, que Ele atrai ao caminho, às raízes da Sua doutrina. “Dá fruto na estação própria” (3 c), depois de glorificado pela ressurreição e ascensão ao céu. Então Ele produziu o fruto das Igrejas, após ter enviado o Espírito Santo aos apóstolos, fortificando-lhes a confiança e destinando-os aos povos. “Sua folhagem não murcha” (3d), sua palavra não será vã, “toda a gente é como a erva e toda a sua beleza é como a flor dos campos! A erva seca e a flor murcham, mas a palavra do nosso Deus permanece eternamente” (Is 40, 6-8). “Em tudo o que faz é bem sucedido” (3 e). Tudo, fruto e folhas, isto é, obras e palavras.

V. 4: “Mas os ímpios não são assim! São como a palha que o vento leva” (4). Da superfície da terra, o vento carrega o ímpio, quer dizer a soberba que incha. Dela se precavendo, pede quem se inebriava com a abundância da casa de Deus e bebia da torrente de suas delícias: “Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos” (Sl 35, 12).

V. 5: “Por isso, os ímpios não resistirão no julgamento” (5 a) porque como a poeira serão carregados da superfície da terra. Com razão se afirma serem os soberbos privados do que ambicionaram, o poder de julgar. Torna-se isso mais compreensível na frase seguinte: “Nem os pecadores, na assembleia dos justos” (5 b). (…) Ímpios e pecadores não se identificam, porque todo o ímpio é pecador, nem todo o pecador é ímpio. “Por isso os ímpios não resistirão no julgamento” (5 a), quer dizer, ressurgirão, mas não para serem julgados, porque já estão condenados a penas bem determinadas. Os pecadores, porém não ressurgem na assembleia dos justos para julgar, mas provavelmente para serem julgados, conforme se disse a respeito deles: “sua obra ficará em evidência; o Dia do Senhor a tornará conhecida, pois ela manifesta-se pelo fogo e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obre construída resistir, o construtor receberá a recompensa; mas se a obra de alguém se queimar, perdê-la-á; ele, porém, será salvo, como se atravessasse o fogo” (1 Cor 3, 13-15).

V. 6: “O Senhor conhece o caminho dos justos” (6 a). É possível dizer que o Senhor conhece os caminhos dos justos e ignora o dos ímpios. O Senhor nada ignora; no entanto, declara aos pecadores: “Nunca vos conheci” (Mt 7, 23). Foi dito: “mas o caminho dos ímpios conduz à perdição” (6 b), como se dissesse: o Senhor não conhece o caminho dos ímpios. Mas explicitamente se diz que ser ignorado pelo Senhor é como perecer. O ser relaciona-se com a ciência de Deus, o não ser ao desconhecimento da parte dele, porque o Senhor diz: “Eu sou aquele que é”. E: “Eu Sou” enviou-me a vós! (Ex 3, 14).

SALMO 2

Versículos 1. 2: “Porque se amotinam as nações e os povos fazem planos insensatos? Revoltam-se os reis da terra e os príncipes conspiram juntos contra o Senhor e contra o seu ungido” (1.2). Porque eles não conseguiram realizar o intento de pôr termo à vida de Cristo. Trata-se dos perseguidores do Senhor, citados também nos Actos dos Apóstolos (Act 4, 26).

V. 3: “Quebremos as algemas e atiremos para longe de nós o seu jugo!” (3). Cuidemos de que a religião cristã não nos prenda nem nos seja imposta.

V. 4: “Aquele que habita nos céus sorri; o Senhor escarnece deles” (4). É repetição. Ao invés de dizer “o que habita nos céus”, da segunda vez encontra-se: “O Senhor”. Em lugar de “sorri”, temos “escarnece”. Não se tomem carnalmente essas expressões, como se Deus se risse ou zombasse. Mas, hão-de ser entendidas no sentido de força concedida por Deus a seus santos. Estes, olhando o futuro, isto é, o nome de Cristo e o seu domínio estendido aos vindouros e alcançando todas as gentes, compreendendo que aqueles tramaram em vão. Se os céus são as almas santas, por meio delas, Deus, que conhece o futuro, rir-se-á e zombará deles.

V. 5: “Depois aterroriza-os com a sua ira e com a sua cólera confunde-os” (5). Mostrando mais claramente como lhes falará, declarou: “Aterrorizá-los-á”, de modo que “sua ira” seja idêntica ao “seu furor”.

Ira e furor do Senhor não são perturbações da mente e sim força vindicativa, inteiramente justa, pois serve-O submissa toda a criação. Principalmente se considere e mantenha o que consta nos escritos de Salomão: “Mas tu, que dominas a tua força, julgas com bondade e nos governas com grande indulgência, pois podes usar o teu poder quando quiseres” (Sb 12, 18). A ira de Deus, portanto, é a comoção da alma conhecedora, conhecedora da lei de Deus, ao ver o pecador transgredir a mesma lei. Ainda é possível entender a ira de Deus como o próprio obscurecimento da mente dos transgressores da lei de Deus.

V. 6: “Fui eu que consagrei o meu rei sobre o meu monte santo de Sião!” (6). Trata-se da pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se, conforme a opinião de alguns, a palavra Sião significa contemplação, a nada mais devemos aplicá-la que à Igreja, onde quotidianamente a atenção do espírito se eleva à contemplação da glória de Deus, segundo diz o Apóstolo: “E nós todos que, com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor” (2 Cor 3, 18). O sentido é, portanto o seguinte: Eu, porém, fui por ele constituído rei, eu cujas cadeias eles pretendiam quebrar e cujo jugo queriam sacudir.

V. 7: “Vou anunciar o decreto do Senhor. Ele disse-me: “Tu és meu filho. Eu hoje te gerei” (7). Embora pareça a profecia referir-se ao dia do nascimento de Jesus, enquanto homem, no entanto, têm sentido divino as palavras: Eu hoje te gerei, pois “hoje” significa o presente e na eternidade não há passado, como se algo ainda não existisse, mas apenas no presente, porque aquilo que é eterno existe sempre. Por isso, a autêntica fé católica prega a geração eterna do poder e da sabedoria de Deus, que é Filho unigénito.

V. 8: “Pede-me e Eu te darei povos como herança” (8 a). Isto já no tempo lhe acontece, enquanto homem, que se ofereceu em sacrifício, como substituição, e que também intercede por nós. (Rm 8, 34). Assim, a palavra “pede-me” refere-se a toda a economia temporal, realizada em prol do género humano, a saber, que as nações se unam sob o nome de cristãs e, por conseguinte, sejam redimidas da morte e possuídas por Deus, e possui-las-á para a salvação delas e colherás frutos espirituais. “E os confins da terra por domínio” (8b). Repete-se com maior clareza para entendermos, todas as nações.

Vs. 9. 10: “Hás-de governá-los com ceptro de ferro” (9 a), com justiça inflexível. “E destruí-los como um vaso de barro” (9b), isto é, esmagarás as ambições terrenas, as preocupações lamacentas do velho homem. “E, agora prestai atenção, ó reis”(10 a). Agora, quer dizer, já renovados, já estrambalhados os revestimentos de barro, pertencentes à vida passada. Agora entendei. Já sois reis, capazes de reger tudo o que em vós existe de servil e animal, e aptos para a luta, mas não como quem fere o ar e sim duramente os vossos corpos e mantendo-os submissos. (1 Cor 9, 26.27). “Deixai-vos instruir, juízes da terra” (10b). Nova repetição: Instruir-vos em lugar de prestai atenção; ó juízes da terra em vez de ó reis. A expressão “juízes da terra” significa os espirituais. Tudo o que está abaixo do homem espiritual denomina-se, com razão, terra, porque atingido pela nódoa terrena.

V. 11: “Servi o Senhor com temor, prestai-lhe homenagem com tremor” (11). É possível o seguinte sentido: Agora, ó reis, prestai atenção, a saber, agora que fui constituído rei, não vos entristeçais, ó reis da terra, como se vos tivesse sido arrebatado um bem próprio. Ao contrário, prestai atenção e instruí-vos. Ser-vos-á proveitosa a sujeição àquele que vos dá entendimento e instrução. Não vos convém dominar temerariamente; mas servi ao Senhor de todos com temor, e exultai por causa da bem-aventurança segura e genuína, precavidos e bem avisados, para de lá não cairdes pela soberba.

V. 12: “Para que não se irrite e não pereçais no caminho” (12 a). Para não se irritar o Senhor foi dito condicionalmente; não quanto à visão do profeta, que é segura, mas relativamente àqueles que são admoestados; pois se costuma duvidar da ira de Deus quando não claramente revelada. Deviam eles dizer a si mesmos. Abracemos a disciplina para não se irritar o Senhor e não perecermos no caminho da justiça. Quem se desvia do caminho da justiça, há-de vagar na maior miséria pelas sendas da iniquidade. “Pois a sua ira irrompe num instante. Felizes os que Nele confiam” (12 b c), isto é, quando vier o castigo preparado para os ímpios e pecadores, não atingirá os que confiam no Senhor e ainda lhes será de grande utilidade instruindo-os e exaltando-os em vista do reino. A meu ver, “num instante” significa algo de repentino, que advirá enquanto os pecadores estiverem pensando que será remoto e em futuro longínquo.

SALMO 3

COMENTÁRIO

Versículo 1: “ Salmo de David. Quando fugia de seu filho Absalão” (1). De modo mais adequado se refere à paixão e ressurreição do Senhor do que à história de David a fugir do filho, em guerra contra ele (2 Sm 15, 13-37). Estando escrito a respeito dos discípulos de Cristo: “Porventura podem os convidados para as núpcias estar tristes enquanto o esposo está com eles?” (Mt 9, 15), não é de admirar que esse filho desnaturado represente o discípulo impiedoso que o traiu. Embora seja possível o sentido histórico relativo à fuga de Cristo da presença do traidor, quando havendo saído Judas ele se afastou com os demais para o monte, no entanto, espiritualmente, o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas e o diabo o invadiu totalmente, conforme está escrito: “O diabo já tinha metido no coração de Judas, a decisão de O entregar” (Jo 13, 2). Com razão entende-se ter Cristo fugido dele. Não quer dizer que Cristo cedeu ao diabo, mas quando Cristo se afastou, o diabo se apossou de Judas. Penso que neste Salmo seu afastamento se denomina fuga por causa da pressa com que se realizou. A palavra aparece na declaração do Senhor: “O que tens a fazer fá-lo depressa” (Jo 13, 27). O nome de Absalão, na opinião de alguns, se traduz por: paz de pai. Pode causar estranheza o significado de paz de pai, seja na história dos Reis, onde vemos Absalão guerreando contra o pai, seja na História do Novo Testamento, pois Judas traiu o Senhor. Mas, lendo com atenção, verifica-se que naquela guerra David foi pacífico em relação ao filho, cuja morte chorou com grande dor, exclamando: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Porque não morri eu em teu lugar?”. Em história do Novo Testamento, embora estivesse o traidor agitado pela luta interna de um desígnio criminoso, bem se percebe ter Nosso Senhor lhe oferecido a paz, por meio daquela admirável paciência, com a qual por tanto tempo o suportou, como se fosse homem de bem, apesar de não ignorar seus planos e quando o admitiu à ceia, onde lhe confiou e entregou aos discípulos o mistério do seu corpo e do seu sangue. Finalmente “aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: “Salve Mestre!” E beijou-O” (Mt 26, 49). Absalão é paz do pai, porque o pai possuía a paz, ele não.

VS. 2.3: “ Senhor, são tantos os meus adversários” (2 a)!. São tantos que não faltou, nem mesmo do número de discípulos, quem aumentasse o número dos perseguidores. “São tantos os que se levantam contra mim! Muitos dizem a meu respeito: “Nem Deus o poderá salvar!” (2b.3). É óbvio que não o matariam se não houvessem perdido a esperança de que ele ressuscitaria. Em tal sentido são válidas as palavras: “Se és Filho de Deus, desce da cruz!” (Mt 27, 40) e: “Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo!” (Jo 27, 42).

V. 4: “Mas Tu, Senhor, és o meu escudo protector” (4 a). Dirige-se a Deus, enquanto homem, porque o Verbo se fez carne assumindo natureza humana. “És a minha glória e que me faz levantar a cabeça” (4b). Declara também que Deus é a sua glória, aquela que o Verbo recebeu de tal modo que, com ele, se tornasse Deus. Aprendam os soberbos que não ouvem de bom grado que se lhes pergunte: “Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias como se não o tivesses recebido?” (1 Cor 4, 7). “És a minha glória e quem me faz levantar a cabeça” (4b). A meu ver cabeça é aqui o espírito humano, chamado, com justeza, cabeça da alma, a qual aderiu e se uniu a excelente supereminência do Verbo, que assumira a natureza humana, de tal sorte que não foi deposta nem diante da grande humilhação da paixão.

V. 6: “Em alta voz invoco o Senhor” (5 a). Não a voz do corpo, que se emite golpeando ruidosamente o ar, mas a do coração, silenciosa perante os homens, todavia clamorosa perante Deus. Por meio desta voz Susana foi atendida (Dn 13, 44). Com tal voz o próprio Senhor ordenou que se ore de portas fechadas, isto é, no segredo do coração, sem ruído (Mt 6, 6).

Não é exacta a afirmação de rezarmos menos quando nenhuma palavra proferimos, corporalmente, porque se rezarmos no coração calados, mas com pensamentos interpostos, alheios ao afecto do orante, ainda não podemos dizer: “Elevai ao Senhor a minha voz”. Tem direito de proferi-lo apenas a alma que, sozinha, e sem levar para a alma nada de carnal e de preocupações materiais, falar ao Senhor lá onde só Ele ouve. “E Ele responde-me da sua montanha santa” (5b). O profeta dá ao Senhor o nome de montanha, na passagem onde está escrito que a pedra deslocada, sem intervenção de mão alguma, cresceu até ao tamanho de uma montanha (Dn 2, 35).

(…) Deus o ouviu por causa da sua justiça; pois era justo que Deus ressuscitasse dos mortos o inocente, ao qual o bem fora restituído com o mal, e desse aos perseguidores a condigna paga. Lemos de facto: A tua justiça é como os montes altíssimos, Senhor” (Sl 35, 7).

V. 6: “ Deito-me, adormeço e acordo” (6 a). Pode observar-se com acerto ter sido escrito “eu” para denotar ter Ele suportado a morte voluntariamente, segundo a palavra: “É por isto que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho o poder de a oferecer e de a retomar” (Jo 10, 17-18).

Não fostes vós, disse ele, que me prendestes e matastes contra a minha vontade, mas “Deito-me, adormeço e acordo, porque o Senhor é o meu sustentáculo” (6 a b).

Inumeráveis passagens das Escrituras trazem sono ao invés de morte, segundo diz também o Apóstolo: “Irmãos, não queremos deixar-vos na ignorância a respeito daqueles que faleceram” (1 Ts 4, 13).

V. 7: “Não temo as grandes multidões que de todos os lados me cercam” (7). Consta no Evangelho ter sido grande a multidão ao redor do Senhor, padecente e crucificado (Mt 27, 39 ss). “Levanta-te, Senhor! Salva-me ó meu Deus!” (8 a). Não é a um Deus adormecido ou prostrado que se clama: “Levanta-te!”. Mas, é costume das Sagradas Escrituras atribuir a Deus aquilo que Ele faz em nós. Por exemplo, diz-se que Ele fala, quando por sua graça falam os profetas, ou os apóstolos, ou algum pregador da verdade. Daí a palavra: “Já que pretendeis ter uma prova de que Cristo fala em mim. Ele não é fraco em relação a vós, mas manifesta-se em vós o seu poder!” (2 Cor 13, 3).

V. 8: Não se considere uma frase só: “Levanta-te, Senhor! Salva-me, ó meu Deus! Bate na face dos meus inimigos” (8 a b). Não o salvou porque feriu os inimigos ; ao invés, salvou-o e depois os feriu. “Bate na face dos meus inimigos e quebra os dentes dos ímpios” (8 b c), isto é, quebrastes os dentes aos pecadores, porque feristes todos os que me hostilizam. Quer dizer, as palavras dos pecadores, que dilaceravam com injúrias o Filho de Deus, foram anuladas, reduzidas a pó. Por dentes entendemos as palavras maldizentes, ás quais se refere o Apóstolo: “Mas se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros” (Gl 5, 15).

Opostos a tais dentes são os da Igreja, por cuja autoridade os fiéis se apartam do erro dos gentios e de várias seitas e se transferem para a Igreja, Corpo de Cristo. Com estes dentes, Pedro recebeu a ordem de comer dos animais imolados (Act 10, 13). Destes dentes, a Igreja disse: “Teus dentes são um rebanho de ovelhas, a subir do banho tosquiadas: todas elas deram gémeos e nenhuma ficou sem filhos.” (Ct 4, 2).

São os que mandam com rectidão e vivem conforme o que ordenam; praticam o preceito: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras glorifiquem o vosso Pai que está no Céu” (Mt 5, 16).

Impressionados pela autoridade daqueles, por cujo intermédio Deus fala e opera, os homens acreditam; separados do século, ao qual se haviam conformado, passam a ser membros da Igreja. Com razão, esses intermediários chamam-se dentes semelhantes a ovelhas tosquiadas: largaram o peso das preocupações terrenas e subindo do lavadouro, da ablução das imundices do século, pelo sacramento do baptismo, dão à luz gémeos. Praticam, efectivamente, os dois preceitos, dos quais se afirmou: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22, 40), amando a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o espírito, e ao próximo como a si mesmos. Entre eles não existe estéril, visto produzirem tais frutos para Deus.

V. 9: “De ti, Senhor, vem a Salvação. Desça a tua bênção sobre o teu povo.” (9). Em uma só sentença mostrou aos homens o que devem crer e orar pelos fiéis; pois ao asseverar: “De ti, Senhor, vem a Salvação” (9 a), dirige-se aos homens. Se prossegue: “Desça a tua benção sobre o Teu povo” (9 b), não se refere tudo aos homens, mas se volta para o próprio Deus, em favor do povo ao qual foi afirmado: “De Ti, Senhor; vem a Salvação” (9 a). Disse, portanto, apenas o seguinte: ninguém presuma de si mesmo, porque a salvação da morte do pecado provém do Senhor; pois “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso!” (Rm 7, 24. 25).

Este salmo é ainda aplicável à pessoa de Cristo de outro modo, isto é, que fala como um todo. Todo, digo, com o Corpo do qual Ele é a Cabeça, segundo a palavra do Apóstolo: “Vós sois o Corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro.” (1 Cor 12, 27). Diz o Apóstolo em outra passagem: “Antes, testemunhando a verdade no amor, crescemos em tudo para aquele que é a Cabeça, Cristo. É a partir dele que o Corpo inteiro é bem ajustado e unido” (Ef 4, 15. 16). Falam pois, segundo o Profeta, simultaneamente a Igreja e sua Cabeça, no meio das porcelas das perseguições em todo o orbe da terra (…) “Mas, Tu, Senhor, és o meu escudo protector” (4 a), a saber, em Cristo. Pois, naquela natureza humana também a Igreja foi assumida pelo Verbo que se fez homem e veio habitar connosco (Jo 1, 14). Como Ele nos ressuscitou e nos sentou no alto do Céu, em Cristo (Ef 2, 6).

A cabeça precede, seguem-se os demais membros. “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo” (Rm 8, 35)?

(…) O povo se salvou quando a Cabeça se ergueu, Tu subiste ás alturas e levaste contigo prisioneiros, recebeste homens como tributo (Sl 67, 19). Afirma-o o Profeta, visando a predestinação, “a messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Mt 9, 37) fez descer nosso Senhor à terra. A salvação desta messe se encontra na ressurreição daquele que por nós se dignou a morrer.

Cada um de nós também pode dizer, quando a multidão dos vícios e desejos arrasta, sob a lei do pecado, a mente que resiste: “Senhor, são tantos os meus adversários! São tantos os que se levantam contra mim!” (2). Visto que, muitas vezes, devido ao cúmulo dos vícios, insinua-se a falta de esperança da cura, ou ainda agissem o diabo e seus anjos com más sugestões para desesperarmos, é bem verdade que “Muitos dizem a meu respeito: “Nem Deus o poderá salvar!”. Mas Tu, Senhor, és o meu escudo protector” (3. 4 a). A esperança reside em que o Senhor se dignou assumir a natureza humana em Cristo. “És a minha glória e quem me faz levantar a cabeça” (4b), segundo a norma de que ninguém atribua a si mesmo coisa alguma. Seja a Cabeça de todos nós, ou o espírito de cada um, que serve de Cabeça à alma e à carne. “Pois a cabeça de todo o homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem” (1 Cor 11, 3). A mente é exaltada, se lhe é já possível afirmar: “Com o espírito sirvo a lei de Deus” (Rm 7, 25), de maneira que as outras partes do homem pacificadas se submetam, e quando este corpo corruptível se tiver revestido de incorruptibilidade e este corpo mortal se tiver revestido de imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: “A morte foi tragada pela vitória”. (1 Cor 15, 54).

(…) Além das tribulações que a Igreja em geral suportou e suporta, cada qual tem as suas tentações, e quando se vê cercado por elas exclama: “Levanta-te, Senhor! Salva-me, ó meu Deus!” (8 a). (…)

Todo o homem tem os seus caluniadores e instigadores de vícios, empenhados em amputá-lo do Corpo de Cristo. Mas, “De Ti, Senhor, vem a salvação” (9 a). Precavido contra a soberba diga ele: “A minha alma está unida a ti” (Sl 62, 9). “Desça a tua benção sobre o teu povo” (9b), isto é, sobre cada um de nós.

SALMO 4

Comentário

V. 1: “É que o fim da lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja concedida a todo o que tem fé” (Rm 10, 4). É viável a pergunta se todo o cântico é salmo, ou se qualquer salmo é cântico, ou ainda se existem cânticos que não devam ser denominados salmos aos quais não convém o nome de cânticos. Mas verifica-se nas Escrituras se cânticos não indicariam alegria, enquanto salmos seriam as composições acompanhados ao Saltério. Narra a história ter David utilizado o saltério. Não seria oportuno agora dissertar sobre a questão, que exige pesquisa e longa discussão. Por enquanto vejamos este salmo como palavras do homem, Senhor, após a ressurreição, ou na Igreja, do homem que nele crê e espera.

V. 2: “Quando te invocar, escuta-me, ó Deus, minha justiça! (2 a). Ao invocá-Lo ouviu-me Deus, do qual procede a minha justiça”. “Já na angústia me libertaste” (2b). Das angústias da tristeza conduziste-me à ampliação das alegrias”. Tribulação e angústia para todo o ser humano que pratica o mal (Rm 2, 9). “Mais ainda, gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência”, até o trecho: “Porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 3-5), não sente angústia no coração embora os perseguidores a incutam de fora “Tem compaixão de mim e ouve minha oração” (2c). Porque roga novamente, se já declarou que foi ouvido e aliviado? Será por nossa causa, uma vez que foi declarado: “Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar” (Rm 8, 25), ou para que se complete no fiel o que foi começado?

V. 3: “Homens, até quando desprezareis a minha glória?” (3 a). Se ao menos só até o advento do Filho de Deus perdurasse o vosso erro. Por que depois ainda tendes o coração empedernido? Quando haveis de pôr termo ás mentiras, se mesmo na presença da verdade não o conseguis?” Porque amais a ilusão e buscais a mentira? (3b). Porque buscais a felicidade em futilidades? Só a verdade que torna verdadeiras todas as coisas, nos faz felizes. A vaidade é dos frívolos, e tudo é vaidade. Que proveito pode tirar o homem de todo o esforço que faz debaixo do Sol? (Ecl 1, 2.3). Por que vos detendes no amor ás coisas temporais? Qual o motivo de irdes atrás de coisas ínfimas, isto é, da vaidade e mentira, como se fossem o principal? Desejais que permaneçam convosco todas essas coisas que passam como sombras.

V. 4: “Sabeis que o Senhor faz maravilhas pelo seu amigo” (4 a). Qual amigo senão aquele que Deus ressuscitou da região dos mortos e colocou no Céu à sua direita? O género humano é convidado a “finalmente” se converter do amor deste mundo para o Senhor (…) Denomina-se Salmo o que é cantado, e diapsalma, a pausa na salmodia. Como Simpsalma significa a união das vozes no canto, diapsalma representaria a separação entre elas, certa pausa, interrupção.

“E há-de escutar-me quando O invocar” (4 b). Creio tratar-se de uma exortação a implorarmos o auxílio de Deus com grande ardor de coração, com clamor íntimo e espiritual. É mister congratular-nos com as luzes recebidas nesta vida; e cabe-nos suplicar o repouso depois dela. Por isso, quer se aplique ao fiel evangelizador, quer ao próprio Senhor, entenda-se: O Senhor vos ouvirá quando a Ele clamardes.

V. 5: “Tremei de medo e não pequeis mais” (5 a). Há dois modos de entender isso. Ou: Mesmo se vos irardes não pequeis, isto é, apesar de surgir a emoção, que não está em vosso poder em consequência do pecado, ao menos a razão e o espírito não consintam, eles que foram regenerados interiormente segundo Deus, de modo que pela mente sirvamos à Lei de Deus, se ainda pela carne servimos a lei do pecado (Rm 7, 26).

Ou então: Fazei penitência, isto é, irai-vos contra vós mesmos por causa dos pecados passados e doravante deixai de pecar. “Meditai nos vossos leitos, em silêncio”. (5 b). Subentende-se: Dizei-o, de sorte que a frase integral seria: O que dizeis, proferi-o em vossos corações, isto é, não sejais o povo do qual se afirmou: “Honra-me só com os lábios, pois o seu coração está longe de mim (Is 29, 13).

“Em vossos corações”. São os aposentos dentro dos quais o Senhor nos exorta a orarmos com as portas fechadas (Mt 6, 6).

V. 6: “Oferecei sacrifícios de justiça e confiai no Senhor” (6). A mesma coisa encontra-se noutro salmo: “O sacrifício agradável a Deus é o espírito contrito” (Sl 50, 19). Não é absurdo considerar sacrifício de justiça o efectuado através da penitência. Que de mais justo do que aborrecer antes os próprios pecados do que os alheios, e castigando-se a si mesmo, sacrificando-se a Deus? Ou sacrifícios de justiça seriam as obras justas depois da penitência? Pois o “diapsalma” intercalado talvez insinue com justeza a passagem de uma vida velha a uma vida nova, de tal maneira que extinto ou enfraquecido pela penitência o velho homem se ofereça a Deus um sacrifício de justiça, segundo a regeneração do homem novo, quando a própria alma, já purificada, a si mesma se oferta, e coloca sobre o altar da fé, para ser consumida pelo fogo divino, o Espírito Santo. Isto é, vivei com rectidão, e esperai o dom do Espírito Santo, a fim de que a verdade na qual acreditastes, vos ilumine.

V. 7: Mas, “Confiai Senhor” (6 b) é frase incompleta. O que se espera senão os bens? Cada qual deseja obter de Deus o bem que ama; é difícil encontrar quem ame os bens interiores, pertencentes ao homem interior, únicos dignos de ser amados; e os demais devem ser utilizados segundo a necessidade e não por prazer. Por isso, o salmista acrescentou: “Muitos dizem: «Quem nos dará a felicidade» ”? (7 a). Tal palavra, tal interrogação é de todos os dias da parte dos estultos e maus. Ou é dos desejosos da paz e da tranquilidade da vida no século, que não as encontram por causa da perversidade do género humano; em sua cegueira ousam acusar a ordem do universo, enquanto envolvidos no que merecem, julgam os tempos actuais piores do que os passados. Esplêndida e brevemente mostrou o salmista, mas somente aos que vêem interiormente quais os bens desejáveis, respondendo à interrogação: “Muitos dizem: « Quem nos dará a felicidade?» Resplandeça sobre nós, Senhor, a luz da Tua face!” (7 a b). Esta luz constitui o bem total e verdadeiro do homem, vista não com os olhos mas com o intelecto. Como o cenário é cunhado com a efígie do rei, o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26), mas, pecando, corrompeu-a. É, portanto, seu bem verdadeiro e eterno ser assinalado, ao renascer. Conforme a opinião prudente de alguns, penso que foi isto que o Senhor, tendo observado a moeda de César, disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), como se quisesse declarar: César exige de vós o cunho de sua imagem; o mesmo reclama Deus. Como se restitui a moeda a César, se restitua a Deus a alma iluminada e assimilada pela luz de Sua face. (…) Por conseguinte, aqueles que ainda amam a vaidade e procuram a mentira, não busquem a alegria fora de si, e sim no interior, onde está assinalada a luz da face de Deus. Cristo, pela fé, habitava no homem interior (Ef 3, 17), diz o Apóstolo. A esse homem cabe a verdade, pois Cristo afirmou: “«Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida»” (Jo 14, 6). E ao falar Cristo no Apóstolo que perguntava: “Pretendeis ter uma prova de que Cristo fala em mim?” (2 Cor 13, 3), não se dirige a Ele exteriormente, mas no próprio coração, a saber, naquele recinto onde se deve orar (Mt 6, 6).

Vs. 8.9: “Pois Tu dás uma alegria maior ao meu coração do que a daqueles que têm trigo e vinho em abundância” (8). (…) Os homens, certamente muito numerosos, que andam à busca de bens temporais, não sabem ver os bens verdadeiros e certos dentro de si mesmos, e não vêem o Reino de Deus dentro de si mesmos (Lc 17, 21). A alma entregue aos prazeres temporais arde de desejos insaciáveis e dissipada em inúmeros e atribulados pensamentos, acha-se impedida de ver o bem em sua simplicidade. Assim acontece à alma da qual se diz: “Porque o corpo corruptível é um peso para a alma, e esta tenda terrena oprime a mente cheia de cuidados (Sb 9, 15). Esta alma, pelas vicissitudes dos bens temporais, isto é, no tempo do seu trigo, vinho e óleo, cheia de inumeráveis fantasias, sente-se de tal modo dispersa que fica impossibilitada de praticar o preceito: “Tende para com o Senhor sentimentos rectos e buscai-O com sinceridade de coração” (Sb 1, 1). Tal dispersão opõe-se diametralmente àquela simplicidade. O fiel exultante profere: “Deito-me em paz e logo adormeço” (9 a). Destes espera-se, com razão, afastamento espiritual completo das coisas passageiras e esquecimento das misérias deste mundo significados de maneira conveniente e profética com os termos adormecer e paz, lá onde a paz suprema não é interrompida por tumulto algum. “Porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança” (9 b). (…) “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma” (Act 4, 32). Devemos, portanto, chegar à unidade e ser simples, isto é, separados da multidão e da turba das coisas que nascem e morrem, ser amantes da eternidade e da unidade, se queremos aderir ao nosso único Deus e Senhor.

SALMO 5

Comentário

Versículo 1: Entende-se ser a Igreja, que recebe a herança da vida eterna, por Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de possuir o próprio Deus. Aderindo a Ele torna-se bem aventurada, segundo a palavra: “Felizes os mansos porque possuirão a terra” (Mt 5, 5). Que terra senão aquela da qual se diz: “Tu és meu refúgio, minha herança na terra dos vivos!” (Sl 141, 6). Ou a passagem ainda mais clara: “O Senhor é a minha herança e o meu cálice” (Sl 15, 5). A Igreja, por sua vez, chama-se herança de Deus, segundo a palavra: “Pede-me e Eu te darei povos como herança” (Sl 2, 8).

Deus é, portanto, denominado nossa herança, porque Ele nos alimenta e mantém. E nós somos chamados herança de Deus porque Ele nos administra e governa. Neste salmo, por este motivo, encontra-se a voz da Igreja, chamada a herança, para se tornar ela mesma herança do Senhor.

V. 2: “Ouve, Senhor, as minhas palavras” (2 a). Aquela que é chamada invoca o Senhor, para que, auxiliada por Ele, vá além da maldade deste século e chegue até Ele. “E atende a minha súplica” (2b). Mostra muito bem qual é este clamor, que chega a Deus do íntimo do coração, sem ruído material, pois a voz corporal é ouvida, a espiritual, porém, é entendida.

V. 3: “Escuta a voz do meu clamor” (3 a), voz suplicante a Deus para que a escute. O salmista já insinuará qual é dizendo: “Escuta a voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus, pois eu elevo a ti a minha oração” (3 a b c). O Filho é Deus, o Pai é Deus e o Pai e o Filho simultaneamente são um só Deus; e se interrogarmos a respeito do Espírito Santo, só obteremos a resposta de que é Deus. Se nomearmos juntos o Pai e o Filho e o Espírito Santo, não entendemos senão um só Deus. No entanto, a Escritura, costuma dar ao Filho o nome de Rei. Segundo, pois, a Palavra: “Ninguém pode ir ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6), com acerto se diz primeiro: “meu Rei” e em seguida: “Meu Deus”. A fé católica não anuncia dois ou três deuses, e sim a trindade, um só Deus; nem que a mesma trindade possa uma vez ser o Pai, outra o Filho, outra o Espírito Santo, e esta trindade é um só Deus. Quando o Apóstolo dizia: “Porque é dele, para Ele, por Ele e para Ele que tudo existe” (Rm 11, 36) acredita-se que aludia à própria Trindade. E não acrescentou: a eles a glória, e sim: “A Ele a glória”.

V. 4: “Pela manhã, Senhor, escuta a minha voz. Mal o sol nasce, exponho diante de ti o meu pedido e fico à espera, confiante” (4). O que Ele quer dizer? Impossível seres viso por aqueles para cujos olhos ainda não terminou a noite dos pecados. Passada a noite do meu erro, e dissipadas as trevas ocasionadas por meus pecados ouvirás a minha voz.

VS. 5-7: Não nos apeguemos às coisas terrenas se queremos ver a Deus, que só corações puros podem contemplar. “Tu não és um Deus que se agrade do mal; os maus não podem viver a teu lado. Os arrogantes não poderão subsistir na tua presença, pois detestas os que praticam a iniquidade. Exterminas os mentirosos. “O homem sanguinário e fraudulento é detestado pelo Senhor” (5-7). Iniquidade, malignidade, mentira, homicídio, fraude e outras coisas semelhantes são a noite, após a qual vem a manhã quando se vê Deus. “Tu és um Deus que não se agrada do mal” (5 a). Se amasse a iniquidade poderia ser visto pelos iníquos; e não seria visto de manhã, isto é, após ter passado a noite da iniquidade. “Os maus não podem viver a teu lado” (5 b), quer dizer, não verá de forma a aderir. Por isso se segue: “Os arrogantes não poderão subsistir na tua presença” (6 a). Os olhos deles, isto é, as suas mentes, repelirão, reverberando-a, a luz da verdade, por causa das trevas do pecado. Habituados a estas, não suportam o julgar do recto entendimento. Por isso, os que entendem a verdade, todavia continuam injustos, nela não permanecem, pois amam aquilo que os aparta da verdade. Levam consigo a sua noite, a saber, não somente o hábito, mas ainda o amor ao pecado. Se esta noite passar, se desistirem de pecar e de afugentar o amor e o hábito de pecar, faz-se de manhã. Então, não só entendem, mas ainda aderem à verdade. “Pois detestas os que praticam a iniquidade” (6b). Ódio, em Deus, tem o sentido desta expressão: Todo o pecador odeia a verdade. Parece igualmente que a verdade odeia aqueles que ela não permite permanecerem em si. Não permanecem, porém, os incapazes de suportá-la “exterminas o mentiroso” (7 a). Mentira é o posto da verdade. Mas, para não se julgar que existe substância ou natureza contrária à verdade, entenda-se que a mentira pertence ao que não é, não ao que é. Se falamos aquilo que é dizemos a verdade. Se dizemos ser o que não é, é mentira. Muitas mentiras, de facto, parecem ser ditas para a salvação ou bem de alguma pessoa, não provenientes de malícia e sim de bondade. Foi o caso das parteiras, citadas no Êxodo, que deram resposta falsa ao faraó (Ex 1, 19), para não serem mortos os meninos israelitas. Mas aqui também não se louva a acção, sim o motivo da mentira. Nos perfeitos, contudo, nem este tipo de mentira se tolera. A estes se ordena: “Seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal”. (Mt 5, 37).

Com razão está escrito em outra passagem: “A boca que calunia dá morte à alma” (Sb 1, 11). (…) Uma coisa é mentir, outra ocultar a verdade, pois difere dizer o que é falso e calar a verdade. Se alguém, acaso, não quer entregar um homem à morte visível, oculte a verdade, mas não profira mentira. Não entregue, nem minta para não matar a sua própria alma, por causa do corpo de outrem. Se, porém, nem isto pode, ou for necessário proferir somente essa espécie de mentira, se se quer ver livre também desta única restante e receber a força do Espírito Santo, despreze qualquer tipo de sofrimento em prol da verdade. Duas são as espécies de mentira que não constituem culpa grave, mas não isentas de culpa, a saber, mentir por gracejo, ou para o bem de outrem. O primeiro, o gracejo, não é muito prejudicial, porque não engana. Sabe o outro que é alvo de gracejo. O segundo é mais leve, por incluir certa benevolência. O Senhor também ocultou a verdade, quando disse aos discípulos ainda incapazes de ouvi-la: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora” (Jo 16, 12); E o apóstolo Paulo ao declarar: “Quanto a mim, irmãos, não pude falar-vos como simples homens espirituais, mas como a homens carnais” (1 Cor 3, 1).

VS. 7. 8: “O homem sanguinário e fraudulento é detestado pelo Senhor” (7 b). Refira-se “sanguinário” a quem pratica a iniquidade. “Mas eu, pela grandeza do teu amor, entrarei na tua casa” (8 a b). Talvez se refira à multidão dos perfeitos e bem- aventurados, de que constará aquela futura cidade, agora gerada e progressivamente dada à luz pela Igreja. (…)

“Que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares” (Sl 8, 5)? Entrarei na tua casa, a meu ver como a pedra no edifício. Que é a casa de Deus senão templo de Deus, do qual disse: “O templo de Deus é santo, e esse templo sois vós” (1 Cor 3, 17)? Pedra angular deste edifício é aquele que a coeterna Virtude do Pai e Sabedoria de Deus assumiu. “Para te adorar, com reverência, no teu santo templo” (8c). O temor é grande auxílio aos que caminham para a salvação. “O perfeito amor lança fora o temor” (1 Jo 4, 18), pois já não temem o amigo aqueles aos quais foi dito: “Já não vos chama servos…; mas a vós chamo-vos amigos” (Jo 15, 15).

Vs. 9. 10: “ Guia-me, Senhor, pelos caminhos da tua justiça; defende-me contra os que me perseguem” (9 a b). O salmista declarou estar a caminho, progredindo em direcção à perfeição, enquanto ainda deseja ardentemente ser conduzido até ela. “Da tua justiça” e não aquela que imaginam os homens. Pagar o mal com o mal, parece justiça; mas não é a justiça de Deus, de quem se disse: “Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus” (Mt 5, 45). Ao punir os pecadores, Deus não lhes inflige mal proveniente de si próprio, mas abandona-os aos males derivados deles mesmos: “Pode conceber a maldade, gerar a iniquidade e dar luz à mentira. Abre um fosso profundo para os outros, mas cairá na cova que ele mesmo fez. A sua malícia recairá sobre a sua cabeça, e a sua violência, sobre a sua fonte” (Sl 7,15-17). Quando Deus castiga, pune como faz o juiz àqueles que menosprezam a lei, não lhes impingindo por si mesmo o mal, mas expulsando-os para o lugar da sua própria escolha, a fim de que se consuma a miséria em grau extremo. “Aplana diante de mim o teu caminho” (9 c). Tal caminho não atravessa lugares terrenos, mas consta de afectos de alma. Isto é, lá onde não se encontra observador humano, pois os humanos não são dignos de crédito se louvam ou criticam. Ninguém pode absolutamente julgar a consciência alheia, por onde passa o caminho de Deus. Assim comenta: “Na boca deles não há sinceridade” (10a); nos lábios daqueles que não merecem crédito quando julgam. Refugiemo-nos, pois, no íntimo da nossa consciência e na pujança de Deus. “ No seu coração só há malícia”(10 b). Como pode haver verdade na boca daquele cujo coração se engana a respeito do pecado e da pena do pecado? Por conseguinte, os homens são novamente interpelados por aquela voz: “Porque amais a ilusão e buscais a mentira?” (Sl 4,3). “A sua garganta é um sepulcro aberto e com a língua tentam seduzir os outros” (10 c d). Pode ser referência à veracidade que é a causa frequente de mentirem os homens com adulação. E está expresso de modo admirável “Sepulcro aberto”, porque tal voracidade permanece sempre ávida, ao contrário dos sepulcros, que se fecham após receberem os cadáveres. É possível também entender-se que eles atraem a si com mentiras e vis lisonjas aqueles que seduzem ao pecado e devoram, induzindo-os a levar vida igual à sua. Como esses morrem assim pelo pecado, com razão os sedutores são denominados sepulcros abertos, porque também eles de certo modo estão mortos, privados da vida da verdade, e recebem em si os que eles mataram com palavras mentirosas e coração fútil, tornando-os semelhantes a si. Os maus têm más línguas; falam o mal, quando proferem mentira. O Senhor lhes diz: “Como podeis falar de coisas boas se sois maus?” (Mt 12,34).

V. 11: “Castiga-os, ó Deus, frustra os seus desígnios” (11 a b). É profecia, não maldição. O salmista não deseja que aconteça, mas discerne o que há-de suceder. Realiza-se mas não porque ele aparentemente o desejou e sim porque eles são tais que sucederá conforme merecem. Igualmente na profecia foi escrito: “Desperta teu poder e vem salvar-nos!” (Sl 79,3), porque o profeta via que ele haveria de vir. Entenda-se, portanto, como profecia, e não malevolência. Foi assegurado que necessariamente tal coisa adviria aos que perseverassem nos pecados mencionados. “Frustra os seus desígnios” (11 b), diz o salmista, desistam dos seus planos, que os acusam, e também o atesta a sua consciência, conforme declara o Apóstolo: “Os gentios mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações tal como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou defendam” (Rm 2,15.16). “Expulsa-os pelos seus crimes” (11 c). Os ímpios são excluídos da herança que se possui entendendo o medo e vendo a Deus. Tal exclusão se torna castigo tão grande quanto é grandioso o prémio, do qual se diz: “«Tu és o meu Deus. O meu destino está nas tuas mãos»” (Sl 30,15). O oposto deste castigo é a palavra: “Entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25,23), bem como semelhante a esta exclusão é: “A esse servo, inútil lançai-o nas trevas exteriores” (Mt 25,30). “Porque se revoltam contra ti” (11 d). Disse Ele: “Eu sou o pão vivo, que desceu do Céu” (Jo 6,51); e “Trabalhai pelo alimento que perdura e dá vida eterna” (Jo 6,27); e “saboreai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33,9). Para os pecadores é amargo o pão da verdade, por isso, odeiam a boca que profere verdade.

V. 12: “ Mas alegrem-se e rejubilem para sempre todos os que em ti confiam” (12 a), que provaram quão suave é o Senhor. “Tu proteges e alegras os que amam o Teu nome” (12 b). Deste bem acham-se privados os que Deus repele por seus numerosos crimes.

V. 13: “Porque, tu, Senhor, abençoas o justo” (13 a). A benção consiste em gloriar-se em Deus e ter Deus habitando em si. Esta santificação é concedida aos justos; mas para que se justifiquem precede o chamado, proveniente não dos méritos e sim da graça de Deus. “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). “E àqueles que predestinou, também os chamou; e àqueles que chamou, também os justificou; e àqueles que justificou também os glorificou” (Rm 8,30). Uma vez que o chamamento não deriva dos nosso méritos, mas da benevolência e misericórdia de Deus, acrescentou: “ E o envolves num escudo de graça” (13b). A boa vontade de Deus precede a nossa, chamando os pecadores à penitência. Tais armas vencem o inimigo, contra o qual se diz: “ Quem irá acusar os eleitos de Deus?” e “Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?” (Rm 8,33.31). “Se, de facto, quando éramos inimigos de Deus fomos reconciliados com Ele pela morte do seu filho, com muito mais razão, uma vez reconciliados, havemos de ser salvos pela sua vida” (Rm 5,10). Eis o escudo invencível, que repele o inimigo a sugerir desespero da Salvação, através da multidão de tribulações e tentações.

SALMO 6

COMENTÁRIO

Versículo 1: Opinam alguns tratar-se do dia do juízo, do tempo da vinda de nosso Senhor, para julgar os vivos e os mortos. A palavra do Senhor: “Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade” (Act 1, 7), e: “Quanto àquele dia e àquela hora ninguém o sabe: nem os anjos do Céu nem o Filho, só o Pai” (Mt 24, 36), e o que está escrito: “O dia do Senhor chega de noite como um ladrão” (1 Ts 5, 2). Como então, nem o Filho sabe? Assim foi afirmado, não porque o Filho mesmo não saiba, e sim porque os homens não obterão este conhecimento por meio do Filho, segundo a locução: “Porque o Senhor, vosso Deus, vos põe à prova para verificar se realmente o amais com todo o vosso coração e vossa alma” (Dt 13, 4), pois assevera-se que o Filho desconhece o dia, não porque o ignore, mas porque faz com que o desconheçam aqueles aos quais não convém saber. Existe outra possibilidade de se aceitar que aqui, razoavelmente, “oito cordas” seja o juízo a sobrevir após duas gerações: Uma relativa ao corpo, outra atinente à alma. Pois, de Adão a Moisés o género humano viveu conforme o corpo, quer dizer, segundo os ditames da carne, também chamada homem exterior e homem velho (Ef 4, 22) e ao qual foi dado o Antigo Testamento, a fim de que por meio de acções ainda carnais, embora religiosas, purificasse as figuras espirituais. Desde a vinda do Senhor, quando se passou da circuncisão da carne à do coração, realizou-se o chamamento à vida segundo a alma, conforme o homem interior, também denominado homem novo, devido à regeneração e à renovação de costumes espirituais.

V. 2: A Igreja reza neste salmo: “Senhor, não me repreendas na tua ira” (2 a). O Apóstolo fala também em ira do juízo ao declarar: “Estás a acumular ira sobre ti, para o dia da ira e do justo julgamento de Deus” (Rm 2, 5). Quem deseja ser curado nesta vida, não quer ser arguido naquele dia. “Nem me castigues com o teu furor (2 b). Quanto àquele que é arguido , isto é acusado, receia-se que por fim sofra condenação. Penso que as duras palavras furor e ira, significam o mesmo, porque o grego Thimós, que se acha no primeiro versículo é idêntico a orgé, no segundo. Os latinos, querendo empregar as duas palavras, procuraram um sinónimo de ira e usaram furor. Por conseguinte os códices divergem. Uns trazem primeiro ira depois furor; outros, primeiro furor, em seguida ira. Seja como for trata-se de emoção que provoca imposição de castigo. Não é atribuível tal emoção a Deus, como à alma. Dele se disse: “Mas tu, que dominas a tua força julgas com bondade” (Sb 12, 18). Se está calmo não se acha perturbado. Em Deus, que é juiz não há perturbações. Todavia os actos de seus servos, efectuados por meio das leis que são suas, chamam-se sua ira. São arguidos no dia do julgamento todos os que não têm Cristo por fundamento. São corrigidos, purificados os que edificam sobre esse fundamento com madeira, feno, palha; sofrerão perda mas serão salvos, de certa maneira através do fogo (1 Cor 3, 12-15).


V. 3.4: “Tem compaixão de mim, Senhor, porque desfaleço, cura-me, Senhor, porque me sinto abalado” (3). A alma afirma ter abalada a sua força. É explanação o acréscimo: “Minha alma está muito perturbada” (4 a), “Mas Tu, Senhor, até quando…?” (4 b). Quem não vê tratar-se da alma em luta com suas moléstias, muito tempo sem assistência do médico, a fim de se convencer dos males em que se precipitou ao pecar? Não se julgue cruel a Deus, a quem se diz: “Mas Tu, Senhor, até quando…?” (4 b). Ao contrário, é bom conselheiro das almas a respeito do mal ocasionado por ela a si própria. Esta alma ainda não reza tão perfeitamente que se lhe possa declarar: “Por isso, o meu povo conhecerá o meu nome; nesse dia compreenderá que era Eu que dizia: “ «Aqui estou» ” (Is 52, 6). Se os que se convertem suportam tamanha dificuldade, é para que simultaneamente se reconheça o grande castigo preparado para os ímpios, como se lê em outra passagem: “Se o justo dificilmente se salva, o que virá a ser do ímpio e do pecador” (1 Pd 4, 18)?

V. 5: “Vem, Senhor, salva a minha vida” (5 a). Convertendo-se a alma pede a Deus que também se volte para ela, conforme se diz: “Voltai-vos para mim – Oráculo do Senhor – e Eu voltarei para vós” (Zc 1, 3). (…) Nossa perfeita conversão encontra Deus sempre pronto, conforme diz o profeta: “Eminente, como a aurora está a sua vinda” (Os 6, 3ss). A causa de O perdermos não está na ausência daquele que se acha presente em todo o lugar, e sim em nosso afastamento dele. “Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência, mas o mundo não o reconheceu” (Jo 1, 10). Se estava neste mundo e o mundo não o reconheceu, foi nossa impureza não suporta a sua presença. Quando, porém nos voltarmos para Ele, quando remodelarmos nosso espírito, mudando de vida, percebemos ser duro e laborioso retornar das trevas das concupiscências terrenas à serenidade e tranquilidade da luz divina. E em tal dificuldade dizemos: “Vem, Senhor”, ajuda-nos a completar nossa conversão, que te encontras preparado e disposto a oferecer-te aos que te amam, para sua fruição. Depois, acrescentou: “Salva a minha alma”, como se ela na própria conversão se sentisse presa das perplexidades deste século: “Livra-me, pela tua misericórdia” (5 b). Percebe não ser curada por seus próprios méritos, visto ser justa a condenação do pecador que transgrediu o preceito. Cura-me, portanto, não devido a meus méritos e sim por causa da tua misericórdia.

V. 6: “No sepulcro ninguém se lembrará de ti” (6 a). O salmista compreende igualmente que agora é tempo de conversão, uma vez que passada a vida só resta a retribuição dos méritos. “Na mansão dos mortos quem te louvará”? (6 b). Denomina-se morte o pecado cometido por desprezo da lei divina, de sorte que chamemos morte o aguilhão da morte, o qual a ela conduz, porque “o aguilhão da morte é o pecado” (Cor 15, 56). Nesse tipo de morte, o esquecimento de Deus é o desprezar a sua lei e os seus preceitos. Diria ser inferno a cegueira da alma que surpreende e envolve o pecador, isto é, o moribundo. “E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento” (Rm 1, 28). A alma suplica livrar-se desta morte e deste inferno, quando se empenha a converter-se a Deus mas sente dificuldades.

V. 7: Por esta razão desculpa-se o salmista: “Estou cansado de tanto gemer” (7 a). E como pouco tem adiantado acrescenta: “Todas as noites choro na minha cama” (7 b). Leito, é aqui onde a alma doente e fraca descansa, isto é, o prazer corporal e mundano. Lava com lágrimas tal deleite aquele que se esforça por se furtar a ele. Verifica que condenou as concupiscências carnais e no entanto a fraqueza perdura, por causa do deleite, e nela jaz de bom grado, sem poder erguer-se, se não for curado. O salmista talvez tenha adoptado a expressão “todas as noites” por causa de alguém cujo espírito está pronto e percebe algo da luz da verdade, todavia descansa ás vezes por fraqueza da carne, no deleite deste século e sofre as vicissitudes deste afecto, como se fossem dias e noites. Por exemplo, ao dizer: “Pela razão sirvo a lei de Deus”, trata-se do dia. De outro lado, quando diz: “Com a carne sirvo a lei do pecado” (Rm 7, 25) refere-se mais à noite, até passarem todas as noites e chegar o dia único, do qual se diz: “Pela manhã, Senhor, escuta a minha voz, exponho diante de Ti o meu pedido e fico à espera, confiante” (Sl 5, 4). Então, o salmista estará de pé; jaz agora no leito, que ele lavará todas as noites, a fim de impetrar através de tantas lágrimas da misericórdia de Deus o remédio eficaz. “Encho de lágrimas o meu leito” (7 c). É repetição.

V. 8: “Os meus olhos vão-se consumindo de tristeza” (8 a). Temendo o dia do juízo, emprega esforços e suplica com lamentos não ser arrastado inteiramente ao castigo, cujo início pernicioso agora experimenta. A mente julga sofrer o ocaso do sol interior, a sabedoria de Deus, cuja visão a sua perturbação impede. “Envelheci por causa dos meus adversários” (8 b). Como os vícios fazem parte da antiga vida e velho homem, que havemos de despir para nos revestirmos do novo (Cl 3, 9.10)? Com razão se afirmou: “Envelheci por causa dos meus adversários” (8 b), os próprios vícios, ou os homens que recusam voltar-se para Deus. Uns amam, ambicionam este mundo: os outros anseiam por se libertar dele. Quem não vê que os primeiros são inimigos dos segundos. Se o conseguirem, arrastam-nos consigo para os castigos. É grande dom ouvir diariamente essas conversas e não se extraviar dos preceitos de Deus. Muitas vezes o espírito, no esforço de caminhar para Deus, abalado, trepida no caminho. Amiúde, por causa disso, deixa de cumprir um bom propósito, para não ofender aqueles com os quais convive e que amam e seguem outros bens perecíveis e passageiros. As pessoas sadias deles se separam, não pelo lugar, e sim pelo ânimo, pois os corpos estão circunscritos ao lugar, enquanto o lugar da alma é o seu afecto.

V. 9: Após labuta, gemidos, lágrimas frequentes e copiosas, é impossível que não surta feito o pedido tão veemente dirigido àquele que é fonte de todas as misericórdias. Por isso, com acerto se afirma: “O Senhor está perto dos corações contritos” (Sl 33, 19). Após tantos obstáculos, acrescenta a alma piedosa, ou talvez também a Igreja, assinalando que foi atendida: “Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal, porque o Senhor, ouviu a voz dos meus soluços” (9). Ou se trata de profecia, porque os ímpios se afastarão, serão separados dos justos, no dia do juízo, ou agora na eira limpa, apesar de juntos nas mesmas reuniões, os grãos já estão separados das folhas, apesar de escondidos entre elas. Por conseguinte, podem estar juntos, mas juntos não serão arrebatados pelo vento.

V. 10: “O Senhor escutou a minha súplica e atendeu a minha oração” (10). A assídua repetição de uma sentença é desnecessária numa narração, mas demonstra o afecto de alguém que está radiante. Aqui, é fruto do gemido do aflito e das lágrimas, que lavam o leito e regam a cama, porque “Aqueles que semeiam com lágrimas, vão recolher com alegria” (Sl 125, 5) e “Felizes os que choram porque serão consolados” (Mt 5, 4).

V. 11: “Os meus inimigos hão-de ser envergonhados” (11 a). Tal pode acontecer mesmo nesta vida, conforme foi exposto. Agora, os ímpios não coram nem deixam de zombar de nós; e por vezes com suas irrisões conseguem que os fracos se envergonhem do nome de Cristo. Daí a palavra: “Porque se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na sua glória e na glória do Pai” (Lc 9.26). Todo aquele, potanto, que decidir cumprir os sublimes preceitos de repartir com os pobres seus bens, a sua generosidade, subsistirá para sempre (Sl 111, 9) e tendo vendido todas as suas posses terrenas e distribuído os resultados aos necessitados, quiser seguir a Cristo, dizendo: “Pois nada trouxemos ao mundo, e nada podemos levar dele. Tendo alimento e vestuário, contentemo-nos com isso” (1 Tm 6, 7.8). Incide na mordacidade sacrílega dos ímpios e os que não querem ser curados chamam-no louco. Mas, virá tempo em que eles se envergonharão, dizendo, conforme está escrito: “Este é aquele de quem nós outrora escarnecemos e a quem loucamente cobrimos de opróbrio! Insensatos de nós que considerámos a sua vida uma loucura e a sua morte uma vergonha! Como é ele contado entre os filhos de Deus e partilha da sorte dos santos? Assim, extraviámo-nos do caminho da verdade, a luz da justiça não brilhou para nós, e o Sol não se levantou sobre nós. Andámos pelas sendas da maldade e da perdição, vagueámos pelos desertos sem caminhos e ignorámos o caminho do Senhor! Que proveito tirámos do nosso orgulho? De que nos serviram a riqueza e a arrogância? Tudo isso desapareceu como uma sombra que passa” (Sb 5, 4-9)”. “E retroceder, confusos, num instante” (11 b). Quem não acha muito justo o castigo de se voltarem para a sua própria confusão, os que não quiseram converter-se em vista da salvação? “Num instante”. Quando se for desistindo de esperar o dia do juízo e se disser: Paz! Então se abaterá repentinamente sobre eles a ruína (1 Ts 5, 3). Seja quando for, virá rapidamente o que não era mais esperado. Só a esperança de viver faz com que se considere longa a vida, pois nada parece mais rápido do que tudo aquilo que já se passou. Quando vier o dia do juízo, então os pecadores perceberão não ser longa a vida que passa.

SALMO 7

Comentário

Versículo 1: Neste salmo não se há-de levar em consideração a própria história, cujo véu misterioso o profeta adoptou; mas se passamos a Cristo, o véu será tirado (2 Cor 3, 16). Em primeiro lugar, interroguemos qual o sentido desses nomes. Não faltaram intérpretes que, investigando o sentido espiritual, não o carnal, literal desses nomes afirmaram que Cuche significa silêncio. Absalão, significa paz de pai. Seu pai se manteve em paz para com ele, enquanto ele nutria a guerra no coração, com seus ardis, conforme expusemos no comentário ao Salmo terceiro. No Evangelho lemos que os apóstolos foram chamados discípulos de nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 9, 14); igualmente foram denominados irmãos pois disse o Senhor ressuscitado: “Vai ter com os meus irmãos e diz-lhes” (Jo 20, 17), e o Apóstolo chama a Cristo de “primogénito de muitos irmãos” (Rm 8, 29).

V. 2. 3: “Senhor, meu Deus, a ti me confio; livra-me de todos os que me perseguem e salva-me” (2). Fala o salmista como alguém já perfeito, e que superou toda a luta e oposição de vícios, restando-lhe apenas vencer o diabo invejoso. Declara o Apóstolo: “O vosso adversário, o diabo, como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem derrubar” (1 Pd 5, 8).


“Que não me arrebatem como o leão, e me dilacerem, sem que ninguém me valha” (3). Quer dizer: não arrebate ele, quando tu não resgatas nem salvas. Se, por conseguinte, Deus não resgata nem salva, ele arrebata.

Vs. 4. 5: Como evidência de que assim nem salva alma já perfeita, que se há-de de precaver só das insídias muito fraudulentas do diabo, vê como prossegue: “Senhor, meu Deus, se fiz algum mal” (4 a). O que é que ele denomina: “Se fiz algum mal”? Acaso deve entender-se o pecado, em geral, uma vez que não cita a espécie de pecado? Se esta explicação desagrada, aceitemos que: “Se fiz mal a alguém” se refere ao que se segue: “Se há injustiça nas minhas mãos” (4 b). Já se torna evidente que se trata de todo o pecado ao dizer: “Se atraiçoei o meu amigo, se poupei o agressor injusto” (5). Não pode dizê-lo com toda a verdade senão quando for perfeito. Disse o Senhor: “Portanto, sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celeste. Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores” (Mt 5, 48.45). É perfeito, portanto, quem não paga com o mal aos que lhe retribuem com o mal. O salmista, portanto, entende onde está a vitória maior e onde o Pai, que vê nos lugares ocultos, recompensa. Foi instruído a não pagar com o mal aos que lhe retribuem com o mal, a vencer antes a ira do que a um homem, pelas Sagradas Letras, onde está escrito: “Vale mais dominar-se a si mesmo do que conquistar uma cidade” (Pr 16, 32).

V. 6: “ Então, que o inimigo me persiga e apanhe” (6 a). O salmista, mais uma vez, fala do inimigo no singular, revelando progressivamente quem foi que ele acima denominou leão. Este persegue a alma e se puder enganá-la dela se apodera. Os homens praticam crueldades até matar o corpo, mas não podem apossar-se da alma depois desta morte sensível; o diabo, contudo, se apossa das almas que perseguiu e apanhou. “Que ele pise no chão a minha vida e a minha glória tenha de morar no pó” (6 b), isto é, pisando transforme a minha vida em pó, alimento do diabo. Ele foi chamado leão, também serpente, à qual foi sentenciado: “alimentar-te-ás da terra”; e ao pecador: “Tu és pó e ao pó voltarás” (Gn 3, 14.19). É este o pó que o vento arrasta da superfície da terra, a saber, a jactância vã, inepta, orgulhosa, e inconsistente dos soberbos, como um montão de poeira, levantada pelo vento.” Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Cor 1, 31). Tal solidez é reduzida a pó se alguém por soberba, desprezando os segredos da consciência, onde somente Deus experimenta o homem, quiser gloriar-se junto dos homens. Daí dizer-se em outra parte: “porque Deus dispersou os ossos dos que te cercam” (Sl 52, 6). Quem aprendeu bem ou experimentou os graus dos vícios a serem superados, entende ser o da vanglória o único ou maior, de que hão-de acautelar-se os perfeitos. O primeiro vício em que a alma cair é o último que ela vence. “Porque o princípio do orgulho é o pecado”; e “o princípio do orgulho do homem é afastar-se do Senhor” (Eclo 10, 13.12).

V. 7: “Levanta-te, Senhor, na tua ira” (7 a). Por que, então, aquele que afirmamos ser prefeito provoca Deus à ira? Não seria, ao invés, perfeito aquele que ao ser apedrejado disse: “Senhor, não lhes atribuas este pecado” (Act 7, 60) ? Ou não é contra os homens que o salmista pede isso, e sim contra o diabo e seus anjos, que se apoderaram dos pecados e dos ímpios? Não é cruel, portanto, mas misericordioso quem reza contra alguém para que o Senhor justifique o ímpio (Rm 4, 5) o tire da posse do diabo. Se o ímpio é justificado, de ímpio faz-se justo e passa da posse do diabo a templo de Deus. Como constitui castigo tirar de alguém o domínio de um objecto cobiçado, denomina-se ira de Deus contra o diabo a pena de subtrair-lhe os que estavam sob seu jugo. “Desperta, ó meu Deus, e decreta a sentença” (7 b), isto é, apresenta-te humildemente, porque preceituaste a humildade. Sê tu o primeiro a cumprir o que mandaste, para que a teu exemplo os vencedores da soberba não sejam possuídos pelo diabo, que persuadiu à soberba contra o teu preceito, dizendo: “No dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus ficareis a conhecer o bem e o mal” (Gn 3, 5).

V. 8: “junta em redor de ti a assembleia dos povos” (8 a). Tem duplo sentido. A assembleia das nações pode estar constituída de fiéis ou perseguidores. Ambas se formaram através da mesma humildade do Senhor. Desprezando-o, a multidão dos perseguidores O cercou. Desta multidão se disse: “Porque se amotinam as nações e os povos fazem planos insensatos” (Sl 2, 1)? A multidão dos fiéis, porém, cercou-O por sua humildade, de modo que se pode dizer com toda a verdade: “deu-se o endurecimento de uma parte de Israel, até que a totalidade dos gentios tenha entrado” (Rm 11, 25), e “Pede-me e Eu te darei povos como herança e os confins da terra por domínio” (Sl 2, 8). “Vem presidir a ela do alto do teu trono” (8 b), por causa desta assembleia, volta para o alto. O Senhor voltou, quando ressurgiu e subiu ao Céu. Assim glorificado, comunicou o Espírito Santo, que não podia ser dado antes da glorificação, conforme se lê no Evangelho: “Ainda não tinham o Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado” (Jo, 7, 39). Tendo regressado, pois, ao alto, por causa da assembleia das nações, enviou o Espírito Santo. Dele repletos, os pregadores do Evangelho encheram de igrejas a orbe da terra.

V. 9: Prossegue com acerto: “O Senhor julga os povos” (9 a). Esta sentença é exacta, porque a respeito da vinda do Senhor está escrito: “Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra” (Lc 18, 8)? “O Senhor julga os povos” (9 a). Quem é o Senhor senão Jesus Cristo? “O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento” (Jo 5, 22). Em vista disto, observe-se como não teme o dia do Juízo a alma que reza com perfeição e, com desejo confiante, diz na oração: “Venha o teu Reino” (Mt 6, 10). No salmo anterior, o enfermo implora mais a misericórdia de Deus do que lembrava qualquer mérito seu, porque o Filho de Deus veio chamar os pecadores ao arrependimento (Lc 5, 32). O salmista acima dissera, portanto: “Livra-me, Senhor, pela tua misericórdia (Sl 6, 5), não por causa dos meus méritos. Aqui, foi chamado, manteve e observou os preceitos e ousa dizer: “Julga-me, então, Senhor, segundo o meu direito e segundo a minha inocência” (9 b c). Verdadeira inocência, que nem o inimigo prejudica. Revela que a alma é justa e inocente, não é em si mesma, mas por acção de Deus que esclarece e ilumina. Desta alma declara outro salmo: “Senhor, Tu manténs acesa a minha lâmpada” (Sl 17, 29); e a respeito de João assevera: “Ele não era a Luz, mas vinha para dar testemunho da Luz” (Jo 1, 8) “João era uma lâmpada ardente e luminosa” (Jo 5, 35). A Luz, na qual as almas, como lâmpadas, se acendem, não brilha com fulgor alheio, mas com o seu, a própria verdade. Por isso se diz: “Julga-me, então, Senhor, segundo o meu direito e segundo a minha inocência” (9 b c).

V. 10: “Peço-te: acaba com a malícia dos ímpios” (10 a). Complete-se, conforme a palavra do Apocalipse: “Que o impuro continue a cometer acções impuras; o que é honrado continue a ser honrado” (Ap 22, 11). “Fortalece os que são justos, Tu, que perscrutas o íntimo dos corações, ó Deus de Justiça!” (10 b c d). Como pode o justo ser guiado senão no seu interior? Pois, mesmo o que era admissível no começo da era cristã, agora aumentou a hipocrisia, quer dizer, a simulação daqueles que, sob o nome de cristãos, preferem agradar mais aos homens do que a Deus. Como, pois, é orientado o justo no meio de tamanha confusão, causada pela simulação, senão quando Deus sonda os corações e os rins vendo os pensamentos de todos? Estes são designados pela palavra coração e os prazeres, pelo termo rins. Com razão se atribui aos rins o deleite nas coisas terrenas e temporais. Se Deus, portanto, sonda nosso coração, e vê que está o nosso tesouro lá (Mt 6, 21), isto é, nos céus, se também sonda os rins e verifica que não cedemos à carne e ao sangue, mas nos deleitamos no Senhor, Ele guia o justo, em Sua presença, na própria consciência, onde ninguém divisa alguma coisa, excepto Ele, que enxerga o pensamento e o deleite de cada um. O fim visado pelos desejos é o deleite: cada qual se preocupa, cogita como obter o prazer. Quando verifica que as nossas preocupações não se inclinam para a concupiscência dos olhos, nem para a ambição humana, que passam como sombras (1 Jo 2, 16.17), mas que se elevam ás alegrias dos bens eternos, invioláveis, imutáveis, Deus, que sonda os corações e os rins, guia o justo. Nossas obras, actos e palavras podem ser conhecidos dos homens; mas só Deus, que sonda os corações e os rins, sabe com que ânimo são feitas e a onde, por meio delas, desejamos chegar.

V. 11: “A minha protecção está em Deus, que salva os de coração sincero” (11). Se Ele oferece remédio que cura nossas doenças, quanto mais não dará o que nos conserva sadios? “Quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós. E agora que fomos justificados pelo seu Sangue, com muito mais razão havemos de ser salvos da ira, por meio d’Ele (Rm 5, 8.9)?” “A minha protecção está em Deus, que salva os de coração sincero” (11). Dirige o justo, Deus, que sonda os corações e os rins, por justo auxílio salva os rectos de coração. Mas, se sonda corações e rins, sua salvação atinge os rectos de coração, e não de rins; porque os pensamentos maus se acham no coração perverso e os bons no coração recto; os deleites pecaminosos, contudo, referem-se aos rins, porque são inferiores e terrenos; os bons, todavia, não são atinentes aos rins, mas ao próprio coração. Assim, Deus que sonda corações e rins, se descobre no coração pensamentos rectos e nenhum deleite nos rins, oferece justo auxílio aos rectos de coração; neles os pensamentos puros se associam aos deleites elevados. Por isso, em outro salmo, tendo dito: “Até durante a noite a minha consciência me adverte”, acrescenta uma palavra sobre o auxílio: “Tenho sempre o Senhor diante dos meus olhos; com Ele a meu lado jamais vacilarei” (Sl 15, 7-8). O salmista mostra que sofre da parte da consciência apenas sugestões, não deleitações.

V. 12: “Deus é um justo Juiz, que, a todo o momento pode castigar” (12). Qual Deus é juiz senão o Senhor que julga os povos? Ele é justo, pois recompensa a cada um segundo as obras. Ele é forte, porque, sendo poderosíssimo, tolerou mesmo os ímpios, perseguidores, em vista da nossa salvação. É longânime porque logo após a ressurreição não arrastou ao suplício os perseguidores, mas suportou-os a fim de que um dia se convertessem da impiedade à salvação; e ainda suporta, convidando os pecadores à penitência reservando o último castigo para o juízo derradeiro.

V. 13: “Se o ímpio não se converter, pode afiar de novo a sua espada, retesar o arco e apontar a seta” (13). Pode entender-se que o próprio Senhor é a espada de dois gumes, isto é, duplamente afiada, que na primeira vinda não brandiu, mas escondeu, de certo modo, na bainha da humildade. Brandirá, porém, na segunda vinda, quando há-de vir para julgar os vivos e os mortos, no esplendor manifesto de sua glória e fará fulgurar a Luz para os justos e o terror para os ímpios.

V. 14: “Contra si preparou armas de morte, das suas flechas faz tições ardentes”. A meu ver, arco são as Sagradas Escrituras onde a força do Novo Testamento, uma espécie de nervos, dobrou e domou a dureza do Antigo Testamento. Daí, quais setas, são enviados os apóstolos, ou lançados os divinos anúncios. Tais setas foram feitas para os “ardorosos”, a fim de que, feridos, ardessem no amor divino. Quer dizer, ferido e inflamado por elas, arderás de tanto amor pelo reino dos céus que desprezarás as línguas dos opositores e dos que querem desviar-te desse propósito e rirás de suas perseguições dizendo: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura, poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso” (Rm 8, 35.38-39).

Pode perguntar-se o que são tais tições ardentes. Acaso os hereges? Pois estes, projectando-se do mesmo arco, isto é, das mesmas Escrituras, assaltam as almas, não para inflamá-las de caridade, mas para matá-las, envenenando-as, o que é bem merecido. Assim, esta disposição é igualmente atribuível à Divina Providência; não que ela suscite pecadores, mas porque esta tudo reconduz à ordem, depois de eles pecarem. Os que lêem, com má intenção, por causa do pecado e como castigo do mesmo, necessariamente entendem mal. Pela morte desses, quais espinhos, os Filhos da Igreja Católica são despertados e progridem no entendimento das divinas Escrituras. “É mesmo necessário que haja divisões entre vós, para que se tornem conhecidos aqueles que de entre vós resistem a esta provocação” (1 Cor 11, 19), isto é, entre os homens, porque Deus os vê com toda a clareza. Não é falsa a afirmação do Apóstolo: “Pois quem conheceu o pensamento do Senhor para poder instruí-Lo” (1Cor 2, 16)? Não é de admirar, pois, se os próprios apóstolos são armas mortíferas para os seus perseguidores e setas de fogo para inflamar os corações dos fiéis.

V. 15: “Pode conceber a maldade, gerar a iniquidade e dar à luz a mentira” (15). Depois, virá o justo juízo. A respeito deste o salmista se exprime de maneira a entendermos que cada um se torna suplício do seu próprio pecado e a sua iniquidade se converte em castigo. Não pensemos que venha o castigo da tranquilidade e Luz inefável de Deus, e sim que Ele de tal maneira dispõe acerca dos pecados que os prazeres do pecador se transformam em instrumento de Deus para punir.

V. 16: “Abre um fosso profundo para os outros” (16 a). Abrir uma fossa é, nas coisas terrenas, como se fosse na terra preparar uma armadilha para aquele a quem o injusto quer enganar. Abre-se tal fossa quando alguém consente na má sugestão das ambições terrenas. Mas, como é possível que a iniquidade prejudique o justo contra quem age, e não tanto o coração do injusto donde procede? Quem comete desfalque, por exemplo, enquanto visa causar dano a outrem, abre em si a ferida da avareza. “Mas cai na cova que ele mesmo fez” (16 b). É idêntico ao que diz outro salmo: “O Senhor manifestou-se e fez justiça. O ímpio caiu nas próprias malhas” (Sl 9, 17).

V. 17: “A sua malícia recairá sobre a cabeça, e a sua violência, abre a sua fronte” (17). O pecador não quis fugir do pecado, mas tornou-se escravo dele, conforme declara o Senhor: “todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34). Sua iniquidade, portanto, estará sobre ele e a esta o pecador se submete, porque não pode dizer ao Senhor, como os inocentes e rectos: “Mas Tu, Senhor, és a minha glória e quem me faz levantar a cabeça” (Sl 3, 4). Assim, ficará em posição inferior, de sorte que a iniquidade fique por cima e sobre ele descerá. Pesa sobre ele, onera-o não lhe permite voar ao repouso dos santos. Tal acontece se no perverso a razão for serva e a concupiscência dominar.

V. 18: “Louvarei o Senhor pela sua justiça” (18 a). Na verdade, Senhor, Tu és justo, ao protegeres os justos de tal modo que por Ti mesmo os iluminas e dispões acerca do pecador de sorte que fique assim punida a malícia que é deles, não tua. Essa declaração louva tanto o Senhor que nada podem as blasfêmias dos ímpios, os quais, procurando escusar os próprios crimes, não querem atribuir os pecados à sua própria culpa. Por tal motivo, encontram meios de acusar a sorte, ou o fado, ou o diabo, a cujas tentações podemos não consentir, conforme quis o nosso Criador; ou inventam que existe outra natureza, não oriunda de Deus, esses infelizes hesitantes e errados, ao invés de louvarem a Deus, pedindo que os perdoe. Não convém ser perdoado senão aquele que confessa: Pequei. Quem vê, pois, Deus classificar os méritos das almas de tal maneira que, dando a cada um o que é seu, não se altere absolutamente a beleza do universo, em tudo dá louvor a Deus. Esta confissão não é própria de pecadores e sim de justos. Não se trata da confissão de pecador quando o Senhor diz: “Bendigo-te ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25). Também diz o Eclesiástico: “Bendizei o Senhor por todas as suas obras. Proclamai a grandeza do seu nome, dai a conhecer os Seus louvores, todas as obras do Senhor são excelentes” (Eclo 39, 14.16). É possível assim interpretar este salmo se alguém, com mente piedosa, auxiliado pelo Senhor, distinguir entre os prémios dos justos e os suplícios dos pecadores, e como que através destas duas espécies de pessoas, o universo criado por Deus é ornada de maravilhosa beleza, de poucos conhecida. Disse o salmista: “Louvarei o Senhor pela sua justiça” (18 a), como alguém que não soube terem sido as trevas feitas por Deus, no entanto, terem sido por Ele dispostas em ordem. Pois Deus disse: “Faça-se Luz! E a Luz foi feita” (Gn 1, 3). Não disse façam-se as trevas e as trevas foram feitas; contudo as dispôs em ordem. Por isso se diz: “Separou a Luz das trevas. Deus chamou à Luz, dia e às trevas, noite” (Gn 4, 5). Eis a distinção: fez uma coisa e a pôs em ordem; não fez a outra, no entanto, a ordenou igualmente. Já no Profeta se acha que as trevas significam pecado: “A tua Luz brilhará na tua escuridão” (Is 58, 10) e o Apóstolo declara: “Mas quem tem ódio a seu irmão está nas trevas” (1 Jo 2, 11), e principalmente: “Despojemo-nos, por isso, das trevas e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13, 12). Não quer dizer que as trevas tenham natureza. Toda a natureza, enquanto tal, forçosamente é um ser. O ser, porém, pertence à luz; o não ser ás trevas. Quem, portanto, abandona quem o criou e se inclina para a criatura, o nada, entenebrece por causa deste pecado, todavia não perece inteiramente, mas ocupa ínfimo lugar. O salmista acrescentou no final: “E cantarei o nome de Deus Altíssimo” (18 b). Salmodiar relaciona-se à alegria; a penitência dos pecados, à tristeza.

Pode também aplicar-se este salmo à pessoa do homem – Senhor, se relacionarmos as expressões humildes nele empregadas e a nossa fraqueza, que ele assumiu.

SALMO 8

Comentário

Versículo 1: Conclui-se que frequentemente na Escritura uma só e a mesma coisa vem sugerida por muitas e várias comparações. Lagares assim podem representar igrejas, do mesmo modo que eira significa igreja. Na eira, ou nos lagares, de outra coisa não se cuida senão de limpar os frutos, tirando os invólucros, que haviam sido necessários para brotarem, crescerem e chegarem à maturidade da messe ou da vindima. Trata-se de separar os bons dos maus, não pelo lugar, mas pelo afecto, embora vivam juntos nas igrejas pela presença corporal. Virá, porém, o tempo em que se recolherão os grãos de trigo nos e as vinhas nos adegas. “Recolherá o trigo em seu celeiro; mas queimará a palha num fogo inextinguível” (Lc 3, 17). Ainda é possível entender o mesmo, por meio da seguinte comparação: recolherá o vinho nas adegas e lançará as grainhas aos animais, de sorte que o ventre dos animais sirva de ponto de comparação com as penas da geena. Há outro sentido para a expressão lagares, contanto que não nos afastemos do significado de igrejas. As uvas seriam o Verbo Divino. É costume aplicar também a figura dos lagares ao martírio. Os restos mortais dos que confessaram o nome de Cristo, calcados pela aflição das perseguições, ficaram em terra como grainhas; as almas, porém, partiram para o repouso das habitações celestes.

V. 2: “Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra” (2 a). Por que é admirável o Seu nome em toda a terra? A resposta é a seguinte: “Adorarei a Tua majestade, mais alta que os céus” (2 b). O sentido então seria: Senhor, que és nosso Senhor, como te admiram os habitantes da terra! Porque Tua magnificência, da humildade terrena, elevou-se acima dos céus.

V. 3: “Da boca das crianças e dos pequeninos fizeste uma fortaleza contra os teus inimigos” (3 a). Por crianças e lactentes toma apenas as mencionadas pelo Apóstolo: “Como as criancinhas em Cristo foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido” (1Cor 3, 1.2). Eram representadas pelas que precediam o Senhor com louvores a respeito das quais testemunham o Senhor, quando, ao pedirem os judeus que as repreendesse, respondeu: “Nunca lestes: da boca dos pequeninos e das crianças fizeste sair o louvor perfeito” (Mt 21, 16)? Com justeza não disse: Tiraste um louvor, e sim: Fizeste sair o louvor perfeito”. Nas igrejas existem os que já não bebem leite, mas tomam alimento sólido. Acerca destes declara o Apóstolo: “E, no entanto, é da Sabedoria que nós falamos entre os perfeitos” (1Cor 2, 6). Mas as igrejas não se perfazem apenas com esses tais, porque se fossem somente eles, não se cuidaria do bem do género humano. Vela-se por estes, porém, quando os ainda incapazes do conhecimento das coisas espirituais e eternas se nutrem da fé na história temporal, realizada em prol da nossa salvação, após a actuação dos patriarcas e profetas pela excelsa Virtude e Sabedoria de Deus e também pelo mistério da natureza humana assumida. Nesta fé está a salvação de cada fiel. Este, aceitando tal autoridade, cumpre os preceitos e assim purificado, arraigado e baseado na caridade para ter a capacidade de aprender com todos os santos qual a largura, o comprimento, a altura e profundidade… a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus.” (Ef 3, 18.19).

“Da boca das crianças e dos pequeninos fizeste uma fortaleza, contra os inimigos” (3 a). Devemos tomar em geral por inimigos, todos aqueles que impedem o homem de acreditar em coisas desconhecidas e prometem uma ciência certa, como prometem todos os hereges e os que a superstição dos pagãos denomina filósofos. Não digo que seja censurável a presença da ciência, mas eles julgam desprezíveis os degraus salutíferos e necessários da fé, pelos quais importa subir a uma segura meta que só pode ser eterna.

(…) Se não acreditardes não subsistireis” (Is 7, 9ss), Ele mesmo, em pessoa, disse: “Felizes os crêem sem terem visto” (Jo 20, 29). “Contra os teus inimigos”, também se diz: “ Bendigo-Te, ó Pai.”Senhor do Céu e da Terra, “porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25). Disse: aos sábios, não porque sejam sábios, mas porque julgam sê-lo.” Para fazer calar os adversários rebeldes” (3 b). Quem, senão o herege? Este é inimigo porque ao atacar a fé cristã parece defendê-la. Embora se possa aplicar a expressão inimigos aos filósofos deste mundo, visto que o Filho de Deus é a Virtude e Sabedoria de Deus, que ilumina todo aquele que se faz sábio pela verdade. Declaram-se eles amantes da verdade e por isso são denominados de filósofos. Igualmente, por esta razão, parecem defendê-la, apesar de serem seus inimigos.

V. 4: “Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos” (4 a). Lemos que pelo dedo de Deus foi gravada a Lei e dada por meio de Moisés, seu santo servo (Ex 31, 18; Dt 9, 10). Por isso, se julgarmos com acerto serem os dedos de Deus os seus ministros, cheios de Espírito Santo, por causa do mesmo Espírito que nele opera, uma vez que compuseram para nós toda a divina Escritura, interpretaremos aqui de modo adequado como céus os livros de ambos os Testamentos. A respeito do próprio Moisés, os magos do faraó, tendo sido por ele vencidos, disseram: “É o dedo de Deus” (Ex 8, 15). Embora tenha sido escrito acerca do Céu etéreo: “Os céus enrolam-se como um pergaminho” (Is 34, 4), todavia, por comparação alegórica, os livros são denominados céus.

“Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos” (4 a), isto é, verei e entenderei as Escrituras, que escreveste pelo brado do Espírito Santo, através destes teus ministros. A Tua magnificência, de facto, excede as palavras das Escrituras. Deus deixou as Escrituras ao nível das crianças e lactentes, conforme se conta em outro salmo: “Inclinou os Céus e desceu” (Sl 17, 10). E o fez por causa dos inimigos, que em sua loquacidade soberba são inimigos da cruz de Cristo, mesmo quando proferem alguma verdade; mas então não podem ser úteis ás crianças e lactentes.

“Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste” (4). A Lua e as estrelas foram colocadas nos céus, porque a Igreja universal, frequentemente comparada à Lua, e as Igrejas particulares, ás quais, a meu ver, alude o nome de estrelas, acham-se colocadas nas próprias Escrituras, designadas pelo vocábulo de Céus.

V. 5: “Que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares?” (5). Pode perguntar-se qual a diferença entre homem e filho do homem. Aqui, porém, como se encontra: “homem” ou “filho do homem”, insinua-se, evidentemente, que há diferença. Todo o filho do homem é homem, embora nem todo o homem possa ser entendido como filho do homem. Os portadores da imagem do homem terreno, que não é filho de homem, são chamados homens; os portadores da imagem do homem celeste (1 Cor 15, 49), melhor se chamam filhos dos homens. Aquele é denominado homem velho; este, homem novo (Ef 4, 22.24). Nesta passagem, portanto, homem é o terreno, e filho do homem, o celeste. A penitência do homem velho gerou em dores e gemidos a este filho do homem, isto é, o homem novo. Este, apesar de novo, ainda se denomina carnal, porque se nutre de leite. Diz o Apóstolo: “Não pude falar-vos como a simples homens espirituais, mas como a homens carnais”, e mostrando que já foram regenerados, prossegue: “Como a criancinhas em Cristo, foi leite que vos dei a beber, não alimento sólido”. Se recai na vida antiga, o que acontece com frequência, ouve a censura de que é homem: “Pois se há entre vós rivalidades e contendas, não é porque sois carnais e procedeis de modo meramente humano” (1Cor 3, 1-3)?

Vs. 6.7: O filho do homem foi visitado; em primeiro lugar o próprio homem. Senhor, nascido da Virgem Maria. Dele se afirma por causa da fraqueza da carne, que a Sabedoria de Deus designou assumir, e da humilhação da paixão: “Quase fizeste dele um ser divino” (6 a). Mas acrescenta-se a ressurreição e subida ao Céu: “De glória e de honra o coroaste. Deste-Lhe domínio sobre as obras das tuas mãos (6 b. 7 a). Apesar de serem os anjos obra das mãos de Deus, aceitamos a verdade de ter sido o Filho unigénito estabelecido até acima dos anjos, mas ouvimos e acreditamos ter sido colocado pouco abaixo dos anjos, pela humildade da geração carnal e da paixão.

Vs. 7.8.9: “Tudo submeteste a seus pés” (7 b). Nada exceptua, dizendo: “Tudo”. Pois ordena o Apóstolo que assim se acredite, dizendo: “é claro que se exclui aquele que lhe submeteu tudo” (1 Cor 15, 27). No entanto, não parece importante acrescentar: “rebanhos e gado, sem excepção, e até mesmo os animais bravios; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que percorre os caminhos do oceano” (8.9). “Tudo submeteste a Seus pés” (7 b), isto é, todas as criaturas santas e espirituais, entre as quais se incluem os santos varões da Igreja. “E até mesmo os animais bravios; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que percorre os caminhos do oceano”. (8 b.9). Animais bravios seriam precisamente os homens entregues ao prazer carnal, que não se elevam a nada de árduo ou penoso. O campo é o caminho espaçoso que conduz à perdição; no campo foi morto Abel (Gn 4, 8). Assim, é provável que alguém, descendo dos montes da justiça de Deus (“A Tua justiça”, diz o salmo, “é como os montes altíssimos”) Sl 35, 7), escolhendo as larguesas e facilidades do prazer carnal seja trucidado pelo diabo. Vê agora as aves do céu, os soberbos, dos quais foi escrito: “Com a sua boca protestam contra o céu” (Sl 72, 9). Considera também peixes do mar, os curiosos que transitam pelos mares, isto é, procuram nas profundezas deste século as coisas temporais. (…) Essas três espécies de vícios, a saber, o prazer carnal, a soberba e a curiosidade abrangem todos os pecados. A meu ver, é a isto que alude o Apóstolo João quando diz: “não ameis o mundo, nem o que há no mundo – a concupiscência da carne, ou a concupiscência dos olhos e o estilo de vida orgulhoso” (1Jo 2, 15.16). A curiosidade prevalece sobretudo por meio dos olhos. Igualmente a tentação do homem – Senhor foi tríplice: em relação a alimento, isto é, a concupiscência da carne, pois o diabo lhe sugere: “Ordena que estas pedras se convertam em pães” (Mt 4, 3); no atinente à vanglória, quando no monte lhe mostra as ruínas da Terra e lhas promete se o adorar; quanto à curiosidade, quando o aconselha a pular do pináculo do templo, para experimentar se os anjos viriam ampará-lo.

Por isso, não tendo o inimigo conseguido vencê-lo em nenhuma destas tentações, diz o evangelista: “Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junte dele” (Lc 4, 13).

V. 10: Repitamos agora o último versículo, que se encontra também no princípio do salmo e louvemos a Deus, dizendo: “Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o Teu nome em toda a Terra!” (10).

SALMO 9

Comentário

V. 1: Acreditamos em duas vindas do Senhor, uma passada, que os judeus não compreenderam, e outra futura, que nós e eles aguardamos; a vinda foi proveitosa aos gentios. “Deu-se o endurecimento duma parte de Israel, até que a totalidade dos gentios tenha entrado” (Rm 11, 25). Nota-se também haver dois juízos, insinuados nas Escrituras: um oculto, outro ás claras. O oculto realiza-se no presente. Dele afirma o Apóstolo Pedro: “É tempo de começar o julgamento pela cada de Deus” (1 Pd 4, 17). O juízo oculto é o castigo que agora exercita cada qual para sua purificação, ou admoestar a se converter. O juízo manifesto, porém, realiza-se quando o Senhor vier, julgar os vivos e os mortos. O Senhor tratará desses dois juízos, um oculto, outro manifesto, ao asseverar: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento” (Jo 5, 24), a saber o juízo manifesto; pois passar da morte à vida, através de alguma aflição, com a qual o Senhor flagela aquele que recebe como filho é juízo oculto. “Quem não crê já está condenado” (Jo 3, 18). Encontramos os dois juízos também no livro da Sabedoria, onde está escrito: “Por isso, como a meninos sem razão, lhes deste um castigo que os pôs a ridículo. Mas os que com semelhante correcção não se emendaram sofrerão um castigo digno de Deus” (Sb 12, 25.26).

V. 2: “Quero louvar-Te, Senhor, com todo o coração” (2 a). Não louva a Deus de todo o coração quem duvida de sua providência em algum ponto, mas louva quem percebe os segredos da Sabedoria de Deus, e quão grande é o prémio invisível daquele que diz: “Mais ainda, gloriamo-nos também das tribulações” (Rm 5, 3). Assim, todos os acontecimentos pertencem ao regime da divina providência. “E narrar todas as tuas maravilhas” (2 b). Narra as maravilhas de Deus quem sabe que elas se realizam não só visivelmente nos corpos, mas ainda invisivelmente nas almas, de modo, porém, muito mais sublime e excelente. Narra as maravilhas de Deus a alma que, acreditando nas coisas visíveis, passa a entender as invisíveis.

Vs 3.4: “Eu cantarei salmos ao teu nome, ó Altíssimo. Os meus inimigos batem em retirada” (3 b. 4 a). Quando foi que o inimigo retrocedeu? Acaso ao lhe ser ordenado: “Vai-te, Satanás” (Mt 4, 10). Então, efectivamente, o diabo que tentava, ambicionando prevalecer, retrocedeu, sem nada poder contra ele. Para trás ficam os homens terrenos. O homem celeste precedeu, embora tenha vindo posteriormente. “O primeiro homem, tirado da Terra, é terrestre; o segundo vem do Céu” (Cor 15, 47). Mas vinha da mesma estirpe o Senhor do qual disse João: “O que vem depois de mim, passou-me à frente, porque existia antes de mim” (Jo 1, 15). O Apóstolo: “esquecendo-se daquilo que está para trás e lança-se para o que vem à frente” (Fl 3, 13). O inimigo, por conseguinte, retrocedeu, não tendo conseguido enganar o homem celeste que tentara, e voltou-se para os terrenos, sobre os quais pode dominar. Por isso, ninguém o precede e fá-lo retroceder. “E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste” (1Cor 15, 49). Salmodie-se, pois, ao nome do Altíssimo, ao retroceder o inimigo, uma vez que é preferível fugir da sua perseguição a segui-lo como guia. Servem-nos de abrigo e esconderijo os segredos do Filho, porque o Senhor se tornou o nosso refúgio.

Vs. 4.5: “Tropeçam e caem mortos diante de ti” (4 b). Quais os que fraquejam e perecem senão os iníquos e os ímpios? “Tropeçar”, enquanto nada poderão fazer, e “perecer”, porque não serão mais ímpios; “diante de ti”, de Deus, isto é, o conhecimento de Deus, do mesmo modo que pereceu aquele que afirmou: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl2.20). Mas por que razão “tropeçam e caem mortos diante de ti” (4b)? Porque “Tu defendes o meu direito e a minha justiça” (5 a), isto é, fizeste meu aquele juízo, onde eu parecia ser julgado, e tornaste minha a causa, que os homens condenaram, apesar de eu ser justo e inocente. “Sentando-Te no tribunal como justo juiz” (5 b). Talvez assim o Filho se dirija ao Pai. Ele também disse: “Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto” (Jo 19, 11), referindo-se à justiça do Pai e aos seus próprios segredos, porque o juiz dos homens, para o bem dos homens, foi julgado. Ou provavelmente Ele, enquanto homem diga a Deus: “Sentando-te no Tribunal como justo juiz” (5 b), chamando de tribunal a sua alma, de sorte que corpo seria a terra, denominada estrado de seus pés (Is 66, 1); porque Deus em Cristo reconciliava consigo o mundo (2Cor 5, 19). Seria ainda a Igreja, sem mancha nem ruga (Ef 5, 27), digna, portanto, dos segredos do filho, diria a seu esposo: “Sentando-Te no Tribunal como Justo Juiz” (5 b), porque ressuscitaste dos mortos e subiste ao Céu, e estás sentado à direita do Pai. Se alguém escolher alguma destas opiniões, não exorbita da regra da fé.

V. 6: “Ameaçaste os pagãos, exterminaste os ímpios” (6 a). É preferível considerar isso como dito de nosso Senhor Jesus Cristo. Quem foi que repreendeu as nações, e então pereceu o ímpio, senão Cristo que após ter subido ao Céu enviou o Espírito Santo? Dele repletos, os apóstolos pregaram corajosamente a Palavra de Deus. Por esta repreensão pereceu o ímpio, sendo justificado e feito piedoso. “Apagaste o seu nome para sempre” (6 b). Foi apagado o nome dos ímpios uma vez que não são ímpios os que acreditam no Deus verdadeiro. O nome deles foi apagado no tempo. Qual o significado de “para sempre” senão da eternidade?

V. 7: “A ruína dos inimigos é completa e definitiva; destruíste as suas cidades, a memória deles desapareceu” (7). Talvez seja no final que se embotarão as espadas do inimigo, porque até lá este consegue alguma coisa. Agora o Senhor age ocultamente; no último Juízo, porém, as cidades serão destruídas. As cidades onde reina o diabo e onde se realizam os planos dolosos e fraudulentos, como numa cúria. Povo desta cidade seriam as afeições delicadas e movimentos desordenados da alma, que suscitam sedições quotidianas no homem. Onde há rei, cúria, ministros, povo, há cidade. Mas, tais coisas não existiriam nas más cidades, se primeiro não existissem em cada um dos homens, que são elementos e germes das cidades. O Senhor as destrói, quando, expulso o príncipe do qual foi dito: “Agora é que o dominador deste mundo vai ser lançado fora” (Jo 12, 31), esses reinos são devastados pela palavra da verdade, os planos malignos se entorpecem, subjugam-se as funções dos membros e dos sentidos, sendo tudo transferido para a milícia da justiça e das boas obras, segundo a palavra do Apóstolo: “O pecado não reine mais no vosso corpo mortal” (Rm 6, 12). Então a alma se tranquiliza e o homem se orienta para o repouso e a felicidade.

Vs. 8.9: “Mas o Senhor é Rei pelos séculos” (8 a). Por que se amotinam as nações e os povos fazem planos insensatos contra o Senhor e contra o seu ungido (Sl 2, 1)? “Mas o Senhor é Rei pelos séculos. Ele preparou o seu trono para o julgamento” (8). “E assim julgará o mundo com justiça, governará as nações com equidade” (9). Isto é, distribuirá a recompensa de acordo com os méritos. À Sua direita porá as ovelhas e à Sua esquerda, os cabritos (Mt 25, 33). Mas o Senhor julgará com equidade e justiça, tendo ainda o testemunho da sua consciência que, conforme o caso, os acusem ou defendam (Rm 2, 15).

V. 10: “O Senhor é o refúgio do oprimido” (10 a). Por mais que persiga o inimigo que retrocedeu, como há-de prejudicar aqueles de quem o Senhor se fez o refúgio? Assim acontecerá, se neste século, que tem o inimigo por magistrado, eles preferirem ser pobres. De tal pobre o Senhor se fez o refúgio. Fá-los assim pobres, “porque o Senhor corrige os que ama e castiga todo o que reconhece como filho” (Hb 12, 6). O salmista explicou o que seja “a sua defesa, no tempo da angústia” (10 b) ao acrescentar: “na angústia”. A alma não se volta para Deus, ao não ser que volte as costas ao mundo; nem se aparta deste mundo da melhor forma que nas ocasiões em que se misturam trabalhos e dores aos prazeres fúteis, maus e perniciosos.

V. 11: “Os que conhecem o Teu nome, Senhor, confiam em ti” (11 a), desistindo de confiar nas riquezas e outros afagos deste mundo. O conhecimento do nome de Deus oportunamente acolhe a alma à busca de onde fixar sua esperança, quando se retira deste mundo; mas conhecimento do nome é conhecer quem o possui. O nome não é nome por si mesmo e sim devido àquilo que significa. Foi dito: “Cujo nome é o Senhor” (Jr 33, 2). Por isso, quem se submete ao serviço de Deus de bom grado, conhece esse nome, “Os que conhecem o teu nome, Senhor, confiam em ti”. O Senhor diz também a Moisés: “«Eu Sou aquele que Sou»”. Assim dirás aos filhos de Israel: “«Eu Sou» enviou-Me a vós” (Ex 3, 14). Desistam, por conseguinte, de esperar e amar as coisas temporais e dêem-se à esperança eterna os que conhecem o nome de quem disse: “Eu sou Aquele que sou”, e do qual foi declarado: “«Eu Sou» enviou-me a vós”. “Pois nunca abandonaste quem te procura” (11 b). Os que procuram, já não buscam as coisas transitórias e caducas, pois “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6, 24).

V. 12: “Cantai ao Senhor, que habita em Sião” (12 a), diz-se aos que o Senhor não abandona, e que O procuram. Sião, que se traduz por: “Lugar de observação” e é a imagem da Igreja no presente, como Jerusalém é a imagem da Igreja futura, da cidade dos santos, já na fruição da vida dos anjos porque Jerusalém se traduz por: “Visão de Paz”. A observação precede a visão, como esta Igreja precede aquela prometida, a cidade imortal e eterna. Mas precede no tempo, não em dignidade, porque é mais honroso o fim a que tendemos do que aquilo que fazemos, em vista de merecermos alcançar. A mais diligente observação incidiria em erro, se o Senhor não habitasse na Igreja agora existente. A esta Igreja foi dito: “O templo de deus é santo, e esse templo sois Vós” (Cor 3, 17) e: “No homem interior, que Cristo, pela fé, habite em vossos corações” (Ef 3, 16). Recebemos, então, ordem de cantar ao Senhor que habita em Sião para louvarmos em concórdia o Senhor que habita na Igreja. “Anunciai as Suas obras entre as nações” (12 b).

V 13: “Ele persegue os assassinos, lembra-se deles” (13 a). Constitui certa resposta aos enviados a evangelizar àquela ordem: “Anunciai entre as nações as suas maravilhas”, que diriam: “Senhor, quem acreditou no nosso anúncio” (Is 53, 1)? E ainda: “Por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte” (Sl 43, 22). Declara que os cristãos que hão-de morrer na perseguição colherão mais frutos na eternidade. (…) Virá o último Juízo e então se manifestará a glória dos mortos e o castigo dos assassinos. “Lembrou-se”; ninguém pense ter sido usada tal expressão por haver esquecimento em Deus. Todavia, como somente após longo tempo se dará o juízo, foi empregada a palavra como o modo de pensar dos fracos, que julgam ter Deus esquecido, uma vez que não atende tão depressa como eles querem., a eles também dirige a frase seguinte: “e não esquece o clamor dos infelizes” (13 b).

Vs. 14. 15: Pergunto, então: Qual o clamor dos pobres que Deus não esquece? Será este: “Tem piedade de mim, Senhor, vê a minha aflição diante dos inimigos; livra-me das portas da morte”. Acaso não seria porque interpela a favor dos santos, Cristo, que sendo rico, se fez pobre por vós? (2Cor 8.9), o mesmo que diz: “Livra-me das portas da morte. Assim poderei cantar-te louvores às portas de Sião” (14 c.15 a). É exaltado o homem, não só aquele que é assumido, a Cabeça da Igreja, mas também qualquer um de nós, os demais membros. É exaltado, eliminando os maus desejos, que são as portas da morte. (…) “A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro” (1Tm 6, 10); é, por conseguinte, a porta da morte. Chega-se a esses prazeres pelos desejos, que são as portas da morte. São, ao invés, portas da filha de Sião os esforços louváveis pelos quais se alcança a visão da paz na santa Igreja. Nessas portas são bem anunciados os louvores de Deus, “e não deis as coisas santas aos cães, nem lanceis as vossas pérolas aos porcos” (Mt 7, 6). Quando, porém, os louvores de Deus são anunciados através de boas obras, dá-se aos que pedem, manifesta-se aos que buscam e abre-se aos que batem. Ou talvez fossem portas da morte os sentidos corporais e os olhos, que se abriram para o homem no momento em que se provou do fruto da árvore proibida (Gn 3.7); ao invés, elevam-se acima deles aqueles aos quais se diz: “Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas” (2Cor 4, 18). Portas da filha de Sião são talvez os sacramentos e os elementos da fé. (…) “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que O amam (1Cor 2, 9).

Vs. 15.16: E continua: “e celebrar a tua protecção com alegria” (15 b), isto é, com felicidade serei cercado por Tua salvação, nosso Senhor Jesus Cristo, Virtude e Sabedoria de Deus… Por conseguinte, afirma a Igreja ser na terra afligida, mas salva com a mesma esperança.

“Os pagãos caíram no fosso que fizeram” (16 a). Note-se como ao pecador é reservado castigo proporcional às suas obras; e os que quiseram perseguir a Igreja se afundaram na corrupção que julgavam causar. “Os seus pés ficaram presos na rede que esconderam (16 b). Armadilha oculta é o pensamento fraudulento. Por pés da alma, com razão, se entende o amor, que no caso de ser mau se chama cobiça ou luxúria, se for recto, caridade. Move-se a alma pelo amor, lugar para o qual tende. Lugar para a alma não é o espaço, ocupado pelas formas corporais, mas o prazer onde ela se alegra de ter chegado pelo amor. O prazer pernicioso segue a cobiça, o deleite fautuoso segue a caridade. Também a caridade foi denominada raiz quando o Senhor falou das sementes que secam em sítios pedregosos, com o calor do sol, porque não têm raízes profundas (Mt 13, 5). Com isso refere-se àqueles que se alegram por receber a palavra da verdade, mas cedem às perseguições, às quais se resiste somente pela caridade. Por isso, os pés dos pecadores, isto é, o amor é apanhado na armadilha que eles ocultam, porque ao seguir-se o deleite à acção fraudulenta, Deus os entrega à impureza de seus corações (Rm 1, 24), já os aprisiona o prazer, de sorte que não têm coragem de romper com aquele amor e entregar-se a ocupações úteis. Se o tentarem, aflige-se-lhes a alma, como se quisessem tirar o pé de grilhões. Sucumbindo à dor, não querem abandonar os prazeres perniciosos.

V. 17: “O Senhor manifestou-se e fez justiça” (17 a). Os juízos de Deus são os seguintes: da tranquilidade da sua bem-aventurança, ou dos segredos da sabedoria, onde são recebidas as almas dos bem-aventurados. Mas, como são torturados e como faz Justiça O Senhor? “E o ímpio caiu nas suas próprias malhas” (17 b).

V. 18: Segue-se: “Retirem-se os ímpios para a mansão dos mortos” (18 a), isto é, sejam entregues às suas próprias mãos, enquanto são poupados, e embaracem-se no deleite mortífero. “Todos os pagãos que rejeitem a Deus” (18 b), “E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento” (Rm 1, 28).

V. 19: “Mas o pobre não será esquecido eternamente” (19 a). Agora parece esquecido, reflectindo-se que os pecadores estão repletos de felicidade neste mundo, e os justos estão mergulhados em trabalhos; “mas nem para sempre se há-de perder a esperança dos infelizes” (19 b). Por este motivo, agora é preciso que os bons, já distintos pelos propósitos, tenham paciência de suportar os maus, até que sejam separados no último juízo.

Vs. 20.21: “Levanta-Te, Senhor! Que o homem não prevaleça!” (20 a). Implora-se pelo juízo futuro, mas antes que venha diz-se: “julga as nações na tua presença” (20 b). Isto é, ocultamente, diante de Deus, conforme entenderam uns poucos, santos e justos. “Faz com que os povos temam, ó Deus” (21 a). Parece alusão ao Anti-Cristo, do qual diz o Apóstolo: “Antes de vir a apostasia e manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição” (2Ts 2, 3). “Faz-lhes saber que são simples mortais” (21 b). Os que não quiseram ser libertados pelo Filho de Deus e pertencer ao Filho do homem e ser filhos dos homens, isto é, novos homens, sirvam ao homem, isto é, velho homem porque “são simples mortais”.

SALMO 10 (9, 22-39)

Comentário

Versículos 1.3: Como se acredita que o Anti-Cristo há-de chegar a tal cúmulo de vanglória e tanto lhe será permitido fazer contra os homens e os santos de Deus que alguns fracos julgarão descuidar-se Deus dos acontecimentos humanos. O salmista apresenta vozes plangentes a perguntarem por que o juízo é adiado. “Senhor, porque te conservas à distância” (1 a)? Em seguida, quem assim perguntou, como se de repente entendesse: “E te escondes nos tempos de angústia?” (1 b). Isto é, oportunamente desdenhas e mandas tribulações para acender nas almas o desejo da tua vinda: Por isso o salmista insinua o desígnio de Deus de usar de delongas, dizendo: “No seu orgulho, o ímpio persegue o infeliz” (2 a). É admirável e real nas crianças de futuro promissor com que empenho se inflama o desejo de viver bem quando elas se comparam aos pecadores. Este mistério também se realiza ao permitir Deus que haja hereges. Não que os próprios hereges o tenham em vista, e sim que a divina providência assim dispõe relativamente a seus pecados. Ela cria a luz e põe em ordem, mas somente coloca no devido lugar as trevas (Gn 3, 4), para que em contraste, a luz se torne mais agradável. Igualmente em confronto com os hereges é mais aprazível a descoberta da verdade. Por meio de tal confronto, manifestam-se aos homens os que agradam a Deus e só dele são conhecidos. “Que ele seja apanhado na cilada que armou” (2 b), isto é, os maus pensamentos deles transformam-se em vínculos. Mas por que se tornam vínculos? “O pecador vangloria-se da sua ambição” (3 a): A língua dos aduladores prende as almas nos pecados. É aprazível a acção que não receia encontrar repreensor. “O ganancioso blasfema e despreza o Senhor” (3 b). Daí serem colhidos nas ciladas que urdiram.

V. 4: “O ímpio diz, na sua arrogância: «Ele não me castigará! Deus não existe!» É só nisto que pensa” (4). Ninguém felicite o homem próspero em seu caminho, que não encontra quem castigue os seus pecados e sim quem os elogie; nisto consiste a maior ira do Senhor. O pecador, pois, irritou o Senhor a ponto de suportar esse castigo, a saber, o de não sofrer os flagelos da correcção. Muito se encoleriza quando nada exige, parece esquecer e não dar atenção aos pecados, deixando que sejam obtidas riquezas e honras por meio de fraudes e crimes. Sucederá assim principalmente ao Anti-Cristo, que aparentará diante dos homens ser feliz, a ponto de ser considerado um deus. Mas as consequências demonstram como é grande tal ira de Deus.

V. 5: “Julga que os seus caminhos hão-de prosperar sempre” (5 a). Quem sabe em que consiste a alegria ou o regozijo das almas, avalia o grande mal que há em ser abandonado pela luz da verdade. Que castigo enorme, portanto, não é o daquele que, gozando de prosperidade no meio de seus pecados, chega ao ponto de não ter mais Deus presente. “Mas os teus juízos estão muito acima dele” (5 b). Consciente da sua maldade parece-lhe não sofrer castigo algum e acredita que Deus não julga. Assim os juízos de Deus estão longe de sua face, sendo esta a maior condenação. “Ele despreza todos os seus adversários” (5 c).Engana-se de que haverá de vencer todos os reis e obter sozinho o reino; então também o Apóstolo anuncia a seu respeito: “Aquele que se ergue contra tudo o que se chama Deus, ou é objecto de culto, até a ponto de se sentar no templo de Deus e de se ostentar a si mesmo como Deus” (2 Ts 2, 4).

V. 6: O pecador, entregue à concupiscência do seu coração e destinado à última condenação, chegará por meio de artifícios malignos ao ápice do domínio vão e inútil. Continua o salmista: “Diz em seu coração: «Jamais serei abalado; não hei-de cair na desgraça» ” (6). O ânimo perdido, carente de qualidade e alheio à luz da justiça, por meios de artifícios malignos esforça-se por ter acesso a fama tão duradoura que seja celebrada até pelos pósteros. Assim, não podendo tornar-se conhecidos pelo bem que fariam, desejam que ao menos deles falem mal, contanto que seu nome seja largamente divulgado.

V. 7: “A sua boca está cheia de maldição e mentira” (7 a). Grande maldição é obter o Céu por artifícios tão nefandos e adquirir tais méritos para alcançar a habitação eterna. Tal ambição, porém, não produzirá efeito. A sua boca valerá apenas para perdê-lo, por ter ousado prometer a si mesmo tais coisas com amargor e dolo, isto é, com ira e ciladas, fazendo uma multidão aderir a seu partido. “Na sua língua só há malícia e maldade” (7 b). Nada mais laborioso do que a iniquidade e a impiedade.

V. 8: “Põe-se de emboscada junto aos povoados” (8 a). Os possuidores de vontade depravada, que anseiam por tal felicidade, e não buscam os bens eternos, caem nos seus laços. “E esconde-se para matar o inocente” (8 b) porque não se entende com facilidade o que é desejável e o que há-de ser evitado. Matar o inocente, porém, é transformar um inocente em malfeitor.

Vs. 8.9: “Os seus olhos espiam o infeliz” (8 c). Perseguirá principalmente os justos, dos quais se disse”Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céu” (Mt 5, 3). “Escondido como o leão no seu covil” (9 a). Chama de leão escondido aquele em quem actuam a força e o dolo. A primeira perseguição da Igreja foi violenta. Os cristãos eram coagidos a sacrificar, por meio de proscrições, tormentos, matanças. A segunda, praticada por quaisquer hereges e falsos irmãos é fraudulenta. A terceira suscitada pelo Anti-Cristo, a mais perigosa de todas, porque é violenta e fraudulenta. Empregará força no governo, dolo nos milagres. Novamente se repetem as mesmas coisas: “Arma ciladas para assaltar o indefeso e, quando o apanha, arrasta-o na sua rede” (9 b c).

V. 10: Também os dois versículos seguintes têm idêntico significado. “Abaixa-se, deita-se por terra” (10 a). É o dolo. “E as suas garras caem em cima dos infelizes” (10 b).

Vs. 11.12: “Depois, diz em seu coração: “ «Deus esqueceu-se e desvia o rosto para não ter de ver mais» ” (11). Esta inclinação e queda são as mais infelizes, dão-se quando a alma humana, de certo modo, prospera no meio das suas iniquidades e julga estar sendo poupada, enquanto efectivamente está obcecada e reservada para último e oportuno castigo do qual já agora se fala: “Levanta-Te, Senhor! Ó Deus, ergue a tua mão” (12 a), isto é, manifeste-se o teu poder. “E não te esqueças dos miseráveis” (12 b), isto é, como julgam os ímpios, que afirmam “Deus esquece-se e desvia o rosto para não ter de ver mais” (11). Dizem que Deus não vê jamais aqueles que asseguram que não cuidar Ele das coisas humanas e terrenas. De certa maneira, a terra é o fim das coisas. A Igreja, portanto, lutando, no tempo, qual nave no meio de vagalhões e porcelas, desperta o Senhor que parece adormecido, a fim de que ordene aos ventos e volte a bonança. Diz, portanto: “Levanta-Te, Senhor! Ó Deus ergue a tua mão, não te esqueças dos miseráveis” (12).

Vs. 13.14: Por isso, entendendo já ser manifesto o juízo, perguntam exultantes: “Porque há-de o ímpio desprezar a Deus e dizer no seu coração que Tu não castigas?” (13). Prossegue: “Mas Tu vês a angústia e o pesar, observas tudo e tomas essa causa nas tuas mãos (14 a). Continua: “A ti se abandona confiadamente o pobre. Tu és o amparo do órfão” (14 b), daquele cujo pai morreu, a saber, este mundo, pelo qual foi gerado carnalmente e já pode dizer: “O mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6, 14). Deus se fez o pai destes órfãos. O Senhor ensina os discípulos a tornarem-se órfãos, dizendo-lhes: “A ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai””(Mt 23, 9). Ele mesmo foi o primeiro a dar exemplo, dizendo: “Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos” (Mt 12, 48)?

Vs. 15.16: “Quebra o braço dos ímpios e dos pecadores” (15 a). Chamou de braço, portanto o seu poder, contrário ao poder de Cristo, a respeito do qual se declara: “Levanta-Te, Senhor! Ó Deus, ergue a tua mão” (12 a). “Castiga a sua maldade, para que ela desapareça” (15 b), isto é, será julgado pelo seu pecado e perecerá por causa dele. De que nos admirarmos se continua: “O Senhor é rei para sempre; desapareçam os pagãos, da terra que lhe pertence” (16)?

V. 17: “Ouve, Senhor, o grito dos humildes” (17 a), desejo em que ardiam, nas angústias e tribulações deste mundo, aspirando pelo dia do Senhor. “Atende-os e conforta-os no seu coração?” (17 b). O Senhor Deus ouve a disposição do coração e não o som da voz.

V. 18: “Faz justiça aos órfãos e oprimidos”, (18 a), não daquele que se adapta a este mundo, nem do soberbo. “E que ninguém, neste país, volte a espalhar o terror”, (18 b), quando o Filho do homem vier julgar em favor do órfão, que despiu o velho homem. Assim exalta, de certo modo, o Pai.

O próprio dia da vinda do Senhor pode ser incluído nos segredos do Filho, embora a futura presença do Senhor haja de ser manifesta. Daquele dia foi declarado que: “ninguém o sabe: nem os anjos do Céu, nem o Filho, só o Pai (Mt 24, 36). O que haverá de mais oculto do que o dia que se disse desconhecido do próprio juiz, não quanto ao seu conhecimento, mas por não dever transmiti-lo? Quanto aos segredos do Filho, se alguém não quiser subentender o Filho de Deus, mas julgue o próprio David, escute como as palavras são dirigidas ao Senhor: “Senhor, Filho de David, tem misericórdia de nós!” (Mt 20, 30). É igualmente assim que o anjo anuncia: “O Senhor Deus vai dar-Lhe o trono de seu pai David” (Lc 1, 32). A interrogação do mesmo Senhor aos judeus concorda com este modo de entender: “Como é, então, que David, sob a influência do Espírito, lhe chama Senhor, dizendo: Disse o Senhor ao meu Senhor: “ «Senta-Te à minha direita, até que Eu ponha os teus inimigos por estrado de teus pés» ”(Mt 22, 44)? Ele, portanto, aqui ensina a fé verdadeira e genuína, isto é, que Ele é o Senhor do rei David, “No princípio havia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. Por Ele é que tudo começou a existir”, (Jo 1, 1-3); e filho, enquanto nascido da descendência de David segundo a carne (Rm 1, 3).

Se aceitais que Cristo é Filho do homem e, portanto, filho de David, não recuseis crer que é Filho de Deus e, por isso, Seu Senhor.

SALMO 11 (10)

Comentário

Versículo 1.2: Vejamos, pois o próprio texto do salmo, que, a meu ver, é cantado contra os hereges, os quais rememorando e exagerando os pecados de muitos na Igreja, como se fossem justos todos eles, ou ao menos a maioria, esforçam-se por nos afastar e arrebatar do seio da verdadeira mãe, a única Igreja. É sabido que Cristo nas profecias, onde muitos nomes lhe são atribuídos alegoricamente, é também denominado monte. “No Senhor me refugio; como ousais dizer-me: «Foge para o monte com as aves?» (1). Tenho um só monte de minha confiança. Como, então, dizeis que passe para o vosso lado, como se existissem muitos Cristos? Devo ser pássaro tendo por asas as virtudes e preceitos de Deus. Tenho a casa onde descansar, porque confio no Senhor, pois: “Até os pássaros encontram abrigo” (Sl 83, 4). “E o Senhor é o refúgio do oprimido” (Sl 9, 10). Digamos portanto, com toda a confiança, para não perdermos a Cristo procurando-o entre os hereges: “No Senhor me refugio”; Como ousais dizer-me: «Foge para o monte com as aves?» (1). “Os ímpios retesam o arco e ajustam as flechas à corda para disparar às escondidas contra os de coração recto” (2). Terrores iminentes, provindo dos pecadores, a fim de passarmos para o seu lado, como se eles fossem justos” Os ímpios retesam o arco” (2 a). Creio nas Escrituras, de onde eles extraem sentenças envenenadas, interpretando-as carnalmente. “E ajustam as flechas à corda” (2 b). “Preparam ocultamente no coração as palavras que vão arremessar apoiados na autoridade das Escrituras”. Para disparar às escondidas contra os de coração recto” (2 c); “Não vos iludais: «As más companhias corrompem os bons costumes» ” (1 Cor 15, 33). Contra esses digamos: “No Senhor me refugio”. (…) Lembro-me de ter prometido explorar neste salmo o que pode significar lua. Segundo uma opinião, a lua alegoricamente significa a Igreja, que em relação à parte espiritual brilha e relativamente à carnal é escura. Por vezes a parte espiritual aparece aos homens, por meio de boas obras; outras vezes, contudo, fica escondida na consciência, só de Deus conhecida, porque apenas o corpo é visível aos homens. Assim sucede ao orarmos só no coração, porque somos convidados a manter o coração ao alto, junto do Senhor e não da terra. Também, por lua se entende a Igreja, que carece de luz própria, mas é iluminada pelo Filho unigénito de Deus, denominado Sol em muitas passagens das Sagradas Escrituras. (…)”No Senhor me refugio”. Com esta declaração, mostra-se Ele como trigo e tolera as palhas, até ao tempo de serem ventiladas. “No Senhor me refugio”. Temas os que confiam nos homens. “Maldito aquele que confia no homem (Jr 17, 5). (…) Duas coisas não são incertas para mim: a bondade de Deus é minha fé. Por que te impões, tu de quem nada de certo sei? Deixa-me orar: “No Senhor me refugio”.

V. 3: “No Senhor me refugio; como ousais dizer-me: «Foge para o monte como as aves?». “Os ímpios retesam o arco e ajustam as flechas à corda, para disparar às escondidas contra o coração recto.” (1.2). E deixando-os, dirija a palavra ao Senhor, dizendo: “Quando até os fundamentos são abalados, que poderá fazer o justo?” (3). Diga-o opondo-se a todos os hereges. Todos, pois, na medida em que deles dependia, destruíram os louvores que Deus tirou da “boca das crianças e dos pequeninos” (Sl 8, 3), agitando com questões fúteis e minuciosas os pequeninos, impedindo-os de se nutrirem do leite da fé.

V. 4: “O Senhor habita no seu Santuário” (4 a). É isto o que assegura o Apóstolo: “Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá. Pois o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós (1 Cor 3, 17). Destrói o templo de Deus quem destrói a unidade, pois não se mantém unido à Cabeça. “É a partir dele que o Corpo inteiro, bem ajustado e unido, por meio de toda a espécie de articulações que o sustentam, segundo uma força à medida de cada uma das partes, realiza o seu crescimento com o Corpo, para se construir a si próprio no amor” (Ef 4, 16). Neste templo santo está o Senhor. Ele consta de muitos membros, cada qual fazendo a sua parte, para uma edificação na caridade. Destrói-o quem, para dominar, se separa da sociedade Católica. “O Senhor habita no seu santuário; o Senhor tem nos céus o seu trono;” (4 a b). Se interpretas a palavra céu como sendo o justo, assim como tomas por terra o pecador, ao qual foi dito: “Porque tu és pó e ao pó voltarás” (Gn 3, 19). Entenderás que a frase: “O Senhor habita no seu santuário” (4 a); é repetida na expressão: “O Senhor tem nos céus o seu trono;” (4 b). “Os Seus olhos contemplam o mundo” (4 c). “E as Suas pupilas observam os filhos dos homens” (4 d).” “Os Seus olhos contemplam o mundo” (4 c). “E as Suas pupilas observam os filhos dos homens” (4 d). De bom grado chamarei de “filhos dos homens” os regenerados de seus antigos costumes, por meio da fé. Eles, efectivamente, exercitam-se na procura, através de certas passagens obscuras das Escrituras, que seriam os olhos de Deus fechados assim como são iluminados, para sua alegria, pelos textos claros, que seriam os olhos de Deus abertos.

V. 5: “O Senhor perscruta o justo e o ímpio, mas odeia os que amam a violência” (5). Porque havemos de temer que nos prejudiquem de algum modo os ímpios, que participassem de nossos sacramentos sem sinceridade de coração, uma vez que o Senhor interroga o justo e o ímpio? (…) Quem ama a iniquidade não prejudica aquele que crê em Deus, não põe sua esperança num homem, mas causa dano somente a sua própria alma.

Vs. 6.7 “Fará chover sobre os ímpios carvões acesos e enxofre” (6 a). Se em geral se entendem por nuvens os profetas bons ou maus, de tal maneira o Senhor dispõe a respeito destes últimos que, por seu intermédio faz chover “laços” sobre os pecadores. Se por nuvens se entender somente os bons e verdadeiros profetas é evidente que Deus, por meio deles, faz chover “laços” apenas sobre os pecadores, embora irrigue também os piedosos para que dêem tanto fruto. Para uns, diz o Apóstolo: “Somos odor da morte que conduz à morte; para outros da vida que conduz à vida” (2 Cor 2, 16). Não só os profetas, mas todos os que irrigam as almas com a palavra de Deus podem ser chamados nuvens. “E vento tempestuoso será a taça que lhes cabe” (6 b). Eis a pena e o fim daqueles por cuja causa o nome de Deus é blasfemado: primeiro são devastados pelo fogo das suas paixões; segundo por suas obras fétidas são expulsos dos bem-aventurados; por fim, arrancados e submersos no inferno, sofrem penas indizíveis. “Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos; ungiste com óleo a minha cabeça, a minha taça transbordou” (Sl 35, 9). “Podem saciar-se da abundância da tua casa” (Sl 35, 9). Penso que foi denominado taça, para não julgarmos que a divina Providência actue sem proporção, nem medida, mesmo ao tratar-se dos suplícios dos pecadores. Por isso, apresentando, de certo modo, o motivo de assim acontecer, acrescentou o salmista: “Na verdade, o Senhor é justo e ama a justiça.” (7 a). “Os homens honestos contemplarão a sua face” (7 b). a Sua face, a saber, o Seu conhecimento. A face de Deus é o poder com que se manifesta aos que são dignos. Ou, provavelmente, porque não se dá a conhecer aos maus e sim aos bons.

SALMO 12 (11)

Comentário

Versículo 1: Oito pode representar o dia do juízo. É possível interpretar como oito a eternidade, que será concedida aos santos depois do tempo, correspondente ao ciclo de sete dias.

V. 2: “Salva-nos Senhor, pois cada vez há menos justos!” (2 a), isto é, já não se encontra um santo. “A lealdade desapareceu de entre os filhos dos homens” (2 b). A verdade é uma só, e ilumina as almas santas, mas como são muitas as almas, pode dizer-se que nelas há muitas verdades, como de um só rosto se reflectem muitas imagens nos espelhos.

V. 3: “Mentem uns aos outros;” (3 a). Próximo são todos os homens, porque a ninguém se deve fazer o mal, “o amor não faz mal ao próximo” (Rm 13, 10). “Na sua língua há só engano, só há duplicidade em seu coração” (3 b c).

V. 4: “Que o Senhor acabe com esses lábios de mentira, com toda a língua que profere arrogâncias” (4 a b). Todos, isto é, ninguém se repute excepção, conforme diz o Apóstolo: “Tribulações e angústia para todo o ser humano que pratica o mal: primeiro o judeu, depois o grego!” (Rm 2, 9). Língua arrogante, língua soberba.

V. 5: “Como aqueles que dizem: «Confiamos na força da nossa língua e os nossos lábios nos defenderão; quem nos poderá dominar»? (5). O salmista faz referência aos soberbos hipócritas, insubmissos a Deus, põem a esperança em suas próprias palavras, para enganar os homens.

V. 6: “O Senhor diz: «Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, me levantarei e porei a salvo aquele que é desprezado» (6). Foi assim que o próprio Senhor no Evangelho se compadeceu de seu povo desprovido do chefe. Por isso diz o Evangelho: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Mt 9, 37). Entendamos isso do Deus Pai, que se dignou enviar o Filho, em prol dos necessitados e dos pobres, a saber, dos carentes de bens espirituais, por indulgência e pobreza. Por este motivo, o sermão da Montanha, segundo Mateus assim começa: “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5, 3). “Porei a salvo”. Não disse o que porá a salvo; mas o lugar salutar significa Cristo, segundo a palavra: “Porque meus os olhos viram a Salvação” (Lc 2, 30). Daí se conclui que o Pai lhe deu meios de afastar a miséria dos indigentes e consolar os gemidos dos pobres (…). “Ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da lei” (Mt 7, 29).

V. 7: “As palavras do Senhor são verdadeiras” (7 a). É a fala do profeta. Puras, não corrompidas, por simulação. Muitos pregam a verdade, mas não com pureza, porque a vendem pelo preço das comodidades do mundo. A respeito deles afirma o Apóstolo que anunciam a Cristo por ambição, sem sinceridade (Fl 1, 17). “São como a prata limpa no crisol” (7 b). As palavras do Senhor foram acrisoladas para os pecadores, mediante as tribulações. “Sete vezes refinada” (7 c). Pois sete são também as bem-aventuranças que o Senhor enumerou no Sermão da Montanha. “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Felizes os que choram porque serão consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a aterra. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os purificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. (Mt 3, 9). É de se notar que todo aquele prolixo sermão trata das sete sentenças, pois a oitava, que reza: “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça” significa o próprio fogo que acrisola a prata sete vezes.

V. 8: “Tu, Senhor, cuidarás de nós e nos defenderás para sempre dessa gente” (8). Aqui como indigentes e pobres, lá como opulentos e ricos.

V. 9: “Os ímpios vagueiam por toda a parte; são uma vergonha para os filhos dos homens” (9 a b), tomados pela cobiça de bens temporais, móveis como uma roda, num ciclo de sete dias. Por isso não alcançam o oitavo, o eterno que deu o título a este Salmo. Assim diz Salomão: “O rei sábio joeira os ímpios e faz passar por eles a roda” (Pr 20, 26). (…) Uma vez que nas coisas temporais há multiplicidade; esta afasta da unidade de Deus. “Porque o corpo corruptível é um peso para a alma e esta tenda terrena oprime a mente cheia de cuidados” (Sb 9, 15). Multiplicam-se os justos, segundo a sublime sabedoria de Deus, “Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar”. (Sl 83, 8).

SALMO 13 (12)

Comentário

Versículo 2: “Até quando, Senhor? Esqueceste-me para sempre? Até quando me esconderás a tua face?” (2 a). Quer dizer, até quando adias conceder-me o conhecimento espiritual de Cristo, Sabedoria de Deus e fim genuíno de todos os anseios da alma?

“Até quando me esconderás a tua face?” (2 b). Como Deus não esquece, também não esconde o rosto, mas a Escritura fala à nossa maneira: Diz-se que Deus esconde o rosto, quando não transmite o conhecimento de si à alma, que ainda não purificou o olhar da mente.

V. 3: “Até quando terei a minha alma em cuidados?” (3 a). Até quando me acharei em adversidade? “E o meu coração em angústia, todo o dia?” (3 b). Subentende-se: Até quando terei? “Todo o dia”, porém, significa continuação, de sorte que “dia” substitui o termo tempo. Quem quiser escapar ao tempo, terá a dor no coração, desejando subir aos bens eternos e não ter mais de suportar o tempo a que os homens estão sujeitos. “Até quando triunfará o meu inimigo sobre mim?” (3 b) isto é o diabo, ou o hábito carnal.

V. 4: “Olha para mim e responde-me, Senhor, meu Deus” (4 a). Relaciona-se com a frase: “Até quando me esconderás a Tua face?” (2 b). “Ilumina os meus olhos para não adormecer na morte” (4 b). Trata-se dos olhos do coração. Não se fechem eles em culpa deleitável e pecaminosa.

V. 5: “Que o meu inimigo não diga: «venci-o»” (5 a). É temível o ataque do diabo. “Nem meus adversários se alegram com a minha queda” (5 b). São o diabo e seus anjos. Eles não puderam exultar por causa de Job, varão justo, ao ser atormentado, porque ele não se abalou (Job 1, 22), isto é, não se apartou da firmeza da fé, nem proferiu contra Deus nenhuma insensatez.

V. 6: “Eu, porém, confiei na tua misericórdia” (6 a). Não se atribua o homem a si mesmo o facto de não se abalar e permanecer firme no Senhor. Não aconteça que, gloriando-se de não ter sido abalado, sacuda-o a soberba. “O meu coração alegra-se com a tua Salvação” (6 b). Cristo, Sabedoria de Deus. “Cantarei ao Senhor pelo bem que Ele me fez” (6 c), bens espirituais, não pertencentes ao dia do homem. Isto é, darei graças com alegria, e viverei no corpo de maneira bem ordenada. Tal é o canto espiritual da alma.

SALMO 14 (13)

Comentário

Versículo 1: “O insensato diz em seu coração: «Não há Deus!»” (1 a). Nem os próprios sacrílegos, nem alguns filósofos detestáveis, com ideias perversas a respeito de Deus, ousaram dizer: Deus não existe: “Corruptos e abomináveis são as suas acções” (1 b), isto é, amam este mundo e não amam a Deus. São afectos que corrompem a alma e cegam-na a tal ponto que o insensato pode dizer em seu coração: Deus não existe. “Como não julgarem por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento” (Rm 1, 28).

“Não há quem faça o bem” (1 c). Ninguém praticou o bem até que viesse o Cristo, porque ninguém pode fazer o bem, se o próprio Cristo não o mostrar. Isso é igualmente verdade, porque ninguém pode praticar o bem, enquanto não conhecer o Deus único.

V. 2: “Do céu, o Senhor olhou para os humanos a ver se havia algum sensato, alguém que ainda procure a Deus” (2 a b c). É aplicável aos judeus que, devido ao culto do Deus único, são denominados de maneira mais honrosa filhos dos homens em comparação com os gentios, dos quis suponho ter sido dito acima: “O insensato diz em seu coração: «Não há Deus»” (1 a). “Do céu, o Senhor olhou para os seres humanos” (2 a). É isto que significa “do céu”, uma vez que ao Senhor, em si, nada está oculto.

V. 3: “Mas todos se extraviaram e corromperam” (3 a), quer dizer, os judeus se igualaram aos gentios, dos quais se falou supra”.

“Não há quem faça o bem, nem um sequer” (3 b). (…) Todos os caminhos dos maus estão repletos de labor e miséria. Por isso clama o Senhor: “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o Meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração e encontrareis descansado para o vosso espírito. Pois meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 28-30).

V. 4: “Acaso não o compreenderão os que praticam a iniquidade” (4 a). Ameaça com o juízo. “Que devoram o meu povo como quem come pão” (4 b), isto é, cada dia. O pão é o alimento quotidiano. Devoram o povo os que dele conferem lucro; e não destinam o seu ministério à glória de Deus e à salvação de seus súbditos.


Vs. 4. 5: “E não invocaram o Senhor?” (4 c). Não invoca, de facto, quem deseja o que lhe desagrada. “Eis como eles ficaram aterrorizados” (5 a), isto é, a perda de bens temporais porque os homens, temendo perdê-los, não obtém os eternos.

Vs. 5.6: “Porque Deus está com os justos” (5 b). Isto é, não está com os que amam o mundo. “Foram esses que trocaram a verdade de Deus pela mentira, e que veneraram as criaturas e lhes prestaram culto, em vez de o fazerem ao Criador (Rm 1, 25). “Pretendíeis confundir o plano do pobre, mas o Senhor é o seu refúgio” (6), isto é, desprezastes a vinda humilde do Filho de Deus, porque nele não vistes a pompas do século, de sorte que os chamados por Ele somente em Deus depositassem sua esperança, e não nos bens passageiros.

V. 7: “Quem dera que viesse de Sião a Salvação de Israel!” (7 a). Subentende-se: A não ser aquele cuja humildade desprezastes? Ele há-de vir em glória para o juízo dos vivos e dos mortos e o reinado dos justos. Como por ocasião de sua vinda humilde sobreveio o endurecimento de uma parte de Israel, até que tenha entrado a totalidade dos gentios (Rm 11, 25), nele se realizará a continuação: assim todo Israel será salvo. Em prol dos judeus o Apóstolo aplica também o testemunho de Isaías, que anunciou: “Mas virá a Sião um redentor, para os que renegam o crime em Jacob” (Is 59, 20). Quem trará de Sião a salvação a Israel? “Quando o Senhor reconduzir os cativos do seu povo, Jacob vai rejubilar e Israel exultará de alegria” (7 b c). É a repetição habitual, pois julgo idêntico dizer: Alegrar-se-à Israel e Jacob exultará.

SALMO 15 (14)

Comentário

Versículo 1: “Quem poderá, Senhor, habitar no Teu Santuário?” (1 a). Embora santuário também se aplique algumas vezes às moradas eternas. Durante algum tempo lutamos com o diabo e então precisamos de um santuário para descansar. “Quem poderá residir na tua montanha santa?” (1 b) Aqui talvez já se trate da própria morada eterna de modo que montanha seria a supereminente caridade de Cristo, na vida eterna.

V. 2: “Aquele que leva uma vida sem mancha” (2 a). Propõe o que se explanará em seguida.

Vs. 2. 3: “Pratica a justiça e diz a verdade com todo o coração” (2 b). Alguns têm a verdade nos lábios, mas não no coração. É, portanto, pouco proferir a verdade, se não for do coração. “Aquele cuja língua não levanta calúnias” (3 a). A língua age dolosamente se a boca profere uma coisa e no coração está escondida outra. “E não faz mal ao seu próximo” (3 b). É óbvio que se deve considerar próximo todos os homens. “Nem causa prejuízo a ninguém” (3 c), quer dizer, não acreditou de bom grado ou temerariamente num delator.

V. 4: “Aquele que despreza o que é desprezível, mas estima os que temem o Senhor; (4 a b). Isto é, conheça o homem, com toda a certeza que o maligno nada pode, a não ser que a alma se afaste da beleza eterna e imutável do seu Criador e se volte para a beleza da criatura, feita do nada. Mas é o próprio “Senhor quem glorifica aqueles que O temem”. O temor do Senhor é o princípio da Sabedoria (Sl 110, 10). As palavras acima tratam dos perfeitos; as que agora o salmista vai proferir pertencem aos principiantes.

Vs. 4.5: “Aquele que não falta ao julgamento, mesmo em seu prejuízo; aquele que não empresta o seu dinheiro com usura, nem se deixa subornar contra o inocente” (4 c d. 5 a b). Não são actos grandiosos. Mas, quem não os pode praticar, muito menos dirá a verdade que tem no coração, nem deixará de cometer dolo com a língua.

“Sim, sim; não, não (Mt 5, 37), e não há-de fazer mal ao próximo, a saber, a ninguém, nem admitir injúria contra o seu semelhante. São estas acções dignas de homens perfeitos em cuja presença o maligno foi reduzido a nada. “Quem assim proceder não há-de sucumbir para sempre” (5 c), isto é, chegará às acções maiores, de grande e inabalável firmeza.

SALMO 16 (15)

Comentário

Fala no presente Salmo nosso Rei, segundo a natureza humana.

Versículos 1. 2: Reza o salmista: “Defende-me, ó Deus, porque em ti me refugio. Digo ao Senhor: “ «Tu és o meu Deus, és o meu bem e nada existe acima de Ti» ” (1. 2). Não esperas tornar-te feliz com os meus bens.

V. 3: (Não foi encontrada para este versículo qualquer correspondência a igual versículo comentado por Stº Agostinho).

V. 4: “Aqueles que multiplicam seus ídolos” (4 a), não para sua ruína, mas a fim de aspirarem por um médico. “E correm atrás deles” (4 b). Multiplicadas as suas enfermidades, apressaram-se em buscar cura. “Não tomarei parte nas suas libações de sangue” (4 c). Suas reuniões não serão carnais, nem os congregarei, aplacado pelo sangue dos animais. “Nem sequer pronunciarei os seus nomes” (4 d). Transformados espiritualmente, esquecer-se-ão do que foram. Já não os chamarei de pecadores, inimigos, ou homens e sim de justos, meus irmãos e filhos de Deus, por causa da paz que eu lhes dei.

V. 5: “senhor, minha herança e meu cálice” (5 a). Comigo eles possuirão a herança, o próprio Senhor. Outros escolham para sua fruição, porções terrenas e temporais; a porção dos santos é o Senhor, que é eterno. Bebem os outros mortíferos prazeres; a porção do meu cálice é o Senhor. Digo: “Meu”, pois a mim acrescento a Igreja; onde está a Cabeça, aí se acha também o Corpo. Tendo em vista a herança, convocarei suas reuniões e inebriado pelo cálice, esquecer-me-ei das suas antigas designações. “A minha sorte está nas tuas mãos” (5 b), para que seja conhecida também daqueles que liberto. “Ó Pai, manifesta a minha glória junto de ti, aquela glória que Eu tinha junto de ti, antes de o mundo existir” (Jo 17, 5). Não restituis o que não perdi, mas restituis àqueles que o perderam, o conhecimento de sua glória.

V. 6: “Na partilha foram-me destinados lugares aprazíveis” (6 a). Os limites de minha propriedade, de certo modo, por sorte, caíram em tua glória, assim como a posse dos sacerdotes e Levitas é Deus. “E é preciosa a herança que me coube” (6 b). É óptima a minha herança, não para todos, mas para os que sabem ver.

V. 7: “Bendirei ao Senhor porque Ele me aconselha” (7 a). Possibilitando-me ver e possuir esta herança. “Até durante a noite a minha consciência me adverte” (7 b). Além do entendimento, a carne que assumi, instruiu-me até à morte, para que experimentasse as trevas da mortalidade, que não existem no intelecto.

V. 8: “Tenho sempre o Senhor diante dos meus olhos” (8 a). Tendo vindo ao que é transitório, não tirei os olhos do permanente, prevendo que, passadas as coisas temporais, voltaria a ele. “Com Ele a meu lado, jamais vacilarei” (8 b). Ajuda-me a permanecer nele de modo estável.

V. 9: “Por isso, o meu coração se alegra e a minha alma exultará (9 a b). Por esta razão, a alegria enche meus pensamentos e a exultação transparece em minhas palavras. Mais ainda: “E o meu corpo repousará em segurança (9 c). além disso, minha carne não definhará até morrer, mas adormecerá com a esperança da ressurreição.

V. 10: “Pois Tu não me entregarás à morada dos mortos” (10 a). Não entregarás ao domínio do inferno a minha alma. “Nem deixarás o teu fiel conhecer a sepultura” (10 b). Não permitirás que se corrompa o corpo santificado, que há-de santificar os outros.

V. 11: “Hás-de ensinar-me o caminho da vida (11 a). Por meu intermédio manifestaste os caminhos da humildade, a fim de que voltem à vida os homens decaídos pela soberba”. “Saciar-me de alegria na Tua presença” (11 b). Enchê-los-às de alegria de tal sorte que não irão procurar outra coisa, quando te houverem visto face a face. Uma vez que eu estou neles encher-me-às, “De delícias eternas, à Tua direita” (11 c). Delícias encontram-se em teu favor em tua propriação no caminhar desta vida, que conduz ao termo, à glória de tua presença.

SALMO 17 (16)

Comentário

Versículo 1: “Oração de David” (1 a). Oração atribuível ao Senhor, unido à Igreja, seu Corpo.

Vs. 1. 2: “Ouve, Senhor, a minha causa justa, atende ao meu clamor. Escuta a minha oração, que não sai de lábios mentirosos” (1 b). Não chega a ti procedente de lábios enganadores. “Venha de Ti a minha sentença” (2 a), isto é, esclarecido pela luz do teu conhecimento, que eu julgue com verdade. “Pois os teus olhos descobrem o que é justo” (2 b). Refiro-me aos olhos do coração.

V. 3: “Perscruta o meu coração, mesmo durante a noite (3 a), quer dizer, meu coração foi experimentado pela visita da tribulação. “Submete-me à prova de fogo e não encontrarás em mim iniquidade” (3 b c). Foi denominada noite, que costuma perturbar, e fogo que queima a própria tribulação, com a qual fui examinado e considerado justo.

Vs. 3. 4: “A minha boca não transgrediu. Contrariamente às acções dos homens” (3 d. 4 a). Não saia de minha boca senão o que toca a tua glória e teu louvor; mas não trate das obras humanas realizadas à margem de tua vontade. “Conservei-me fiel às tuas palavras” (4 b), palavras de tua paz ou de teus profetas.

V. 5: “Dirigi o meus passos por duras veredas” (5 a). Que se torne perfeita a caridade da Igreja, através de caminhos estreitos que terminam em teu repouso. “Os meus pés não vacilaram nos teus caminhos” (5 b). Talvez eu permaneça estável na eternidade, após ter palmilhado duros caminhos e ter firmado meus passos nas estreitezas de tuas veredas.

V. 6: “Eu Te invoco, ó Deus, responde-me” (6 a). Com livre e válida intensidade, dirigi-te minhas preces. Ouviste-me ao orar com menos fervor, para que pudesse rezar instantaneamente. “Inclina para mim o ouvido, escuta as minhas palavras (6 b). Não se subtraia o entendimento por causa de minha humilde condição.

V. 7: “Mostra-nos a tua misericórdia” (7 a). Não se banalizem tuas misericórdias, não aconteça que sejam pouco amadas.

Vs. 7. 8. 9: “Tu, que salvas dos agressores os que buscam refúgio na tua direita” (7 b). “Guarda-me como à pupila dos teus olhos” (8 a), que é aparentemente pequenina, insignificante; no entanto, ela regula a penetração do olhar que distingue a luz das trevas, assim como o julgamento divino ao discernir justos e pecadores passa pela humanidade de Cristo. “Esconde-me à sombra das tuas asas” (8 b). No reduto de tua caridade e misericórdia, “longe dos ímpios que me fazem violência” (9 a).

Vs. 9. 10: “Dos inimigos mortais que me rodeiam. Eles endureceram o seu coração” (9 b. 10 a). Os inimigos encheram-se de alegria exuberante depois que sua ambição se saciou de crimes. “E a sua boca fala com altivez” (10 b). Assim, a sua boca falou com soberba: “Salve! Rei dos Judeus” (Mt 27, 29).

V. 11: “Seguem os meus passos e cercam-me” (11 a). Lançaram-me para fora da cidade, cercaram-me na cruz. “Fixam os olhos em mim para me deitarem por terra” (11 b). Fixaram por meta do coração os bens terrenos. Julgavam ter perpetrado grande crime aquele que estavam matando, e mal nenhum eles que o matavam.

V. 12: “Assemelham-se ao leão, à espera da presa” (12 a). Atacavam-me como aquele adversário que rodeia, “procurando a quem devorar” (1 Pd 5, 8). “Jovem leão a espreitar de seu esconderijo” (12 b). Leaozinho, o povo, ao qual se disse: “Vós tendes por pai o diabo” (Jo 8, 44), a planear insídias, assediando e arruinando o justo.

V. 13: “Levanta-Te, Senhor; enfrenta-os e derruba-os. Com a tua espada, livra-me dos ímpios” (13). Levanta-te, Senhor. Eles pensam que dormes e não levas em conta as iniquidades dos homens; ao contrário, sejam eles obcecados pela própria malícia e o castigo venha antecipadamente.

V. 14: “Com a Tua mão, Senhor, guarda-me dos mortais” (14 a). Livra a minha alma, ressuscitando-me da morte infligida pelos ímpios. “Dos homens que põem a sua felicidade nesta vida” (14 b). Senhor, arruinando-os na terra em que habitam, dispersa-os pelo orbe nesta vida, considerada a única por aqueles que não esperam a vida eterna. “Os seus ventres estão cheios dos teus dons” (14 c). Não apenas os atingirá este castigo visível, mas também sua consciência se encheu de pecados, de modo a se esquecerem de Deus. São trevas que fogem da luz da verdade. “Os Seus filhos vivem saciados” (14 d), saturam-se de imundícies, calcando aos pés as pérolas da palavra de Deus. “E deixam aos descendentes o que lhes sobra” (14 e), clamando: “Que o seu sangue cai sobre nós e sobre nossos filhos (Mt 27, 25).

V. 15: “Eu, porém, pela justiça, contemplarei a tua face” (15 a). Não me mostrei aos de coração sórdido e tenebroso, cegos para a luz da sabedoria, mas comparecerei justificado na tua presença. “E, ao despertar, serei saciado com a tua presença” (15 b). Enquanto eles, saturados de imundícies, não me podem entender, eu me saciarei, ao manifestar-se a tua glória, naqueles que me conhecem.

SALMO 18 (17)

Comentário

Versículo 1: David dirigiu ao Senhor as palavras deste cântico, nos dias em que o Senhor o livrou das mãos de Saul.

V. 2: Falam neste salmo Cristo e a Igreja, o Cristo total, Cabeça e Corpo: “Eu Te amo, Senhor, minha força” (2). Eu te amarei, Senhor, que me fortificas.

V. 3: “O Senhor é a minha rocha, fortaleza, e protecção” (3 a). Firmaste-me, Senhor, porque em ti me refugiei. Refugiei-me porque me libertaste. “O meu Deus é o abrigo em que me refugio” (3 b). Meu Deus, primeiro me prestaste o auxílio de teu chamamento, e então posso esperar em ti. “O meu escudo, o meu baluarte de defesa” (3 c). Meu protector porque de mim não presumi, erguendo contra ti a ousadia da soberba, mas em ti mesmo encontrei a força, isto é, a firme exaltação e salvação.

V. 4: “Invoquei o Senhor, que é digno de louvor e fui salvo dos meus inimigos” (4). Não procurando a minha glória, mas a do Senhor, eu O invocarei, e então os erros da impiedade não terão como me prejudicar.

V. 5: “Cercaram-me as ondas da morte” (5 a), isto é, da carne. “E as vagas destruidoras encheram-me de terror” (5 b). A turba iníqua, agitada por algum tempo, como as torrentes fluviais que logo desaparecem, veio aterrorizar-me.

V. 6: “Envolveram-me os laços do abismo” (6 a), nos inimigos que me cercam, visando perde-me, havia dores causadas pela inveja que produzem a morte e levam ao inferno do pecado. “E lançaram-me suas redes fatais” (6 b). Surpreenderam-me (…). Tais homens arrastam à perdição os seduzidos por sua ostentação de justiça. Possuem a justiça só de nome, não na realidade.

V. 7: “Na minha angústia invoquei o Senhor e gritei pelo meu Deus. Do Seu santuário, ele ouviu a minha voz” (7 a b c). No meu coração, onde Deus habita, ele ouviu a minha voz. “O meu clamor chegou aos seus ouvidos” (7 d).

V. 8: “A terra tremeu e foi sacudida” (8 a). Glorificado o Filho do homem, os pecadores se agitaram e tremeram. “As bases das montanhas estremeceram” (8 b). A esperança dos soberbos, depositada nos valores humanos, foi abalada. “Por causa do ardor da sua ira” (8 c), para que a esperança em bens temporais já não tivesse solidez nos corações dos homens.

V. 9: “Subia fumo das suas narinas” (9 a). Subiu lacrimosa a oração dos penitentes, ao conhecerem qual a ameaça de Deus aos ímpios. “Da sua boca um fogo devorador” (9 b), inflamou-se o fogo da caridade depois da penitência, pelo conhecimento de Deus. Dele saíam carvões acesos” (9 c). Os mortos que haviam permanecido frios e escurecidos, por falta do fogo dos bons desejos e da luz da justiça, novamente acesos e iluminados, reviveram.

V. 10: “Inclinou os céus e desceu” (10 a). Humilhou o justo, para descer à fraqueza dos homens. “Com densas nuvens debaixo de seus pés” (10 b). Os ímpios, amantes das coisas terrenas, não o conheceram devido às trevas da sua malícia. A terra está sob os seus pés, qual estrado.

V. 11: “Cavalgou sobre um querubim e voou” (11 a). Foi exaltado acima da plenitude da ciência, e então ninguém chega até ele, a não ser pela caridade. “É no amor que está o pleno cumprimento da lei” (Rm 13, 10). E logo demonstrou aos que O amam ser Ele incompreensível por meio de imaginações corporais. “Transportado nas asas do vento” (11 b). A rapidez, porém, com que se mostrou ser incompreensível, acha-se acima das potências da alma, asas que os elevam dos terrores terrenos às auras da liberdade.

V. 12: “Fez das trevas o seu véu” (12 a). Criou a obscuridade dos sacramentos e a esperança oculta nos corações dos fiéis, onde Ele próprio se escondeu, mas não os abandonou. “Vivemos exilados longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão” (2Cor 5, 7). “Mas se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que temos de aguardar” (Rm 8, 25).

V. 12b: “Das águas fundas e das nuvens densas, a sua tenda” (12 b). Os que Nele acreditam, tendo-se voltado para Ele, rodeiam-no. Ele está em seu meio, auxiliando igualmente àqueles nos quais actualmente habita como numa tenda. Ninguém, portanto, que entender bem as Escrituras, pensará já estar na luz que aparecerá quando da fé chegarmos à visão, pois a doutrina dos profetas e de todos os pregadores da palavra divina não é clara.

V. 13: “Ao julgar da sua presença” (13 a), em comparação com o fulgor que acompanhará sua manifestação. “As nuvens transformaram-se” (13 b). Os pregadores da palavra de Deus não se limitam à Judeia, mas passaram aos gentios. “Em granizo e carvões acesos” (13 c). Em figura, são repreensões que fustigam como granizo os corações endurecidos. Se um ânimo piedoso os recebe, a dureza do granizo resolve-se em água. O terror de uma repreensão, acompanhado de raios e gelos, converte-se em doutrina nutritiva. Os corações, inflamados pelo fogo da caridade, revivem.

V. 14: “O Senhor trovejou dos céus” (14 a). O Senhor fez ressoar do coração do justo a audaz confiança evangélica. “E o Altíssimo fez ouvir a Sua voz” (14 b), para que a retivéssemos e ouvíssemos coisas celestes nas profundezas das coisas humanas.

V. 15: “Ele desferiu as suas flechas e dispersou os inimigos” (15 a). Enviou os evangelistas que voaram em linha recta, com as asas das virtudes, não por suas próprias forças, mas pelas forças de quem os enviou. E dispersou aqueles em favor dos quais foram enviados: “para uns, odor da morte que conduz à morte; para outros, odor da vida que conduz à vida” (2 Cor 2, 16).

V. 16: “Então apareceram as profundezas do mar” (1 a). Apareceram as fontes de água que dá a vida eterna (Jo 4, 14), brotadas por meio dos pregadores. “Ficaram à vista os alicerces da terra” (16 b). Foram revelados os profetas, que não foram entendidos, com os quais se edificou a orbe da terra que crê no Senhor “Tudo ó Senhor, por causa das tuas ameaças” (16 c), “O Reino de Deus já está próximo de vós” (Lc 10, 9). “E pelo sopro impetuoso da tua ira!” (16 d), pregando, “se não vos converterdes, perecereis todos da mesma forma” (Lc 13, 5).

V. 17: “Do alto, Deus interveio e recolheu-me” (17 a), chamando-me dentre dos gentios para obter a herança, a Igreja sem mancha nem ruga, mas santa e imaculada” (Ef 5, 27); Tirou-me das águas caudalosas” (17 b), da multidão dos povos.

V. 18: “livrou-me de inimigos poderosos” (18 a). Libertou-me de inimigos que afligiam e transtornavam minha vida no tempo. “De adversários mais fortes de que eu” (18 b), por todo o tempo que lhes estive sujeito, ignorando a Deus.

V. 19: “Atacaram-me no dia da adversidade” (19 a). Foram os primeiros a prejudicar-me, enquanto possuo um corpo mortal e sujeito à tribulação. “Mas o Senhor foi o meu amparo” (19 b). Depois de conturbado e abalado o sustentáculo dos prazeres terrenos pela amargura das misérias, o Senhor se fez o meu apoio.

V. 20: “Retirou-me para um lugar seguro”(20 a); como eu sofria angústias carnais, levou-me para o espaço espiritual da fé. “Libertou-me porque me quer bem” (20 b). Antes que eu o quisesse, “livrou-me de inimigos poderosos” (18 a).

V. 21: “O Senhor recompensou a minha rectidão” (21 a), porque Ele me ofereceu a misericórdia antes que eu tivesse a vontade inclinada ao bem. “Retribui-me pela pureza das minhas acções” (21 b). Ele me retribuirá de acordo com a pureza dos meus actos, tendo-me dado a possibilidade de praticar o bem, conduzindo-me ao campo espaçoso da fé.

V. 22: “Porque segui os seus caminhos” (22 a). A amplidão das boas obras provenientes da fé, me consiga também a longanimidade de perseverar. “E não me afastei do meu Deus, pelo pecado” (22 b).

V. 23: “Todos os seus mandamentos estão diante de mim” (23 a), isto é, contemplo instantemente retirar os prémios dos justos, as penas dos ímpios, os flagelos dos que necessitam correcção, as tentações dos que devem ser provados: “E nunca rejeitei os seus preceitos” (23 b).

V. 24: “Tenho sido sincero para com Ele e guardei-me do pecado” (24).

V. 25: “O Senhor retribui-me pela minha rectidão” (25 a). Não só devido à intensidade (largura da fé), que actua pelo amor (Gl 5, 6), mas ainda por causa da duração (comprimento) da perseverança. “Pela honestidade das minhas acções diante dele” (25 b). Não a pureza visível aos homens, mas a que se apresenta aos seus olhos. “Porque as visíveis são passageiras ao passo que as invisíveis são eternas” (2 Cor 4, 18).

V. 26: “Ó Deus, Tu és fiel a quem te é fiel” (26 a). Porque és Tu que santificas: “És sincero com quem é sincero para contigo” (26 b). A ninguém prejudicas, “mas o ímpio é presa das suas próprias iniquidades” (Pr 5, 22).

V. 27: “És leal com os que te sã leais” (27 a), serás escolhido por aquele a quem escolhes. “E astuto com os que são astutos”. Dizem os perversos “O modo de proceder do Senhor não é justo” (Ez 18, 25)”. Na verdade, o caminho deles é que não é recto.

V. 28: “Na verdade, Tu salvas o povo humilde” (28 a). Parece errado aos fervorosos salvares os que confessam os seus pecados. “Mas humilhas os de olhos altaneiros” (28 b). Humilharás os que desconhecem a justiça de Deus e procuram estabelecer a sua própria.

V. 29: “Senhor, Tu manténs acesa a minha lâmpada” (29 a). Não é nossa a luz que irradiamos. És Tu, Senhor, que farás resplandecer a minha lâmpada “Tu, ó meu Deus, iluminas as minhas trevas” (29 b). Trevas somos nós por causa dos nossos pecados.

V. 30: “Contigo poderei investir contra um exército” (30 a). Ficarei livre da tentação, não por minhas forças, mas, por teu auxílio. “Com o meu Deus saltarei muralhas” (30 b), não o posso por mim mesmo; com o meu Deus escalarei a muralha que os pecados levantaram entre os homens e a Jerusalém celeste.

V. 31: “Os caminhos de Deus são perfeitos” (31 a). O Senhor meu Deus não vem até aos homens, a não ser que se limpe o caminho da fé para Ele passar porque seu caminho é imaculado. “A palavra do Senhor é provada no fogo” (31 b). As palavras do Senhor são provadas pelo fogo da tribulação. “Ele protege os que nele confiam” (31 c); e todos os que não esperam em si mesmos mas nele, não são consumidos pela tribulação, pois a esperança segue a medida da fé.

V. 32: “Quem é Deus, senão o Senhor?” (32 b) a Ele servimos, “Quem é um rochedo, senão o nosso Deus?” (32 b). Quem é Deus fora do Senhor, que possuiremos como filhos, qual herança esperada após uma fiel servidão?

V. 33: “Ele é o Deus que me rodeia de fortaleza” (33 a). Deus me cingiu de fortaleza para que as concavidades escorregadias da cupidez não impeçam minhas obras e meus passos; “E torna plano o meu caminho” (33 b). Apresentou-me o caminho imaculado da caridade, por onde vá até Ele, assim como é sem mácula a vida da fé, pela qual Ele vem a mim.

V. 34: “Ele dá a meus pés a agilidade do veado” (34 a). Deu agilidade ao meu amor, dando-lhe meios de transpor os embaraços espinhosos e sombrios deste século. “E faz-me andar seguro nas montanhas” (34 b). Fixará minha meta na celeste morada, “para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 19).

V. 35: “Ele adestra as minhas mãos para o combate” (35 a). Ensina-me a agir e a vencer os inimigos, que se empenham por nos interceptar o ingresso aos reinos celestes. “E os meus braços para retesar o arco de bronze” (35 b). Fizeste infatigáveis os meus esforços nas boas obras.

V. 36: “Tu deste-me o teu escudo protector, a tua direita amparou-me e a tua bondade me fez prosperar” (36). Apoiou-me a favor da Tua graça. Tua correcção, não me deixando desviar, orientou-me, e então dirijo todas as minhas acções àquele fim que me une a Ti.

V. 37: “Deste largueza aos meus passos” (37 a), as angústias carnais não me impedem, porque me ampliaste a caridade, activa e alegre. “Para que meus pés não vacilassem” (37 b). Meus passos não se enfraquecem, nem desapareceram as pegadas que deixei. Assim, meus seguidores podem imitar-me.

V. 38: “Persegui os meus inimigos e alcancei-os” (38 a). Perseguirei os meus afectos carnais para não ser aprisionado por eles; apanhá-los-ei a fim de exterminá-los. “Não retrocedi sem os ter derrotado” (38 b). Não desistirei de tal intento, enquanto não desaparecerem os inoportunos.

V. 39: “Bati-lhe e não puderam levantar-se” (39 a). Não persistirão contra mim. “Caíram debaixo dos meus pés os que ambicionaram estar acima de mim” (39 b).

V. 41: “Apresentaste-me de costas os inimigos” (41 a). Fizeste meus inimigos retrocederem e tomarem posição atrás de mim e me seguiram. “Para que eu pudesse exterminar os que me odiavam” (42 b). Arruinaste os outros inimigos, persistentes no ódio.

V. 42: “Pediram auxílio mas ninguém os socorreu” (42 a). Quem poderia salvar os que Tu não salvas? “Invocaram o Senhor, mas Ele não os ouviu.” (42 b). Não clamaram a qualquer, mas ao Senhor: Ele, porém, não os julgou dignos de serem ouvidos os que não desistiram de sua malícia.

V. 43: “E eu dispersei-os como o pó levado pelo vento” (43 a); Eu os pulverizei. São áridos. Rejeitam a chuva da misericórdia de Deus. Orgulhosos; inchados de soberba, serão arrebatados, perdendo sua esperança firme e inabalável, como se fossem arrancados à solidez e estabilidade da terra. “Calquei-os como a lama dos caminhos” (43 b). Eu os varrerei dos caminhos largos da perdição, palmilhados por muitos, luxuriosos e lascivos.

V. 44: “livraste-me das contendas de um povo” (44 a). Libertar-me-às das contradições daqueles que disserem: “Se o deixarmos assim, todos irão crer nele” (Jo 11, 48). “E puseste-me `frente das nações; povos desconhecidos prestaram-me vassalagem” (44 b c). Serviu-me o povo dos gentios, que não recebeu minha presença corporal.

V. 45: “Mal ouviram falar de mim, logo me obedeceram e os estrangeiros me cortejaram” (45 a b). Não me viram com os próprios olhos, mas acolhendo meus pregadores, obedeceram-me logo que me ouviram.

V. 46: “Porém, os estrangeiros fraquejaram” (46 a). Mentiram-me, não meus filhos, mas filhos de estrangeiros, aos quais foi dito com razão: “Vós tendes por pai o diabo” (Jo 8, 44). Trouxe-lhes o Novo Testamento para se renovarem, mas permaneceram unidos ao homem velho. “E saíram, a tremer, dos seus abrigos” (46 b), porque retiveram o Antigo Testamento e rejeitaram o Novo. Mesmo na Antiga Lei, seguiram antes as próprias tradições do que a Lei de Deus.

V. 47: “Viva o Senhor! Bendito seja o meu protector!” (47 a). “De facto, a carne aspira ao que conduz à morte” (Rm 8, 6). O Senhor, porém, vive e é bendito o meu Deus. “Glorificado seja o Deus que é a minha salvação” (47 b)! Não conceba o Deus de minha Salvação à maneira terrena, e sim no alto a salvação que ele procede.

V. 48: “Ele é o Deus que assegurou a minha vingança e submeteu os povos ao meu poder” (48). Deus me vingas, submetendo-me os povos. Meu Libertador de inimigos iracundos, os judeus que gritaram: “Crucifica-O! Crucifica-O!” (Jo 19, 6).

V. 49: “Livrou-me dos meus inimigos e libertou-me das mãos do homem violento” (49 a c). “Ergueu-me acima dos meus adversários” (49 b), os judeus que se ergueram contra mim na paixão. Tu me exaltarás em minha ressurreição.

V. 50: “Por isso, eu te louvarei, Senhor, entre os povos” (50 a). Por mim as nações te louvarão, Senhor. “E cantarei hinos ao teu nome” (50 b). Minhas obras mais amplamente te farão conhecido.

V. 51: “Deus dá grandes vitórias ao seu rei” (51 a). Deus engrandece, tornando admirável a salvação concedida aos fiéis por seu Filho. “E usa da bondade com o seu ungido” (51 b). Deus é misericordioso para com o seu ungido. “Com David e seus descendentes para sempre” (51 c). Misericordioso para com o próprio libertador, dotado de mão poderosa, vencedor do mundo e para com os que ele gerou para sempre, pela fé no Evangelho.

SALMO 19 (18)

Comentário

Versículo 1: Não é Nosso Senhor Jesus Cristo quem fala tais coisas, mas são proferidas a seu respeito.

V. 2: “Os céus proclamam a glória de Deus” (2 a). Eles expõem a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou a glória que o Filho deu ao Pai, na terra. “O Firmamento anuncia a obra de suas mãos” (2 b). E o firmamento, devido ao temor, transformado em céu pela confiança conferida pelo Espírito Santo, anuncia os feitos poderosos do Senhor.

V. 3: “Um dia passa a outro esta mensagem” (3 a), isto é: “No princípio havia o Verbo; e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1.1). “E uma noite dá conhecimento à outra noite” (3 b). Também a mortalidade da carne, insinuando a fé aos homens carnais, como se estivessem longe, anuncia a futura ciência.

V. 4: “Não são as palavras nem discursos, cujo sentido não se perceba” (4), como se não tivessem sido ouvidas as vozes dos evangelistas, ainda que o Evangelho tenha sido pregado em todas as línguas.

V. 5: “O Seu eco ressoou por toda a terra e a sua palavra até aos confins do mundo” (5 a b).

V. 5. 6: “Deus fez, lá no alto, uma tenda para o Sol” (5 c). O Senhor, porém, combatendo contra domínios de erros temporais; “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz mas a espada” (Mt 10, 34), levantou uma tenda de campanha no tempo, ou seja, na sua manifestação, a economia da sua encarnação.

“Donde ele sai, como um esposo do seu leito” (6 a). Ele saiu do ventre original, onde Deus se uniu à natureza humana, qual esposo à esposa. “A percorrer alegremente o seu caminho, como um herói” (6 b). Sendo fortíssimo precedeu os demais, por incomparável virtude. “Nem se detém no caminho dos pecadores” (Sl 1. 2).

V. 7: “Sai de uma extremidade do céu” (7 a). A processão pela qual nasceu do Pai não é temporal, mas eterna “E, no seu percurso, alcança a outra extremidade” (7 b). Chega, pela plenitude da divindade, à igualdade com o Pai. “Nada escapa ao seu calor” (7 c). “E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco.” (Jo 1, 14), assumindo a nossa imortalidade, não permitiu a mortal algum eximir-se da sombra da morte; contudo, até aí penetrou o calor do Verbo.

V. 8: “A Lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito” (8 a). “ «Não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição» ” (Mt 5, 17). É Lei imaculada, porque não cometeu pecado, nem se encontrou mentira em sua boca. Não oprime as almas com o jugo da escravidão. Converte-os, levando-os a imitá-lo livremente. “As ordens do Senhor são firmes, dão sabedoria ao homem simples” (8 b c), “ninguém, conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11, 27). São coisas escondidas aos sábios e reveladas aos pequeninos; porque “Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes” (Tg 4, 6).

V. 9: “Os mandamentos do Senhor são rectos, alegram o coração” (9 a). São rectas todas as justiças do Senhor. Ele não ensinou o que não havia praticado, a fim de que se alegrasse quem O imitasse em acções livres, realizadas com caridade e não com temor servil. “Os preceitos do Senhor, são claros, iluminam os olhos” (9 b). O luminoso preceito do Senhor, tirado o véu das observâncias carnais, ilumina a visão do homem interior.

V. 10: “O temor do Senhor é puro, permanece para sempre” (10 a). O temor do Senhor, não o das sanções da lei, das extorções de bens temporais, cujo amor leva a alma à fornicação, mas o temor casto, pelo qual a Igreja, quanto mais ardentemente ama o esposo, mais cuidadosamente evita ofendê-lo. “No amor não há temor; pelo contrário, o perfeito amor, lança fora o temor” (1 Jo 4, 18).

V. 10. 11: “As sentenças do Senhor são verdadeiras, todas elas são justas” (10 b). “O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento” (Jo 5, 22), de facto, justificam-se imutavelmente (…). Ninguém pode livrar os ímpios do suplício que Ele inflige, ou arrebatar aos piedosos o prémio que Ele dá.

“São mais desejáveis que o ouro, o ouro mais fino;” (11 a). Os juízos de Deus são mais desejáveis do que as pompas deste mundo. Anelar por elas é tornar indesejáveis os juízos de Deus, temidos ou desprezados ou incríveis (…). “São mais doces que o mel, o puro mel dos favos” (11 b). Se alguém é mel porque já livre dos vínculos desta vida espera o dia de entrar no banquete de Deus, ou se ainda é favo, envolvido nesta vida, cera com a qual o mel não se mistura ao enchê-lo (sendo necessário que o esprema a mão de Deus, sem quebrá-lo, para que a vida temporal destile na vida eterna), mais doces são para ele os juízos de Deus do que ele próprio para si.

V. 12: “Também o teu servo foi instruído por elas” (12 a). É amargo o dia do Senhor para os inobservantes. “E há grande proveito em cumpri-las” (12 b). A grande recompensa não consiste num bem exterior, mas na própria observância dos juízos de Deus. Grandes porque trazem alegria.

V. 13: “Mas, quem poderá discernir os próprios erros?” (13 a). Como as trevas tapam os olhos, os delitos obscurecem a mente, e não deixam ver a luz, nem a si mesmo (13 b). Das concupiscências em mim latentes, purifica-me Senhor. Preserva, portanto, das paixões alheias, quem não é soberbo, quer ficar senhor de si, todavia servo Teu. “Preserva-me também da soberba, para que ela não me domine” (14 a b). Se não me dominarem meus pecados ocultos e os alheios, então serei imaculado. Não existe terceira origem de pecado, além do próprio oculto, no qual caiu o diabo, e o alheio, pelo qual o homem foi seduzido, consentiu, fê-lo próprio. “Então, serei perfeito e imune de culpa grave” (14 c d). Não há maior delito do que apostatar de Deus, início da soberba do homem.

V. 13. 14: “Perdoa-me os que me são desconhecidos” (13 b). Das concupiscências em mim lactentes, purifica-me Senhor. Preserva, portanto, das paixões alheias, quem não é soberbo, quer ficar senhor de si, todavia servo teu. “Preserva-me também da soberba, para que ela não me domine” (14 a b). Se não me dominarem meus pecados ocultos e os alheios, então serei imaculado. Não existe terceira origem de pecado, além d próprio oculto, no qual caiu o diabo, e o alheio, pelo qual o homem foi seduzido, consentiu, fê-lo próprio. “Então, serei perfeito e imune de culpa grave” (14 c d). Não há maior delito do que apostatar de Deus, início da soberba do homem.

V. 15: “Aceita, com bondade, as palavras da minha boca e estejam na tua presença os murmúrios do meu coração” (15 a b). A meditação de meu coração não visa à jactância de agradar aos homens porque nele já não se aninha a soberba; mas acha-se sempre em presença de Ti, que investigas a consciência pura. “Ó Senhor, meu refúgio e meu libertador” (15 c). Senhor, meu auxílio, quando tendo a Ti, porque és o meu redentor, a fim de que tenda a Ti. Ninguém atribua a sua própria sabedoria o retorno a Ti, ou as suas próprias forças o alcançar-Te (…). Tu nos redimes para nos convertermos e nos ajudas para chegarmos a Ti.

SALMO 19 (18)

Catequese

Versículo 1: Aprendemos na Igreja a cantar as palavras de Deus, juntos esforcemo-nos por ser o que está escrito: “Feliz da nação que sabe louvar-Te, Senhor” (Sl 88, 16). Por conseguinte, devemos também com sinceridade de coração conhecer e ver aquilo que cantamos com vozes uníssonas. Percorramos brevemente o texto do salmo.

V. 2: Pois, canta-se a respeito de Cristo, porque no salmo se acha escrito: “Donde ele sai, como um esposo de seu leito.” (6 a). Encontra-se em Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a grande e plena graça, de que fala o apóstolo João: “E nós contemplámos sua glória, e a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14). “Os céus proclamam a glória de Deus” (2 a). Céus são os santos, elevados da terra, portadores do Senhor. Embora também os Céus, de certa maneira, tenham cantando a glória de Cristo. No entanto, há céus mais verdadeiros e sublimes dos quais, por conseguinte, aqui se diz: “Não são palavras nem discursos cujo sentido se não perceba” (4). “O Seu eco ressoou por toda a terra, e a sua palavra até aos confins do mundo” (5). De quem, a não ser dos Apóstolos? Eles narram a glória de Deus, depositada em Cristo Jesus, pela graça para remissão dos pecados. Pois, “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela sua graça” (Rm 3, 23). Se foi gratuitamente, foi de graça. Não seria graça se não fosse gratuita. Nada de bom havíamos feito para merecermos tais dons. Cristo nos salvou pelo Baptismo regenerador, unicamente em virtude da sua misericórdia. “Ele salvou-nos, não em virtude de obras de justiça que tivéssemos praticado, mas da sua misericórdia, mediante um novo nascimento e renovação do Espírito Santo” (Tt 3, 5). Se, por conseguinte, pertences à glória de Deus que os céus narraram, diz ao Senhor teu Deus: “O amor do meu Deus virá ao meu encontro” (Sl 58, 11). Antecipou-se porque nada de bom encontrou em ti. Antecipaste o castigo ensoberbecendo-te; Ele antecipa-se ao teu suplício apagando os pecados. Pecador justificado, ímpio feito piedoso, condenado assumido ao reino, diz ao Senhor teu Deus: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Teu nome dá glória”. Digamos: “Não a nós”. Porque se agisse como se fosse a nós, apenas teria de nos infligir penas. Não a nós, mas a Seu nome dê glória. “Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas” (Sl 102, 10). O firmamento anuncia a obra de suas mãos” (2 b). A expressão: “glória de Deus” repete-se aqui com as palavras: “Obras de Suas mãos”. Quais as obras de Suas mãos? Não se trata, como pensam alguns, de que Deus tenha feito todas as coisas por sua palavra, enquanto o homem mais importante que elas, criou Ele com as próprias mãos. Não se pense isto. Pois, o Verbo fez todas as coisas. Embora se narrem diversas obras de Deus, entre as quais o homem à Sua imagem, “Por Ele é que tudo começou a existir, e sem Ele nada veio à existência” (Jo 1, 3). No tocante às mãos de Deus, também dos céus foi dito: “Os céus são obra das tuas mãos” (Sl 101, 26). Idêntica declaração se faz sobre a Terra: “Dele é o mar, pois foi Ele quem o formou; e a Terra firme é obra de Suas mãos” (Sl 94, 15). Se foi com a palavra que criou os Céus, com a palavra fez a Terra, por conseguinte, criou igualmente o homem por Sua palavra. Verbo é idêntico a mãos. Deus fez com sabedoria o que fez pela palavra e com o poder o que fez com as mãos. Pois, “Cristo é Poder e Sabedoria de Deus (1 Cor 1, 24). Tudo “Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada foi feito” (Jo 1, 3). Os céus narraram, narram e narrarão a glória de Deus. Digo os céus narrarão, isto é, os santos, a glória de Deus, elevados da terra, portadores de Deus. O Filho pródigo, coagido pela miséria, reconhece sua indignidade, a saber, a que nos torna indignos. Reconhece tal indignidade, o filho menor, peregrino longe do pai adorador dos demónios. Reconhece a glória de Deus, mas forçado pela indigência. Como a glória de Deus nos transformou naquilo que não éramos dignos de ser, diz a seu pai: “Já não mereço ser chamado teu filho” (Lc 15, 21). (…) Céu, finalmente é o coração firme, não o coração tímido. O que proclama o firmamento? As obras de Suas mãos. Quais? A glória de Deus que nos salvou, que nos criou para praticarmos boas obras, “Porque fomos feitos por Ele, criados em Cristo Jesus para vivermos na prática de boas obras” (Ef 2, 10). Não só os homens, mas também os justos. “Sabei que o Senhor é Deus; foi Ele quem nos criou e nós pertencemos-Lhe” (Sl 99. 3).

V. 3: “Um dia passa a outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite” (3). O que é isto? O dia ao dia; os santos aos santos, os apóstolos aos fiéis, o próprio Cristo aos apóstolos, aos quais afirmou: “Vós sois a Luz do mundo” (Mt 5, 14). “E uma noite dá conhecimento a outra noite” (3 b). Alguns pensavam que a sentença tratava do tempo em que Nosso senhor Jesus Cristo viveu na terra; os apóstolos ouviram isto, transmitiram-no aos pósteros? Como um tempo ao outro. (…) É possível encontrar várias explicações para céus, mas precisamos abreviar. Digamos só uma conjectura; Quando Cristo Senhor falava aos apóstolos, o dia proferia ao dia a palavra; quando Judas entregou Cristo Senhor aos Judeus, a noite à noite anunciava o conhecimento.

Vs. 4. 5: “Não são palavras nem discursos cujo sentido não se perceba” (4). De quem são a não ser dos céus que narram a glória de Deus? Lede nos Actos dos Apóstolos, ao descer sobre eles o Espírito Santo, todos ficaram dele repletos. “E começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes inspirava que se exprimissem” (Act 2, 4). Não soaram apenas ali onde eles foram repletos. “O seu eco ressoou por toda a terra, e a sua palavra até aos confins do mundo” (5 a b). Aquele som chegou até nós, alcançou toda a Terra e, apesar disso, o herege não entra na Igreja.

Vs. 5. 6: “Deus fez, lá no alto, uma tenda para o Sol” (5 c). Sua Igreja é manifesta, não oculta, escondida, encoberta. Foi dito a David na Sagrada Escritura. “Tu pecaste ocultamente; mas Eu farei o que digo diante de todo o Israel e à luz do dia” (2 Sm 12, 12). Isto é, fizeste o mal ocultamente, sofrerás o castigo diante de todos. Digamos a respeito de ti também: “Estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15, 32). “Donde ele sai, como um esposo de seu leito” (6 a). Significa o seguinte: o esposo nasceu, cresceu, ensinou, sofreu, ressuscitou, subiu. Percorreu o caminho, não se deteve. (…). “Sua tenda”: a Santa Igreja.

V. 7: Queres ouvir qual o caminho por onde corre rapidamente? “Sai de uma extremidade do céu e, no seu percurso, alcança a outra extremidade” (7 a b). Após correr de lá e para lá regressar correndo enviou o seu Espírito. “Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles” (Act 2, 3). O Espírito Santo veio como fogo, prestes a consumir o feno, que é a carne e a fundir o ouro e purificá-lo. Veio como fogo, e por isso segue-se: “Nada escapa ao Seu calor” (7 a).

V. 8: “A Lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito;” (8 a) quer dizer, o Espírito Santo. “As ordens do Senhor são firmes, dão sabedoria aos simples” (8 b c), não aos dos soberbos. Isto faz o Espírito Santo.

V. 9: “Os mandamentos do Senhor são rectos” (9 a). Não atemorizam mas alegram o coração” (9 b). Temos aí o Espírito Santo. “Os preceitos do Senhor são claros, iluminam os olhos” (9 c), mas não os embacia. Os olhos do coração, não da carne. Olhos do homem interior, não do homem exterior. Assim opera o Espírito Santo.

V. 10: O temor do senhor não é servil, mas casto. Ama gratuitamente e não receia ser punido, porque é temível, mas não quer ser separado de quem ama. “O perfeito amor lança fora o temor; de facto, o temor pressupõe castigo e quem teme não é perfeito no amor” (1 Jo 4, 18). “O temor do Senhor é puro e permanece para sempre” (10 a). Aqui se manifesta o Espírito Santo, dando, conferindo, tal temor. “As sentenças do Senhor são verdadeiras; todas elas são justas” (10 b c). Não provocam rixas levando a divisões, mas congregam na unidade.

V. 11: “São mais desejáveis que o ouro, o ouro mais fino” (11 a). Muito ouro, ou muito preciosa, ou muito desejável. Embora muito, para o herege é pouco. Não ama o mesmo que nós, embora confesse connosco o Cristo. Escuta ainda: “São mais doces que o mel, o puro mel dos favos” (11 b). Mas não gosta de ouvi-lo quem se acha no erro. O mel é amargo ao febricitante, apesar de doce e agradável ao curado, porque é gostoso para quem tem saúde.

V. 12: “Também o teu servo foi instruído por elas” (12 a). Teu servo comprova, não falando, mas observando, quão doces são elas. “E grande proveito em cumpri-las” (12 b). O herege, porém, apegado a sua animosidade, não vê este esplendor, não sente esta doçura.

V. 13. 14: “Mas, quem poderá discernir os próprios erros?” (13 a). “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). É este o servo que guarda a doçura, a suavidade da caridade, o amor da unidade. “Perdoa-me os que me são desconhecidos” (13 b). Quem entende os erros? Se é possível ver as trevas, os erros também se entendem. Enfim, quando nos arrependemos dos erros, estamos na Luz. Enquanto se está envolvido no erro, os olhos ficam obcecados e fechados; não vêem o erro. Meus erros maculam-me, os alheios afligem-me. Daqueles purifica-me; destes preserva-me. Estas duas espécies de delitos, o próprio e os alheios, primeiramente apareceram nos primórdios. O diabo caiu por próprio delito, e derrubou Adão com o alheio. O próprio servo de Deus, que guarda os juízos de certo, portadores de grande recompensa, também reza em outro salmo: “Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos nem me afugente a mão do ímpio” (Sl 35, 12). Não se aproximem de mim os pés dos orgulhosos, quer dizer: “Perdoa-me os que me são desconhecidos” (13 b). Se não me dominarem meus delitos ocultos, nem os alheios “Então serei perfeito” (14 c). Não ousa afirmá-lo, por suas próprias forças, mas suplica ao Senhor que o faça. Dirige-se ao senhor em outro salmo: “Dá firmeza aos meus passos, segundo a tua promessa; não permitas que me domine qualquer maldade” (Sl 118, 133). Se és Cristão não temas teu Senhor, simples homem. Teme sempre o Senhor teu Deus. Teme o mal que há em ti, isto é, tua concupiscência. O Senhor te fez bom servo; tu, em teu coração, plasmaste para ti mesmo um mau Senhor. “E imune de culpa grave” 14 d). De que delito se trata? Que delito maior é este? Penso que o maior delito é a soberba. Quereis saber como é maior delito que derrubou o anjo, do anjo fez um diabo e eternamente excluído do Reino dos Céus? É grande esse delito: “O princípio de todo o pecado é o orgulho”. E para não o menosprezares, como se fosse leve diz-se: “Preserva-me também da soberba para que ela não me domine” (14 a b). O início do orgulho num homem é renegar a Deus. Não é leve este vício. Por causa da soberba desdenham submeter o pescoço ao jugo de Cristo e ficam mais amarrados sob o jugo do pecado. Não se conseguem livrar de servir; de facto, não querem servir, mas servir quem lhes convém. Recusando servir, nada obtém senão deixar de servir a um bom Senhor. Não se livram absolutamente de servir, porque se não querem servir a caridade, são forçados a servir a iniquidade. Deste vício, cabeça de todos os vícios, porque dele nascem os demais, provém a apostosia? em relação a Deus. A alma mergulha nas trevas e, usando mal o livre arbítrio, comete também os outros pecados.

Devido a este vício, este grande pecado do orgulho, Deus veio à terra humildemente. Humilhando-o até à condição de escravo, infligiu-lhe afrontas, suspendendo-o no madeiro, visando a que a aplicação do remédio eficaz curasse o temor da soberba. Envergonhe-se, afinal, o homem de ser soberbo. Por sua causa Deus se fez humilde. Assim, diz o salmista, serei purificado do maior delito, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a Sua graça aos humildes. (Tg 4, 6), (1 Pd 5, 5).

V. 15: “Aceita com bondade as palavras da minha boca e estejam na Tua presença os murmúrios do meu coração” (15 a b). a alma soberba quer agradar ao homens; a humilde procura agradar, ocultamente, onde Deus vê. Se acontecer que agrade aos homens por causa de uma boa obra, congratule-se com os que sabem apreciar uma boa obra, não consigo mesmo, pois deve bastar-lhe a realização da boa obra. Diz a Escritura: “Este é o nosso motivo de glória: o testemunho da nossa sinceridade que vem de Deus; e não com a sabedoria humana” (2 Cor 1, 12). Digamos ainda o que se segue: “Ó Senhor, meu refúgio e meu libertador” (15 c).

SALMO 20 (19)

Comentário

Versículo 1: Não é Cristo Quem fala, mas o profeta refere-se a Cristo, contando o futuro, em forma optativa (1).

V. 2: “Que o Senhor te responda no dia da angústia” (2 a). O Senhor te atenda no dia em que disseste: “ «Pai, chegou a hora! Manifesta a glória do Teu Filho» ” (Jo 17, 1). “E o nome do Deus de Jacob te proteja” (2 b). Pertence-te o povo mais novo, porque o mais velho servirá o mais novo (Gn 25, 23).

V. 3: “Do santuário, Ele te envie o socorro e te assista de Sião” (3), criando para ti um corpo santificado, a Igreja, sustentada pela contemplação, que aguarda tua vinda para as núpcias.

V. 4: “Recorde todas as Tuas ofertas” (4 a). Deus nos recorde todas as injúrias que por nós sofreu. “E aceite os teus sacrifícios” (4 b); transforme a cruz onde Te ofereceste totalmente a Deus, na alegria da ressurreição.

V. 5: “Conceda o que o teu coração deseja” (5 a). Dê-te o Senhor, não o que desejou o coração dos que julgaram poder aniquilar-Te pela perseguição, mas segundo os anelos do Teu coração, que Te ensinaram a inutilidade da tua paixão; “realize todos os teus projectos” (5 b), Realize todos os teus planos, não somente o de dar a vida por teus amigos (Jo 15, 13), para que revivesse o grão morto na terra, e que produziu muito fruto (Jo 12, 24), mas também: o “de sobrevir a cegueira em parte a Israel até que a totalidade dos gentios tenha entrado” (Rm 11, 25).

V. 6: “Cantaremos, então, o teu triunfo, e em nome do nosso Deus ergueremos bandeiras” (6 a b). Exultaremos, porque a morte em nada te prejudicará; assim mostrarás que nem a nós ela pode prejudicar. E nos gloriaremos no nome do nosso Deus. A confissão de Teu nome não só não nos arruinará, mas nos engrandecerá. “Que o Senhor satisfaça todos os teus pedidos” (6 c). Atenda o Senhor não só os pedidos feitos na terra, mas ainda aqueles com os quais no céu interpelas por nós.

V. 7: “Agora tenho a certeza de que o Senhor dá a vitória ao seu ungido” (7 a). Agora foi-me demonstrado pela profecia que o Senhor ressuscitará o Seu Cristo. “Ele responde-lhe do alto do seu santuário” (7 b). Ouvi-lo-à não só da terra, onde pediu que o glorificasse (Jo 17, 1), mas ainda do céu, onde “já está à direita de Deus e intercede por nós” (Rm 8, 34), difunde o Espírito Santo sobre os que nele acreditam. “E salva-os com o poder de seu braço” (7 c). Nosso poder provém da salvação com que nos favorece ao prestar-nos auxílio na tribulação, de sorte “me comprazo nas fraquezas, nas afrontas, nas angústias, por Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 10), porquanto é vã a salvação que vem do homem, não pertencente à sua direita mas à esquerda.

V. 8: “Uns confiam nos carros, outros nos cavalos” (8 a). Uns se deixam arrastar pelas vicissitudes dos bens temporais, outros ostentam orgulhosas honrarias e nelas exaltam. “Nós, porém, confiamos no Senhor, nosso Deus” (8 b). Nós colocando a esperança nos bens eternos, sem aspirar por nossa própria glória, exultamos no nome do Senhor nosso Deus.

V. 9: “Eles fraquejam e são vencidos” (9 a). Prenderam-se com a ambição das riquezas temporais: “Se O deixarmos assim, irão crer nele e virão os romanos e destruirão o nosso Lugar santo e a nossa nação” (Jo 11, 48). “Tropeçaram na pedra de tropeço (Rm 9, 32), uma rocha de escândalos e caíram, privados da esperança celeste. Por meio deles sobreveio a cegueira em parte de Israel, porque desconheceram a justiça de Deus, procurando estabelecer a sua própria. “Nós, porém, levantamo-nos e ficamos de pé” (9 b). Ficamos firmes, de pé, a fim de que entrasse o povo das nações, filhos de Abraão, suscitados de pedras. Ficamos de pé, justificados pela fé, não por nossas forças.

V. 10: “Senhor, dá o triunfo ao rei” (10 a), que, combatendo, nos deu um exemplo de como lutar, na paixão.

Ofereça Ele também os nossos sacrifícios, na qualidade de sacerdote ressuscitado dentre os mortos e colocado no Céu. “E atende-nos quando te invocarmos” (10 b). Por nós já te ofereceste. Ouve-nos no dia em que te invocarmos.

SALMO 21 (20)

Comentário

Versículo 1: O título é comum, conta-se relativamente a Cristo (1).

V. 2: “O Senhor, o rei alegra-se com o teu poder” (2 a), Senhor em teu poder por meio do qual o Verbo se fez carne, alegrar-se-á o homem Cristo Jesus, “e regozija-se com o Teu auxílio” (2 b), exultará intensamente porque vivificas todas as coisas.

V. 3: “Satisfizeste os desejos do teu coração” (3 a). “Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco (Lc 22, 15) e dar a vida, ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho o poder de a oferecer e o poder de a retomar” (Jo 10, 18). “Não recusaste os pedidos da sua boca” (3 b). Disse ele: “Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz” (Jo 14, 27). E assim aconteceu.

V. 4: “Foste ao seu encontro com bênçãos preciosas” (4 a). Tendo aurido anteriormente a tua doçura, como uma bênção, o fel dos nossos pecados não o prejudicam. “Puseste-Lhe na cabeça uma coroa de ouro fino” (4 b). No início da pregação, de certo modo, os discípulos, aproximando-se, cingiram-se como se fossem pedras preciosas. Por eles se realizou o começo do anúncio.

V. 5: “Pediu-Te a vida e Tu lha concedeste” (5 a). Pediu a ressurreição, dizendo: “Manifesta a glória do Teu Filho” (Jo 17, 1) e lha deste: “Vida longa pelos séculos além” (5 b). Que tivesse a Igreja a eternidade pelos séculos dos séculos.

V. 6: “Devido à tua ajuda, é grande a sua glória” (6 a); Imensa é na verdade, a Sua glória por Tua Salvação, quando o ressuscitaste. “Cumulaste-o de esplendor e majestade” (6 b), mas aumentarás ainda a glória e grande honra, quando o colocares à tua direita.

V. 7: “Abençoaste-o para sempre” (7 a). É a bênção que lhe darás eternamente: “e encheste-o de alegria na tua presença” (7 b). Alegrarás com a tua presença aquele que, enquanto homem, elevaste até junto de Ti.

V: 8: “Sim, o rei confia no Senhor” (8 a); o rei não se ensoberbece mas com coração humilde espera no Senhor. “Com o amor do Altíssimo será inabalável” (8 b). Pela misericórdia do Altíssimo não se perturbará sua humildade diante da obediência até à morte de cruz.

V: 9: “Levantarás a tua mão contra todos os teus inimigos” (9 a). Atinja, ó rei, o teu poder, quando vieres julgar, todos os teus inimigos, que não o conheceram, na tua humildade. “A tua direita atingirá os que te odeiam” (9 b). A glória com que reinas à direita do Pai, alcance-os para puni-los no dia do juízo, a todos os que te odiaram, porque agora eles não a atingiram.

V. 10: “Hás-de reduzi-los a uma fornalha ardente” (10 a). Arderão por dentro, devido à consciência da sua própria impiedade, “quando apareceres para julgar” (10 b), no tempo próprio a tua manifestação. “O Senhor há-de engoli-los na sua ira e serão devorados pelo fogo” (10 c). Então perturbados pela vingança do Senhor, depois da acusação da própria consciência, serão lançados ao fogo eterno, para serem devorados.

V. 11: “Farás desaparecer da terra a sua posteridade” (11 a). Extirparás da terra sua posteridade, porque terrena. “E a sua descendência entre os filhos dos homens” (11 b), não contarás as obras deles ou aqueles que eles seduziram, entre os filhos dos homens, chamados para a herança eterna.

V. 12: “Se intentarem algum mal contra ti” (12 a). O castigo será a sua paga, porque os males que lhes pareciam iminentes, em teu reinado, fizeram reverter contra Ti, matando-Te. “E pensarem em traição, nada vão conseguir” (12 b). Deliberaram os judeus: “Nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pareça a nação inteira” (Jo 11.50). Não puderam executar seus planos, porque não sabiam o que diziam.

V. 13: “Porque os porás em fuga e apontarás contra eles o teu arco” (13 a b), porque os disporás entre os afastados de Ti, depois de relegados e desprezados. Menosprezando as ambições do reinado terreno, darás ensejo a seu atrevimento durante a paixão.

V. 14: “Levanta-Te, Senhor, com teu poder” (14 a). Exalta, Senhor, aqueles que eles não reconheceram quando se mostrou humilde, por Tua força, que eles consideram fraqueza. “E nós cantaremos e celebraremos a tua força!” (14 b), de coração e com obras, celebraremos e tornaremos conhecidas as Tuas maravilhas.

SALMO 22 (21)

Comentário

Versículo 1: Fala o próprio Senhor Jesus Cristo, a respeito da sua ressurreição. Por ela foi recebido na vida eterna. “Sabemos que Cristo, ressuscitado entre os mortos, já não morrerá” (Rm 6, 9). Essas expressões são atinentes à pessoa do crucificado, pois as palavras iniciais deste salmo são as que clamou pendente da cruz, representando o velho homem, cuja mortalidade carregava. Pois “Sabemos que Cristo ressuscitado de entre os mortos, já não morrerá, a morte não tem mais domínio sobre Ele” (Rm 6, 9).

V. 2: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro? (2 a b). Estou longe de minha salvação, “porque a salvação está longe dos ímpios” (Sl 118, 155). Estas palavras não são da justiça, mas de meus delitos. Fala o velho homem crucificado, ignorando a causa por que Deus O abandonou.

V. 3: “Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes;” (3 a). Meu Deus, clamarei a ti na prosperidade da vida, para que não mude; mas não ouvirás, porque hei-de clamar com as vozes de meus delitos. “Durante a noite e não tenho sossego” (3 b). Efectivamente, clamarei também na adversidade, pedindo a volta da prosperidade, e igualmente não me atenderás. Não ages assim para que fique na ignorância, antes a fim de que saiba o que queres que eu suplique não com vozes de delitos provenientes do desejo de vida transitória, mas com palavras de um convertido a ti, em vista da vida eterna.

V. 4: “Tu, porém, és o Santo e habitas na glória de Israel” (4). Habitas no santuário, e por isso não atendes às vozes impuras de delitos. És o louvor de quem te vê, e não de quem procurou a própria glória, provando do fruto proibido, de sorte que, depois de ter aberto os olhos corporais, tentou esconder-se de tua presença (Gn 3).

V. 5: “Em Ti confiaram os nossos pais”, os justos que não visaram o próprio louvor, mas o teu; “Confiaram e Tu os Libertaste” (5 b).

V. 6: “A ti clamaram e foram salvos” (6 a). A ti clamaram, todavia não com vozes de delitos, distantes da salvação; por isso foram salvos. “Confiaram em ti e não foram confundidos” (6 b). Esperaram em ti e a esperança não os enganou, porque não depositaram em si mesmos a confiança.

V. 7: “Eu, porém, sou verme e não u homem” (7 a). Falo não mais representando Adão, mas o próprio Jesus Cristo, nascido segundo a carne sem intervenção do homem, para ser homem superior aos outros, a fim de que, ao menos assim, a soberba humana se dignasse imitar minha humildade. “O opróbrio dos homens e o desprezo da plebe” (7 b). Nesta condição, fiz-me o opróbrio dos homens a tal ponto que foi dito como maldição e injúria: “Discípulo dele és tu” (Jo 9, 28) e a plebe pôde desprezar-me.

V. 8: “Todos os que me vêem escarnecem de mim” (8 a). Todos os que me viam, zombavam de mim.” Estendem os lábios e abanam a cabeça” (8 b). Não falavam no coração e sim com os lábios.

V. 9: Pois com escárnio sacudiram a cabeça, dizendo: “Confiou no Senhor, Ele que o livre. Ele que o salve, já que é seu amigo” (9). Eram estas as palavras murmuradas com os lábios.

V. 10: “Na verdade, Tu me tiraste do seio materno” (10 a). Tiraste-me, não só do ventre original (lei de todo o nascimento humano é sair do ventre), mas também do seio da nação judaica. Ainda se acha envolto nas trevas e não nasceu à luz de Cristo todo aquele que põe a observância carnal do sábado da circuncisão, etc. “Puseste-me em segurança ao peito de minha mãe” (10 b). Deus, minha esperança, não apenas desde que comecei a ser aleitado pela Virgem. Antes mesmo.

V. 11: “Pertenço-te desde o ventre materno” (11 a); Tu me seguraste. “Desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus” (11 b). Desde o ventre de minha mãe, “Tu és meu Deus”, és, portanto, o meu Deus e não Te afastes de mim.

V. 12: “Não te afastes de mim, porque estou atribulado” (12 a). És, portanto, o meu Deus, “e não há quem me ajude” (12 b) porque a tribulação está perto, está em meu corpo. Não há quem me socorra. Quem me socorre, se não socorres?

V. 13: “Rodeiam-me touros em manada” (13 a). Cercou-me a multidão da plebe arrebatada. “Cercaram-me touros ferozes de Basan” (13 b), seus princípios me rodearam, alegrando-se com a minha opressão.

V. 14: “Abrem contra mim as suas fouces” (14 a), abriram a boca contra mim, não com as palavras de tuas Escrituras, mas com as oriundas de suas paixões. “Como leão que despedaça e ruge” (14 b). Como sua rapina, levou-me preso e rugia: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Jo 19, 6).

V. 15: “Fui derramado como água; e todos os meus ossos se desconjuntaram” (15 b). Sou água derramada. Nela caíram os meus perseguidores. Pelo medo dispersaram-se ao longe os meus discípulos, sustentáculo de meu Corpo, isto é, a Igreja. “Meu coração tornou-se como cera e derreteu-se dentro do meu peito” (15 c d). A minha sabedoria registada nos Livros Sagrados e referente a mim mesmo, que eles julgavam endurecida e oculta, não era entendida. Mas depois com o fogo da minha paixão, se liquefez, revelou-se, foi recebida na memória da minha Igreja.

V. 16: “Minha garganta secou-se como barro cozido! (16 a). Minha força na paixão ressecou-se, não como feno, mas qual argila, que ao fogo se torna mais consistente. “Minha língua pegou-se-me ao céu-da-boca” (16 b). Conservaram em si meus preceitos aqueles por cujo intermédio eu haveria de falar. “Reduziste-me ao pó da sepultura” (16 a). Levaste-me para o meio dos ímpios destinados à morte, e que o vento carrega, como poeira, da superfície da terra.

V. 17: “Estou rodeado por matilhas de cães” (17 a). Rodearam-me muitos a ladrar, não em prol da verdade, mas conforme seus hábitos. “Envolvido por um bando de malfeitores trespassaram as minhas mãos e os meus pés (17 b).

V. 18: “Posso contar todos os meus ossos” (18 a). Contaram distendidos no lenho da cruz, todos os meus ossos. “Eles olham para Mim cheios de espanto” (18 b). Eles mesmos, isto é, sem se modificarem me observaram e me viram.

V. 19: “Repartam entre si a minhas vestes e sorteiam a Minha túnica” (19).

V. 20: “Mas Tu, senhor, não te afastes de mim”! (20 a). Tu, porém, ressuscita-me, não no fim dos séculos, como os demais homens, mas imediatamente. “És o meu auxílio: vem socorrer-me depressa” (20 b). Cuida de que em nada me prejudiquem.

V. 21: “Livra a minha alma da espada” (21 a). Livra a minha alma da língua que separa. “E, das garras dos cães a minha vida” (21 b). Liberta a minha Igreja da violência do povo, que costuma ladrar.

V. 22: “Salva-me da boca dos leões” (22 a). Salva-me das fouces do reino deste mundo. “Livra-me dos chifres dos búfalos” (22 b), livra-me, em meu abatimento, das grandezas dos soberbos que se exaltam singularmente e não suportam seus pares.

V. 23: “Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos” (23 a). Narrarei o teu nome aos humildes, que se amam mutuamente, como eu amei os meus irmãos. “E te louvarei no meio da assembleia” (23 b). No meio da Igreja, eu te anunciarei, cheio de alegria.

V. 24: “Vós, que temeis o Senhor, louvai-O!” (24 a). Vós, que temeis o Senhor, não busqueis vosso próprio louvor, mas louvai-O. “Glorificai-O, descendentes de Jacob” (24 b). Exalte-O a descendência daquele ao qual o mais velho servirá.

“Reverenciai-O, descendência de Israel” (24 c). Temam-no todos os nascidos para uma vida nova e regenerados para obterem a visão de Deus.

V. 25: “Pois Ele não despreza nem desdenha a aflição do pobre” (25 a). Não desprezou a prece do pobre, que não se ilude com pompas transitórias. Mas desprezou a prece do que clamava com vozes de delito, e nada visou além desta vida cheia de vaidades. “Nem desviou dele a sua face” (25 b), como fez aquele que dizia: Clamarei a ti e não me ouvirás. “Mas ouviu-o, quando lhe pediu socorro” (25 c).

V. 26: “De ti vem o meu louvor na grande assembleia” (26 a). Não capto louvores para mim porque meu louvor és tu, que habitas no santuário e atendes, louvor de Israel, ao santo que te suplica. “Cumprirei os meus votos na presença dos teus fiéis” (26 b). Darei o Sacramento do meu corpo e do meu sangue, na presença dos teus fiéis.

V. 27: “Os pobres comerão e serão saciados” (27 a). Comerão os humildes que desprezam o mundo e imitar-me-ão. Não haverão de desejar a abundância, nem recear a indigência deste mundo. “Louvarão o Senhor, os que o procuram” (27 b). O louvor do Senhor é feito de sua saciedade. “Vivam para sempre os vossos corações” (27 c), pois Ele é o alimento do coração.

V. 28: “Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar-se para Ele todos os confins da Terra” (28 a). Recordar-se-ão, pois Deus se afastara dos povos que nasceram para morrer e tendem para as coisas exteriores. Então hão-de voltar-se para o Senhor todos os confins da Terra. Hão-de prostrar-se diante dele todos os povos e nações” (28 b).

V. 29: “Porque ao Senhor pertence a realeza. Ele domina sobre todas as nações” (29 a b). Ao Senhor pertence o Reino, não aos soberbos! “Ele domina sobre todas as nações” (29 b).

V. 30: “Diante dele hão-de prostrar-se todos os grandes da terra” (30 a). Comeram o corpo de seu Senhor, em condição humilde, até os ricos da terra, apesar de não se saciarem a ponto de imitá-Lo, como os pobres; todavia adoraram. “Diante dele inclinaram-se todos os que descem ao pó e assim deixam de viver” (30 b). Ele somente vê como cairão os que, apartando-se da convivência celeste, preferiram parecer felizes na Terra dos homens, que não são capazes de ver a ruína deles.

V. 31: “Uma nova geração o servirá” (31 a). Minha alma que desprezando o mundo parece morta aos homens, não viverá em si, mas para Ele. “E narrará aos vindouros as maravilhas do Senhor” (31 b).

V. 32: “Ao povo que vai nascer dará a conhecer a sua justiça.” (32 a). Será proclamada em honra do Senhor a geração do Novo Testamento. Os evangelistas anunciarão a sua justiça. “Contará o que Ele fez” (32 b). O povo que nascerá da fé, para o Senhor.

SALMO 22 (21)

Catequese

Versículo 1: A paixão do Senhor, como sabemos: “Cristo padeceu pelos pecados, de uma vez para sempre – o justo pelos injustos – para nos conduzir a Deus” (1 Pd 3, 18).

“Sabemos que Cristo, ressuscitado de entre mortos, já não morrerá; a morte não tem mais domínio sobre Ele” (Rm 6, 9). Acaso Cristo morre todas as vezes que se celebra a Páscoa? A celebração anual, de certo modo, representa o que outrora se realizou, e assim nos comove, como se víssemos o Senhor pendente da Cruz; não com zombarias, mas com fé. Tempo de gemer, de chorar, tempo de confessor, de suplicar. Quem de nós é capaz de derramar lágrimas condignas de tamanha dor? O que fala o profeta a respeito disso? “Oh! Tivesse eu na minha cabeça um manancial, e nos meus olhos uma fonte de lágrimas! Dia e noite choraria as chagas do meu povo” (Jr 8, 23) (…) Quem era a mulher que entrou na sala com um frasco de alabastro (Mt 26, 7)? De quem era tipo? Não seria da Igreja? O que figurava aquele unguento? Talvez o bom odor mencionado pelo Apóstolo: Somos o bom odor de Cristo em todo o lugar. Também o Apóstolo insinuava a própria Igreja, porque ao dizer: “Somos”, refere-se aos fiéis.

V. 2: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro?” (2 a b). Ouvimos este primeiro versículo, recitado pelo Senhor na cruz, ao dizer: “Eli, Eli”, que se traduz: “Meu Deus, meu Deus “Lemá Sabachtháni?” “porque me abandonaste?” (Mt 27, 46). O que quer dizer o Senhor? Deus não O abandonara porque era Deus. Efectivamente, Deus, Filho de Deus, na verdade Deus, Verbo de Deus. Ouve como inicia seu escrito o Evangelista e vejamos se Cristo é Deus: “No princípio havia o Verbo; o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1. 1). “E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco” (Jo 1, 14). E quando o Verbo, Deus feito carne pendia da Cruz e dizia: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste (2 a)? Assim se exprime porque nós lá estávamos com Ele, porque a Igreja é o Corpo de Cristo.

V. 3: “Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes; durante a noite e não tenho sossego” (3). Falou, efectivamente, de mim, de ti, dele. Pois, representava eu Corpo, isto é, a Igreja. A não ser que penseis que o senhor tinha medo de morrer, pois disse: “ «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice» “ (Mt 26, 39). O soldado não é mais forte que o general. “Basta ao discípulo ser como o mestre” (Mt 10, 25). Afirma Paulo, soldado de Cristo rei: “Estou pressionado dos dois lados: tenho o desejo de partir e estar com Cristo” (Fl 1, 23). Ele prefere a própria morte para estar com Cristo, e o próprio Cristo temeria a morte? A não ser que ele carregasse nossa fraqueza e assim se expressasse em lugar dos membros de seu Corpo que ainda temem a morte. Daí provém aquela voz. Era a voz dos membros, não da Cabeça. (…) Muitos, pois, clamam na tribulação e não são atendidos; mas isso acontece para sua salvação. Paulo, clamou ao Senhor, rogando-Lhe que lhe fosse retirado o estímulo da carne e não foi atendido. Foi-lhe respondido: “ «Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» “ (2 Cor 12, 9). Deus é médico e a tribulação medicamento em prol da saúde, e não castigo para condenação.

V. 4: “Tu, porém, és o Santo e habitas na glória de Israel” (4). Habitas naqueles que santificas, e fazes com que entendam o seguinte: Não atendas a alguns visando o bem deles, e a outros ouves para sua própria condenação. Satan pediu permissão de tentar a Job e foi-lhe concedida (Job 1, 11). Os demónios pediram licença para entrar na vara dos porcos e foram ouvidos (Mt 8, 31). Os demónios são atendidos, o Apóstolo não. (…) Lembrai-vos de repetir sempre graças a Deus. A todos asseguro: na tribulação prova-se o cristão, a fim de ver se não abandona o seu Deus. Pois, se tudo vai bem para o homem, ele vai deixando de ser cristão. Efectivamente, tornam-se melhores aqueles nos quais Deus habita, ao serem provados na tribulação como ouro.

Vs. 5. 6: “Em ti confiaram os nossos pais, confiaram e Tu os libertaste” (5). Sabemos e lemos a quantos de nossos pais, que nele esperaram, Deus livrou. Libertou os filhos de Israel da terra do Egipto (Ex 12, 51); livrou os três jovens da fornalha ardente (Dn 3); tirou Daniel da cova dos leões (Dn 14); libertou Suzana da calúnia, (Dn 13). Por que não foi libertado aquele que disse: “A ti clamaram e foram salvos; confiaram em ti e não foram confundidos” (6)?

V. 7: “Eu, porém, sou um verme e não um homem” (7 a). Pois o homem é também verme; mas ele é verme e não homem. Donde vem que não é homem? Porque é Deus. Por que, então, de tal modo se humilhou, dizendo: “verme”? Por que não homem? Porque “No princípio havia o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus (Jo 1, 1). “O opróbrio dos homens e o desprezo da plebe” (7 b). Vede quanto sofreu! No intuito de falarmos da paixão e tocarmos no assunto com maior pesar, vede quanto sofreu, e em seguida, qual a razão deste sofrimento. O Senhor foi flagelado e ninguém O sustentava, foi coberto de escarros e ninguém O socorria, recebeu bofetadas e ninguém acudia, foi suspendido no madeiro e ninguém o livrou, clamou: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”?(Mt 27, 46) e não foi atendido. Qual a razão? Em castigo de que delito, tamanho sofrimento? Em primeiro lugar perguntemos o que sofreu? E em seguida por que motivo. Vejamos como são os próprios inimigos de Cristo. Vede os padecimentos do Senhor: cristãos, atenção: “O opróbrio dos homens e o desprezo da plebe” (7 b).

Vs. 8. 9: “Todos os que vêem escarnecem de mim; estendem os lábios e abanam a cabeça” (8). “ «Confiou no Senhor, Ele que o livre; Ele que o salve, já que é seu amigo» “ (9). Mas qual o motivo por que falavam assim? Porque Ele Se fizera homem. Falavam como se combatessem um homem.

V. 10: “Na verdade, Tu me tiraste do seio materno” (10 a). Acaso diriam isto contra o Verbo que era no princípio, e o Verbo estava com Deus? O Verbo, pelo qual tudo foi feito, não foi tirado do ventre, a não ser porque o Verbo se fez carne, e habitou entre nós. “Puseste-me em segurança ao peito de minha mãe” (10 b). Pois antes dos séculos és meu Pai, desde o peito de minha mãe, és meu Deus.

V. 11: “Pertenço-te desde o ventre materno”, (11 a), isto é, és a minha única esperança, enquanto homem fraco. Verbo feito carne. “Desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus” (11 b). Desde as entranhas da minha mãe, és o meu Deus.

V. 12: “Não te afastes de mim, porque estou atribulado e não há quem me ajude” (12). Vede-o abandonado. E ai de nós, se Ele nos abandonar, porque não haverá quem nos socorra.

V. 13: “Rodeiam-me touros em manada; cercam-me touros ferozes de Basan” (13), o povo e os príncipes. O povo, novilhos numerosos; os príncipes, touros de Basan.

V. 14: “Abrem contra mim as suas fouces, como o leão que despedaça e ruge” (14). Ouçamos o rugido deles no Evangelho: “ «Crucifica-o! Crucifica-o!»” (Jo 19, 6).

V. 15: “Fui derramado como água; e todos os meus ossos se desconjuntaram” (15 a). Chama-se de ossos, o seu esqueleto, pois os ossos dão firmeza ao corpo. Quando foi que se lhe desconjuntaram os ossos? Quando disse: “Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos” (Mt 10, 16; Lc 10, 3). (…) Cristo se derramou como água. Foram lavados os imundos, irrigadas as mentes. “O meu coração tornou-se como cera e derreteu-se dentro do meu peito” (15 b). Chama de peito os fracos na Igreja. Como foi que seu coração se fez como cera? Seu coração, suas Escrituras, quer dizer, sua Sabedoria contida nas Escrituras. Pois a Escritura estava selada, ninguém a entendia. O Senhor foi crucificado e ela liquefez-se como cera, para que os fracos a entendessem. Daí também rasgar-se o véu do templo, porque se revelou o que estava velado.

V. 16: “A minha garganta secou-se como barro cozido” (16 a). Meu nome se fortificou com a tribulação. A argila é mole antes de passar pelo fogo, depois torna-se resistente; assim o nome do Senhor antes da paixão era desprezado e depois é honrado. “E a minha língua pegou-se ao céu-da-boca” (16 b). Assim que os seus pregadores, isto é, a sua língua, aderiram ao céu-da-boca para de seu íntimo aprenderem a sabedoria. “Reduziste-me ao pó da sepultura” (16 c).

V. 17: “Estou rodeado de matilhas de cães, envolvido por um bando de malfeitores;” (17 a b). Vede o Evangelho. “Trespassaram as minhas mãos e os meus pés” (17 c). Então abriram-se as chagas e as suas cicatrizes foram tocadas pelo discípulo hesitante, que afirmara: «Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no Seu peito, não acredito». Quando o Senhor lhe disse: «Tomé, olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito! E não sejas incrédulo, mas fiel». Tomé respondeu-lhe: «Meu Senhor e meu Deus!». Disse-lhe Jesus: «Porque me viste acreditaste. Felizes os que crêem sem terem visto» (Jo 27, 29).

V. 18: Quando pendia, estendido no madeiro não descreveria melhor a distensão do corpo no madeiro do que falar: “Posso contar todos os meus ossos” (18 a).

Vs. 18, 19: “Eles olham para mim cheios de espanto” (18 b). Olharam e não entenderam. Examinaram e não viram. Pousaram os olhos na carne, mas o coração não atingiu o Verbo. “Repartiram entre si as minhas vestes” (19 a). Suas vestes, Seus sacramentos puderam ser divididos pelas heresias. Mas havia ali uma veste que ninguém dividiu. “E sorteiam a minha túnica” (19 b). A “túnica”, conta o evangelista, era “toda tecida de alto a baixo, não tinha costuras (Jo 19. 23). Portanto do Céu, do Pai, do Espírito Santo. Que túnica é esta senão a caridade que ninguém pode dividir? O que é esta túnica a não ser a unidade? Sobre ela lançaram sortes. Os hereges puderam separar os sacramentos, mas não dividiram a caridade. Ninguém a tira da Igreja Católica e se alguém de fora começa a possuí-la, é trazido para dentro, como a pomba trouxe para a arca uma folha verde de oliveira (Gn 8, 11).

V. 20: “Mas Tu, Senhor, não Te afastes de mim!” (20 a). E assim se fez. No terceiro dia ressuscitou. “És o meu auxílio: vem socorrer-me depressa”. (20 b).

V. 21: “Livra a minha alma da espada” (21 a). Isto é, da morte. “E das garras dos cães a minha vida” (21 b). A Cabeça e o Corpo, a Igreja; “das garras”, do poder do cão. Quais são os cães? Os que latem como eles, sem saber contra quê. Nada se lhes fez e ladram. Os que ladram cegamente, sem discernir contra ou a favor de quem, são cães.

V. 22: “Salva-me da boca dos leões” (22 a). Sabeis quem é o leão rugidor, que anda ao redor, procurando a quem devorar (1 Pd 5, 8). “Livra-me dos chifres dos búfalos” (22 b). Chama-se de unicórnios os soberbos.

V. 23: Ouvistes o que Cristo sofreu e a sua súplica para se livrar de tais sofrimentos. Vejamos agora por que razão padeceu. Como pode ser cristão quem não se encontra na porção pela qual Cristo padeceu? Já compreendemos o que Ele sofreu: Seus ossos foram contados, Ele foi escarnecido, suas vestes foram divididas, lançaram sortes sobre sua túnica, cercaram-nos homens fortes e violentos, desconjuntaram-se todos os seus ossos. Vejamos qual a razão de tudo isso. Ó Cristo, Filho de Deus, se não quisesses não terias padecido. Mostra-nos o fruto da tua paixão. Ouve, diz Ele qual foi o fruto. “Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da assembleia” (23 a b). É o que acontece agora. Vejamos que Igreja é esta pela qual padeceu.

V. 24: “Vós, que temeis o Senhor, louvai-O!” (24 a). Em toda a parte onde se teme e louva a Deus, aí está a Igreja de Cristo. Examinemos ainda o salmo. Nada que precise de explicação. “Glorificai-o descendentes de Jacob!” (24 b).

Vs. 24. 25): “Reverenciai-o, descendentes de Israel” (24 c). “Pois Ele não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre” (25 a). De quais? Dos que não contam consigo mesmos. “Nem desviou dele a sua face; mas ouviu-o quando lhe pediu socorro” (25 b c). Em que ouviu? Para quê?

V. 26: “De ti vem o meu louvor na grande assembleia” (26 a). Diante de Deus, o seu louvor.

Vs. 26. 27: Vejamos. Ouçamos outra vez o Senhor: “Cumprirei os meus votos na presença dos teus fiéis (26 b). Quais são os seus votos? O sacrifício que ofereceu a Deus. Sabes qual sacrifício? Os fiéis conhecem os votos que cumpriu na presença dos que O temem, pois continua o salmista: “Os pobres hão-de comer e serão saciados” (27 a). Os pobres comem. Os ricos, porém, não se saciam, porque não têm fome. Comerão os pobres. Destes era Pedro, o pescador, destes eram outros pescadores, João e seu irmão Tiago, destes era igualmente o publicano Mateus; Sofreram o mesmo sacrifício que aquele do qual se alimentaram. Cristo ofereceu a ceia, entregou a sua paixão. Sacia-se quem o imita. Os pobres imitaram. Sofreram seguindo as pegadas de Cristo. Mas, por que são pobres? “Louvarão o Senhor os que O procuram” (27 b). Os ricos louvam a si mesmos, os pobres louvam o Senhor. O Senhor é a riqueza dos pobres. Têm a casa vazia e o coração cheio de riquezas. Procurem os ricos encher o cofre; os pobres buscam encher o coração. E vede qual a riqueza dos verdadeiros pobres: “Vivam para sempre os seus corações” (27 c).

Vs. 28, 29: Lede o salmo. Eis o que Cristo sofreu. Seu sangue foi derramado. Eis o nosso Redentor, eis o nosso preço. Procura descobrir o que comprou. “Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar para Ele todos os confins da Terra” (28 a). Os confins da terra hão-de se lembrar. “Hão-de prostrar-se diante dele todos os povos e nações” (28 b). Insiste ele: “Porque ao Senhor pertence a realeza. Ele domina sobre todas as nações” (29). Não saia a lembrança de vossos corações. “Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar para Ele todos os confins da terra: hão-de prostrar-se diante dele todos os povos e nações”, (28). “Porque ao Senhor pertence a realeza Ele domina sobre todas as nações” (29).

SALMO 23 (22)


Comentário

Versículo 1: A Igreja fala a Cristo: “O Senhor é o mau pastor: nada me faltará” (1). O Senhor Jesus Cristo é o meu Pastor, e nada me faltará.

V. 2: “Em verdes prados me faz descansar” (2 a). Em pastagens que começam a reverdecer, conduzindo-me à fé, colocou-me para me nutrir “e conduz-me às águas refrescantes” (2 b). Conduziu-me às águas do baptismo.

V. 3: “Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome” (3 a b). Guiou-me através de caminhos de justiça, por causa de seu nome. Conduziu-me pelas sendas estritas de sua justiça, que poucos palmilham; não por meus méritos, mas por causa de seu nome.
V. 4: “Ainda que atravesse vales tenebrosos” (4 a). Ainda que atravesse esta vida, que é a sombra mortal. “De nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo” (4 b c). Não temerei males porque habitas em meu coração pela fé; e agora estás comigo, de sorte que, após as sombras da morte, também eu esteja contigo. “A tua vara e o teu cajado dão-me confiança” (4 d). Tua disciplina, como bordão que guia o rebanho de ovelhas e como cajado para as ovelhas maiores, que da vida animal crescem para a espiritual, em vez de me afligirem mais me consolaram, porque Tu te lembras de mim.
V. 5: “Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos” (5 a). Depois de ser conduzido pela vara, qual animalzinho, às pastagens como rebanho, ao começar a estar sob o cajado, preparaste a mesa em minha presença, para não mais ser alimentado com leite, como criança (1Cor 3, 2), mas já maior tomasse alimento sólido, fortalecido contra aqueles que me angustiam. “Ungiste com óleo a minha cabeça” (5 b). Regozijaste com alegria espiritual minha mente. “A minha taça transborda” (5 c). Teu cálice que me faz esquecer os anteriores vãos deleites, como é excelente.

V. 6: “Na verdade, a tua bondade e o teu amor hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida” (6 a). Isto é, enquanto estiver nesta vida mortal, minha, não tua. “Habitarei na casa do Senhor para todo o sempre” (6 b). Acompanhar-me-à, irá comigo, não somente aqui, mas ainda habitarei eternamente na casa do Senhor.

SALMO 24 (23)

Comentário

Versículo 1: Salmo de David, sobre a glorificação e ressurreição do Senhor, realizada na manhã do primeiro dia da semana, chamado Domingo.

“Ao Senhor pertence a terra e o que nela existe, o mundo inteiro e os que nele habitam” (1 a).

O Senhor glorificado é anunciado, convidado à fé todos os povos, e o orbe inteiro se transforma na Sua Igreja.

V. 1., 2: “Pois Ele a fundou sobre os mares” (2 a). Firmemente Ela a estabeleceu acima dos vagalhões do século, a fim de superá-los sem sofrer dano algum. “E a consolidou sobre os abismos” (2 b), os homens cobiçosos precipitaram-se para o mundo. A Igreja supera também estes últimos, depois que a graça de Deus vence seus desejos mundanos, ela se dispõe pela caridade a receber a imortalidade.

V. 3: “Quem poderá subir à montanha do Senhor?” (3 a). Quem subirá até à excelsa justiça de Deus? “E apresentar-se no Seu Santuário?” (3 b). Quem se manterá no lugar onde subiu, lugar estabelecido acima dos mares.

V. 4: “O que tem as mãos inocentes e o coração limpo” (4 a). Quem então subirá e ali permanecerá, senão quem é inocente em obras e puro em pensamento?

“O que não ergue o espírito para as coisas vãs” (4 b). Aquele que não entregou a alma às coisas transitórias, mas cônscio da serela imortal, desejou a eternidade firme e imutável. “Nem jura pelo que é falso” (4 c). Como as coisas eternas são simples e verdadeiras, assim Ele se apresentou, sem dolo, ao próximo.

V. 5: “Este há-de receber a bênção do Senhor, e a recompensa de Deus, seu Salvador” (5).

V. 6: “Esta é a geração dos que O procuram” (6 a). Assim nascem aqueles que O procuram. “Dos que buscam a face de Deus de Jacob” (6 b). Eles buscam a face de Deus, que deu a primogenitura ao mais novo.

V. 7: “Ó portas, levantai os vossos umbrais” (7 a). Todos vós que desejais o principado entre os homens, retirai, para não vos servirem de empecilho as portas da concupiscência e do temor, que colocastes. “Alteai-vos, pórticos eternos” (7 b). Elevai-vos, ó portas da vida eterna, da renúncia do Século e da conversão a Deus. “Que vai entrar o Rei Glorioso” (7 c)! Entrará o Rei, do qual podemos gloriar-nos sem soberba. Ele, tendo ultrapassado as portas da imortalidade, e franqueando para Si as celestes, cumpriu o que Ele próprio havia dito: “Alegrai-vos, Eu já venci o mundo” (Jo 16, 33).

V. 8: “Quem é esse Rei glorioso?” (8 a). Admirada, apavorada, pergunta a natureza mortal: Quem é esse Rei da glória? “É o Senhor, poderoso herói” (8 b), que consideraste fraco e oprimido. “O Senhor, herói na batalha” (8 c). Apalpa as chagas. Vê-las-às cicatrizadas. A imortalidade foi restituída à fraqueza humana. Este solveu o débito terreno, quando a glória do Senhor guerreou a morte.

V. 9: “Ó portas levantai os vossos umbrais!” (9 a). Inicia a partida para o Céu. Ressoe novamente a trombeta do profeta: Também vós, príncipes celestes, levantai as portas das almas humanas que adoram a milícia do Céu. “Alteai-vos, pórticos eternos” (9 b), levantai-vos portas da eterna justiça, da caridade e da castidade, que fazem a alma amar o Deus único e verdadeiro, não cometer fornicação, adorando muitos, deuses só de nome. “Que vai entrar o rei glorioso” (9 c). Entrará o rei da glória “que está à direita de Deus e intercede por nós” (Rm 8, 34).

V. 10: “Quem é Ele, esse rei glorioso?” (10 a). Por que te admiras, também tu, príncipe dominador dos ares e perguntas: “Quem é Ele, esse rei glorioso? É o Senhor do Universo. É Ele o rei glorioso” (10 a b c). Depois de ter passado pela provação, com seu corpo ressuscitado, sobe acima de ti, príncipe dos ares. Ascende acima de todos os anjos aquele que foi tentado pelo anjo prevaricador. Nenhum de vós se interponha, querendo impedir-nos a passagem, a fim de não o adorarmos como Deus. Nem os principados, nem os anjos, nem as virtudes nos podem separar do amor de Cristo… “Aquele que se gloria glorie-se no Senhor” (1 Cor 1, 31). Existem, na verdade, esses poderes no governo do mundo, mas “O Senhor do Universo! É Ele o rei glorioso” (10 b c).

Salmo 25 (24)

Comentário

Versículo 1: É Cristo quem fala, mas em lugar da Igreja, pois as palavras são mais adequadas ao povo cristão, convertido para Deus.

Vs. 1. 2: “Para ti, Senhor, elevo o meu espírito” (1 b), inflamado de desejo espiritual, ele que era submergido na terra pelos desejos carnais. “Meu Deus, em ti confio: não seja confundido” (2 a). Meu Deus enquanto confiava em mim, fui arrastado até à fraqueza da carne. Tendo abandonado a Deus, quis ser como Deus; corei ao ser ridicularizado por minha soberba. Mas, já confio em ti; não me envergonharei.

Vs. 2. 3: “Nem escarneçam de mim os inimigos” (2 b). Não zombem de mim aqueles que, armando-me ciladas, astutas e ocultas sugestões e bendizendo-me: muito bem, muito bem, derrubaram-me nesse fosso. “Pois os que esperam em ti não serão confundidos” (3 a).

Vs. 3. 4: “Mas sejam confundidos os que atraiçoam sem motivo” (3 b). Sejam confundidos os que agem iniquamente, visando adquirir bens transitórios.

“Mostra-me, Senhor, os teus caminhos e ensina-me as tuas veredas” (4). Ensina-me as tuas veredas, “porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição” (Mt 7, 13), mas “é estreita a porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida, e como são poucos os que o encontram” (Mt 7, 14).

V. 5: “Dirige-me na tua verdade e ensina-me” (5 a), na fuga do erro. “E ensina-me”. Pois, por mim mesmo, só conheço a mentira, “porque és Tu o Deus meu salvador. Em Ti confio sempre” (5 b). Por ti expulso do paraíso (Gn 3, 23) e havendo partido para uma terra longínqua não posso voltar por minhas próprias forças, a não ser que venhas ao encontro deste desviado; meu regresso esteve dependente de tua misericórdia em todo o decurso do tempo.

V. 6: “Lembra-te, Senhor, da tua compaixão e do teu amor” (6 a). Lembra-te das obras de tua misericórdia, Senhor, porque os homens pensam que tu te esqueceste. “Pois eles existem desde sempre” (6 b). Sempre te acompanharam… mesmo quando o homem pecou, submeteste-o à vaidade, porém com esperança e não privaste tua criatura de tantos e tão grandes consolos.

V. 7: “Não recordes os meus pecados de juventude e os meus delitos” (7 c). Não reserves para castigá-los depois, os pecados de muita extrema audácia e ignorância, mas de certo modo saiam de Tua lembrança. “Lembra-Te de mim, Senhor, pela tua vida e pela tua vontade” (7 b). Recorda-te de mim, mas não segundo a ira que mereço mas segundo a tua misericórdia digna de ti. “Pelo teu amor e pela Tua bondade” (7 c). Por tua bondade, Senhor, não por meus méritos.

V. 8: “O Senhor é bom e justo” (8 a). Suave é o Senhor, visto que se compadeceu dos pecadores e ímpios, perdoando-lhes todos os pecados anteriores; mas ainda é recto o Senhor que, depois da misericórdia e do perdão, gratuitos e imerecidos, exigirá no último juízo méritos convenientes. “Por isso ensina o caminho aos pecadores” (8 b), porque antes concede a misericórdia para reconduzir ao caminho.

V. 9: “Guia os humildes na justiça” (9 a). Dirigirá os mansos, e não confundirá no juízo os que seguem a sua vontade, e não resistem preferindo-lhe a sua própria. “E dá-lhes a conhecer o seu caminho” (9 b). Não ensinará os seus caminhos àqueles que se adiantam, como se pudessem governar-se a si mesmos; mas ensinará àqueles que não levantam cerviz, nem recalcitram ao ser-lhes imposto o jugo suave e o fardo leve.

V. 10: “Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade”. Que caminhos lhes ensinará senão a misericórdia que o torna aplacável e a verdade que o livra do suborno?

Apresenta-se com o primeiro, perdoando os pecados e com a segunda julgando os méritos. Todos os caminhos do Senhor, são, portanto, as duas vindas do Filho de Deus, uma como salvador misericordioso, outra como juiz. “Para os que guardam a sua aliança e os seus preceitos” (10 b). Entendem ter sido o Senhor misericordioso em sua primeira vinda, Ele que na segunda será Juiz. Mansos e dóceis buscam a sua aliança, pois Ele nos remiu com seu sangue para uma vida nova; e reconhecem seus testemunhos nos profetas e evangelistas.

V. 11: “Por amor do teu nome, Senhor, perdoa o meu pecado, pois é muito grande” (11), não apenas perdoaste meus pecados, cometidos antes que tivesse fé, mas ainda os meus pecados, que são muitos; porque na caminhada não faltam ofensas a ti, perdoarás, aplacado pelo sacrifício de um espírito atribulado.

V. 12: “Quem é o homem que teme ao senhor?” (12 a). Aqui está o início da sabedoria. “Ele lhe ensinará o caminho a seguir” (12 b). Estabeleceu uma lei no caminho livremente escolhido, para que não peque impunemente.

V. 13: “A sua vida decorrerá feliz e os seus descendentes possuirão a terra” (13). Suas obras lhe obterão herança sólida de um corpo restabelecido.

V. 14: “O Senhor comunica os seus segredos aos que o temem” (14 a). O temor parece ser próprio dos fracos, mas o Senhor é o sustentáculo dos que o temem. E o nome do Senhor, glorificado por todo o orbe, corrobora os que o temem, “e dá-lhes a conhecer a sua aliança”(14 b). Ele faz com que seu testamento lhes seja manifestado, porque os povos e os confins da terra são herança de Cristo.

V. 15: “Os meus olhos estão sempre postos no Senhor, porque Ele tira os meus pés da armadilha” (15). Não temerei os perigos terrenos. Aquele para quem olho é quem retirará do laço os meu pés.

V. 16: “Volta-te para mim, Senhor, e tem compaixão, porque me encontro só e abandonado.” (16). Sou o único povo que pratica a humildade de tua Igreja.

V. 17: “Afasta as angústias do meu coração” (17 a). As tribulações de meu coração, por causa da abundância da iniquidade, e diminuição da caridade, se multiplicaram.

“E livra-me das minhas angústias” (17 b). Tira-me de minhas necessidades, porque é forçoso tolerá-las, a fim de que, “aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 10, 22).

V. 18: “Vê minha miséria e meu sofrimento” (18 a). Vê a minha humildade. Considera a minha labuta, suportando os indisciplinados entre os quais me encontro, “e perdoa todos os meu pecados” (18 b). Perdoa-me todos os pecados, não só os da juventude e do tempo da minha ignorância, antes de possuir a fé, mas ainda os que, já vivendo da fé, cometo por fraqueza ou cegueira durante a vida presente.

V. 19: “Vê como são numerosos os meus inimigos” (19 a). Não são apenas os de fora, mas também os de dentro da comunhão da Igreja, “e como sentem por mim um ódio implacável” (19 b). Odiaram-me, e no entanto, eu os amo.

V. 20: “Guarda a minha vida e salva-me” (20 a). Guarda a minha alma para que eu não me incline a imitá-los. “Eu confio em Ti; não me deixes ficar envergonhado” (20 b). Não serei confundido, se eles se insurgirem contra mim, porque não depositei em mim a minha confiança, mas em ti.

V. 21: “Que a honestidade e a rectidão me protejam” (21 a) porque esperei em ti, Senhor. Os inocentes e os justos não estão próximos entre si corporalmente como acontece com os maus, mas aderem a mim em concórdia, inocência e rectidão, porque não falhei procurando imitar os maus, “pois em Ti confiei” (21 b), esperando que a tua última colheita passe pela ventilação.

V. 22: “Ó Deus livra Israel de todas as suas angústias” (22). Ao teu povo, que preparaste para a tua visão, livra ó Deus, não só das tribulações toleradas por fora, mas também das suportadas interiormente.

SALMO 26 (25)

Comentário

Versículo 1: É atribuível, não digo a Cristo Jesus, homem e mediador, mas a toda a Igreja já perfeitamente estabelecida em Cristo.

“Senhor, faz-me justiça, pois tenho vivido com rectidão” (1 b). Julga-me, Senhor, porque em consequência de tua misericórdia previamente concedida, torna-se meritória a minha inocência. Foi o caminho que segui. “Em ti, Senhor, confio sem vacilar” (1 c). No entanto, será esperando no Senhor, não em mim mesmo, que permanecerei unido a Ele.

V. 2. 3: “Examina-me, Senhor, põe-me à prova” (2 a). Prova-me, experimenta-me, Senhor, para que nada me escape do que há oculto em mim. Revela-o, não a ti, pois nada te é escondido, mas a mim e aos outros homens. “Purifica-me os rins e o coração” (2 b). Aplica uma cauterização medicinal a meus delitos e pensamentos. “Eu tenho a tua bondade diante de meus olhos” (3 a). Tenho diante dos meus olhos, não os meus méritos, mas a tua misericórdia que me conduziu a fim de não ser consumido pelo fogo “e caminho na tua verdade” (3 b). Aborreci a mentira existente em mim, e então aprouve-me a tua verdade, sendo-me aprazível estar com ela e nela.

V. 4: “Não convivo com homens que adoram ídolos” (4 a). Não quis entregar meu corpo àqueles que buscam com empenho ser felizes, no gozo de bens transitórios, o que é impossível. “Nem me associo com os traidores” (4 b). E como esta fruição é a causa de todas as iniquidades, não terei cumplicidade oculta com obreiros iníquos.

V. 5: “ Detesto a reunião dos malfeitores” (5 b). Odeio as reuniões realizadas por malfeitores, visando um consenso vão, “E não tomo assento com os ímpios” (5 b). Por isso, não me assentarei com os ímpios em tais reuniões, não entrarei em acordo com eles.

V. 6: “Lavo as minhas mãos em sinal de inocência” (6 a). Serão puras as minhas obras no meio de inocentes; lavarei entre eles minhas mãos, com as quais aprenderei as tuas sublimidades. “E ando à volta do teu altar, Senhor” (6 b).

V. 7: “Para entoar um cântico de acção de graças” (7 a), a fim de aprender como te louvar. “E narrar todas as tuas maravilhas” (7 b). Quando houver aprendido, exporei todas as tuas maravilhas.

V. 8: “Amo, Senhor, a beleza da tua casa” (8 a), a tua Igreja, “e o lugar onde reside a tua glória” (8 b). Ali habitas, ali és glorificado.

V. 9: “Não me juntes com os pecadores” (9 a), não arruínes, juntamente com os que te odeiam, a minha alma, que amou a beleza de tua casa. “Nem minha vida com homens sanguinários” (9 b), que odeiam o próximo. Pois, a tua casa se orna com os dois preceitos da caridade juntamente com os que te odeiam. A minha alma, que amou a beleza de tua casa. “Nem minha vida com homens sanguinários” (9 b), que odeiam o próximo. Pois, a tua casa se orna com dois preceitos da caridade.

V. 10: “As Suas mãos estão cheias de infâmia” (10 a). Não me percas, portanto, com os ímpios e com os homens sanguinários, cujas obras são iníquas, “e a sua direita está cheia de suborno” (10 b). Transformaram os dons destinados à obtenção da salvação eterna em recursos para receberem presentes mundanos, “que julgam ser a piedade uma fonte de lucro” (1 Tm 6, 5).

V. 11: “Eu, porém, caminho na minha rectidão; Salva-me e tem compaixão de mim!” (11). O preço tão elevado do Sangue do meu Senhor obtenha-me a perfeita libertação; e nos perigos desta vida, não me abandone a tua misericórdia.

V. 12: “Os meus pés seguem por caminho recto” (12 a). Meu amor não se apartou de tua justiça; “Nas assembleias, bendirei o Senhor” (12 b). Não ocultarei daqueles que chamaste a tua bênção, Senhor, porque ao teu amor acrescentou o amor ao próximo.

SALMO 26 (25)

Catequese

Aprendestes a renovar o vosso modo de vida anterior, “Deveis, no que toca à conduta de outrora, despir-vos do homem velho, corrompido por desejos enganadores; que vos deveis renovar pela transformação do Espírito que anima a vossa mente; e que deveis revestir-vos do homem novo, que foi criado em conformidade com Deus, na justiça e na santidade, próprias da verdade” (Ef 4, 22-24). Mas o apóstolo Paulo continua explicando o que significa despojar-se do Velho homem e revestir-se do novo. Eis o que é despojar-se do velho homem e revestir-se do novo: “Por isso, despi-vos da mentira, e diga cada um a verdade a seu próximo, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4, 25). Nenhum de vós pense que deve falar a verdade aos cristãos, e a mentira aos pagãos. Todos somos próximos uns dos outros pela condição do nascimento terreno; mas somos irmãos diversamente pela esperança da herança celeste. Considera a todo o homem como teu próximo, mesmo antes de ser cristão. Não sabes o que ele é diante de Deus, ignoras, como Deus, em sua presciência, viu que ele seria. Podem ser, pois, próximos de nós ocultamente ainda fora da Igreja, e estar longe de nós, de modo escondido, membros da Igreja. Como, portanto, não conhecemos o futuro, tenhamos por nosso próximo a todos, não somente devido à condição humana mortal, mas ainda por causa da herança futura, porque não sabemos o que há-de ser aquele que agora nada é.

Atenção, às demais circunstâncias que acompanham o revestir-se do novo homem e despojar-se do velho. “Abandonai a mentira; falai a verdade cada um ao seu próximo, porque somos membros uns dos outros. Irai-vos mas não pequeis. “Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento” (Ef 4, 27); porque, embora pela própria condição humana e pela fraqueza do que é mortal, a ira se introduza sorrateiramente no cristão, não deve perdurar nem tornar-se inveterada. Expulsa-a do coração antes que se ponha a luz visível a fim de que não te abandone a luz invisível. É possível entender ainda de outra forma esta passagem: Cristo, que é a Verdade, é nosso Sol de justiça. Quando este Sol começar a habitar em ti, pela fé, a ira não prevaleça tanto que o sol se ponha enquanto dura a tua cólera, isto é, Cristo não abandone a tua mente. A ira inveterada torna-se ódio; e transformada em ódio já te tornas homicida. “Todo aquele que tem ódio a seu irmão é um homicida” (1 Jo 3, 15).

“Enquanto navegavam no lago, Jesus adormeceu” (Lc 8, 23). Se em ti Jesus não estivesse adormecido, não sofrerias tais tempestades, mas terias tranquilidade interior, uma vez que Jesus estaria de vigília contigo. O que significa Jesus adormeceu? A tua fé em relação a Jesus dormia. Vês os maus prosperarem e os bons em trabalho. Eis a tentação, as ondas. E tua alma diz: Ó Deus, tua justiça está em que os maus prosperem e os bons labutem? E Deus te responde: E esta é a tua fé? Foi isto que te prometi? Tu te fizeste cristão para teres a felicidade neste mundo? O que farás para te libertares? Acorda Jesus e diz-lhe: “Mestre, Mestre, estamos perdidos!” (Lc 8, 24). Ele acordará, isto é, voltará à tua fé. Com o seu auxílio, ponderarás em teu espírito que os bens agora concedidos aos maus não permanecerão para sempre com eles: ou haverão de deixa-los durante a vida, ou serão deixados à hora da morte. Os bens temporais que lhes são dados, logo serão arrebatados. “Toda a gente é como erva, e toda a sua beleza como a flor dos campos. “ A erva seca e a flor murcha, mas a palavra do nosso Deus permanece eternamente” (Is 40, 6-8).

Vira as costas ao que parece, e volta a face para o que permanece. Com Cristo acordado, aquela tempestade já não se abaterá sobre o teu coração; as ondas não encherão a tua barca, porque tua fé domina os ventos e as ondas, e o perigo passará. A isto se refere, o que ensina o Apóstolo acerca de despir o homem velho. “Se vos irardes não pequeis, que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento, nem deixeis espaço algum ao diabo. Aquele que roubava deixe de roubar; antes se esforce por trabalhar com suas próprias mão, fazendo o bem, para que tenha com que partilhar com quem passa necessidade” (Ef 4, 26-28).

É o mesmo homem, um homem só. Era Adão, seja Cristo. Examinemos mais atentamente o salmo. Todo aquele que se vai aperfeiçoando na Igreja há-de suportar os maus. (…) A Igreja actual é uma eira. Ela encerra em si palha de trigo. Ninguém procure separar toda a palha, a não ser o tempo do joeirar o trigo. E quem olhar a eira de longe, pensa que contém somente palha. Se não olhar mais atentamente, se não estender a mão, não soprar, dificilmente chegará a distinguir os grãos. Por conseguinte, também algumas vezes os grãos estão colocados de tal modo que, separados entre si, não se tocam. Cada um dos que caminha para a perfeição pensa que está sozinho. Este pensamento tentou Elias, aquele grande homem. Ele disse a Deus: “Derrubaram os teus altares e assassinaram os teus profetas. Só eu escapei; mas também a mim me querem matar” (1 Rs 19, 10). Mas o que lhe respondeu o oráculo divino? “Reservei para mim sete mil homens, aqueles que não dobrarem o joelho diante de Baal” (Rm 11, 3 e 4). Quem ainda for mau, não pense que ninguém mais é bom. Quem é bom não julgue ser o único.

Versículo 1: “Senhor faz-me justiça, pois tenho vivido com rectidão” (1 a). Que significa querer se julgado? Querer ser discernido dos maus. “Faz-me justiça, ó Deus, e defende a minha causa contra a gente sem piedade! Livra-me do homem mentiroso e perverso (Sl 42, 1). Julga-me Senhor. Porquê? “Senhor, faz-me justiça, pois tenho vivido com rectidão; em ti, Senhor, confio sem vacilar” (1 a b). Se depositar minha esperança num homem, possivelmente o verei uma ou outra vez procedendo mal, fora do caminho certo, que ele aprendeu ou ensinou na Igreja, e seguindo as veredas do diabo. E como a minha esperança repousa num homem, se ele vacilar, vacila a minha esperança, e ele cai, cai minha esperança. Mas, efectivamente, “Em ti, Senhor, confio sem vacilar” (1 b).

V. 2: “Examina-me, Senhor, e põe-me à prova; purifica-me os rins e o coração” (2 a b). O que é: “Purifica-me os rins e o coração?” (2 b). Queima meus deleites, queima os meus pensamentos. O salmista emprega o termo coração em lugar de pensamento, rins em vez de prazeres. Com que hás-de queimar-me os rins? Com o fogo da Tua palavra. Como cauterizarás o meu coração? Com o calor do teu espírito. Deste calor fala outro salmo: “Nada escapa ao seu calor” (Sl 18, 7). E deste fogo diz o Senhor: “Eu vim lançar fogo sobre a terra” (Lc 12, 49).

V. 3: Continua: “Eu tenho a tua bondade diante de meus olhos e caminho na tua verdade” (3), isto é, não pus minha complacência num homem, mas interiormente eu te agradei. Tu vês. Não tenho nada desagradar naquilo que os homens vêem, conforme disse o Apóstolo: “Nada façais por ambição, nem por vaidade; mas com humildade, considerai os outros superiores a vós próprios, não tendo cada um em vista os próprios interesses mas todos e cada um exactamente o interesse dos outros” (Fl 2, 3-5).

Vs. 4. 5: “Não convivo com homens que adoram ídolos, nem me associo com os traidores” (4). “Detesto a reunião de malfeitores e não tomo assento com os ímpios” (5).

V. 6: “Lavo as minhas mãos em sinal de inocência” (6 a).

Lavas as mãos quando pensas nas tuas obras, com piedade e inocência, diante dos olhos de Deus. “E ando à volta do teu altar, Senhor” (6 b). Ali ofereces votos ao Senhor, ali apresentas tuas preces, ali conservas pura consciência e dizes a Deus o que és; e se em ti existir alguma coisa que desagrade a Deus, cura-te aquele ao qual te confessas.

V. 7: Prossegue o salmista: “Para entoar um cântico de acção de graças e narrar todas as tuas maravilhas” (7 a b). Que significa: “Para entoar um cântico de acção de graças” (7 a)? Chama-se isto ouvir diante de Deus. Quantos têm ouvidos, mas não aqueles mencionados por Jesus: “Aquele que tiver ouvidos, oiça” (Mt 13, 9). “Entoar um cântico de acção de graças”, é entender interiormente que o mal em ti existente, por causa dos teus pecados, é só teu; todo o bem proveniente da justificação vem de Deus. Não te louves, quando és bom, porque se te louvas quando és bom, tornas-te mau. A humildade te havia feito bom, a soberba te faz mau. Tu converteras-te para seres iluminado e pela tua conversão te fizeste luminoso, esclarecido. Por que foste iluminado? Porque te mudaste em coisa diferente. Que coisa é esta que não eras? Deus é luz. Tu, pois, não eras luz, porque pecador. O Apóstolo diz: “É que outrora éreis trevas”, a não ser velhos homens? “Mas agora sois luz”. O único motivo de serdes luz, vós que éreis trevas, é o de terdes sido iluminados. Não penses que és luz por ti mesmo. “O Verbo era a Luz verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1, 9). Mas para não se ensoberbecerem os que ouviram: “Agora sois Luz”, logo acrescentou: “No Verbo”. Por conseguinte, fora do Verbo não há Luz. “Pois, quem te faz superior aos outros? Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias, como se não o tivesses recebido” (1 Cor 4, 7)?

Vs. 8. 9: E agora vede, aquele que ama Deus e presume de Deus, no meio dos maus, rogando a Deus que não o deixe perder-se com os maus, porque Deus não se engana no julgamento. Tranquilamente pode ser bom entre os maus. E repete o que ouves: “Amo, Senhor, a beleza da tua casa” (8 a). A casa de Deus é a Igreja; ainda possui maus, todavia a beleza da casa de Deus acha-se nos bons, nos santos. “E o lugar onde reside a tua Glória” (8 b). O que é a glória de Deus? A supramencionada: se alguém se torna bom, não se glorie em si mesmo, mas no Senhor. Pois, “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 23). O Senhor habita de tal sorte que Deus é glorificado por causa de seus bens. Além disso, não os atribuem a si mesmos, não os reivindicam como próprios. A Escritura quer distingui-los, porque há alguns que possuem os dons de Deus, e sim em si mesmos. Têm dons de Deus, mas não querem gloriar-se em Deus, mas não integram a beleza da casa de Deus e nos quais a glória de Deus habita, constituem o lugar onde reside a glória de Deus. Onde habita a glória de Deus, senão nos que se gloriam, não em si, mas no Senhor? (…) Ainda mais. Não presumi de um homem e não entrarei em acordo com os ímpios; não entrarei, nem me sentarei em suas reuniões. Uma vez que assim agi na Igreja de Deus, qual será a minha retribuição? O salmista continua dizendo o que devemos responder: “Não me juntes com os pecadores, nem a minha vida com os homens sanguinários.” (9).

V. 10-12: “As suas mãos estão cheias de infâmia e a sua direita está cheia de suborno” (10). O que é suborno? É louvar um homem para obter presentes, adulá-lo, acariciá-lo, julgar contra a verdade em vista de receber presentes. Que presentes? Não somente ouro, prata, etc., mas também quem julga mal para ser louvado, recebe um presente e dos mais vãos. (…) A palavra de Deus é sempre proferida, nunca passa; a palavra humana, mal anunciada, já passou. Vede que os que não cometem suborno diante dos olhos de Deus, único a ver quem aceita ou não aceita subornos, podem dizer apenas: “Eu, porém, caminho na minha rectidão; salva-me e tem compaixão de mim” (11). Fui realmente sacudido pelos escândalos e tentações de todos os lados, por parte daqueles que censuram o meu julgamento, com temeridade humana. Mas, “os meus V. 12: pés seguem por caminho recto” (12 a). Por que no “caminho recto?” Porque havia afirmado acima: “Em ti, Senhor, confio sem vacilar” (1 b). Qual a conclusão? “Nas assembleias, bendirei o Senhor” (12 b). Não me louvarei nas assembleias, como se estivesse seguro a respeito do apoio humano, mas te bendirei com minhas obras. Bendizer a Deus nas assembleias, consiste em viver de tal modo que os costumes bendigam a Deus. Pois, quem bendiz ao Senhor com a língua e maldiz com as acções, não bendiz ao Senhor nas assembleias. Aqueles cujos costumes estão em desacordo com o que falam, fazem com que Deus seja blasfemado, porque os que ainda não entraram na Igreja, embora apegados aos seus pecados (e por isso recusam fazer-se cristãos), no entanto, escusam-se com os maus, lisonjeando-se e enganando-se a si mesmos com as palavras: Por que tentas a persuadir-me a tornar-me cristão? Suportei a fraude de um cristão, e nunca a cometi.

SALMO 27

Comentário

Versículo 1: Dirige-se o salmista ao recruta de Cristo que se acerca da fé.
“O Senhor é minha luz e salvação de quem terei medo? (1 a). O Senhor me dará o conhecimento de si e da salvação, quem me arrebatará de perto dele? “O Senhor é o baluarte da minha vida: quem me assustará?” (1 b).

O Senhor repele todos os ataques e ciladas do meu inimigo. De ninguém terei medo.

V. 2: “Quando os malvados avançam contra mim para me devorar” (2 a). Ao se aproximarem de mim os maus, como fito de me conhecer e insultar preferindo-se a si mesmos, enquanto procuro tornar-me melhor… “São eles, meus opressores e inimigos” (2 b). Não apenas os que me afligem, censurando-me de modo amigável e tentando afastar-me dos meus propósitos mas também os meus inimigos, “Que resvalam e caem” (2 b). Enquanto assim agem, empenhando-se em defender sua própria opinião, tornando-se incapazes de acreditar em coisas melhores e começaram a odiar a palavra da salvação, por cujo amor faço o que não lhes apraz.

V. 3: “Ainda que um exército me cerque, meu coração não temerá” (3 a). Se multidão de contraditores se levantar contra mim, meu coração não temerá sua conspiração, não passará para seu lado. “Mesmo que me declarem a guerra, ainda assim terei confiança” (3 b).

Se surgir contra mim a perseguição deste mundo porei minha esperança no pedido que vou formular.

V. 4: “Uma só coisa peço ao Senhor e ardentemente o desejo” (4 b). Apresentei ao Senhor um só pedido e isto procurarei: “É habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida” (4 c). Enquanto perdurar esta vida, adversidade alguma me exclua do número dos que mantém a unidade e a verdade da fé no Senhor, por todo o orbe da terra. “Para saborear o seu encanto” (4 d). Tenho em mira perseverando na fé, que se me apresente a amável face do Senhor, a fim de que eu a contemple face a face. “E ficar em vigília no seu templo” (4 e). E absorvida a morte pela vitória, veja-me revestido de imortalidade, enquanto seu templo.

V. 5: “No dia da adversidade, Ele me abrigará na Sua cabana” (5 a). Fui incluído na oculta economia do Verbo encarnado, durante as provas inerentes à vida mortal. “Há-de esconder-me no interior da sua tenda” (5 b). Protegeu-me a mim que acreditei de coração para obter a justiça (Rm 10, 10).

Vs. 5. 6: “Colocou-me no alto de um rochedo” (5 c), visando manifestar que a minha fé me obteve a salvação. Destacou sobre sua firmeza a minha confissão. “Agora, Ele ergue a minha cabeça acima dos inimigos que me rodeiam” (6 a). O que o Senhor há-de reservar-me para o fim, se já agora, estando morto o corpo por causa do pecado (Rm 8, 10), sinto que enquanto homem interior sirvo a lei de Deus, e não é arrastado ao cativeiro, como rebelde, sob a lei do pecado (Rm 7, 22)? “Oferecei sacrifícios de louvor no seu santuário” (6 b). Considerei o orbe que crê em Cristo. Louvei a Deus cheio de alegria por se ter Ele humilhado temporariamente em meu favor. “Cantarei e entoarei hinos ao Senhor” (6 c). Alegrar-me-ei cordial e activamente no Senhor.

V. 7: “Ouve, Senhor, a voz da minha súplica” (7 a). Ouve Senhor a intensa e forte voz interior que fiz chegar a teus ouvidos. “Tem compaixão de mim e responde-me” (7 b). Tem piedade de mim e atende esta voz.

V. 8: “Meu coração murmura por ti, os meus olhos te procuram” (8 a b). Não agi ostensivamente diante dos homens, mas ocultamente, onde apenas tu ouves, disse o meu coração: Não esperei de ti prémio algum fora de ti, mas busquei o teu rosto. “É a Tua face que eu procuro Senhor” (8 c). Insistirei com perseverança nesta busca, não estou atrás de coisa insignificante, mas da tua face, Senhor, tendo em mira amar-Te gratuitamente, porque nada posso encontrar de mais precioso.

V. 9: “Não desvies de mim o teu rosto” (9 a). Encontro o que procuro. “Não afastes com ira o teu servo” (9 b). Não ache coisa diversa do que procuro. Poderia haver castigo pior para quem ama e busca a verdade de teu rosto? Quando encontrarei esta verdade se não me ajudas? “Tu és o meu amparo: não me rejeites nem abandones, ó Deus, meu salvador” (9 c). Não menosprezes que ouse um mortal buscar o que é eterno, pois tu, ó Deus, curas a ferida causada por meu pecado.

V. 10: “Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem” (10 a). O reino deste mundo e a cidade terrena, onde nasci no tempo e como ser mortal abandonaram-me porque eu te procurava, desprezando suas promessas. Não podiam o que queria. “O Senhor há-de acolher-me” (10 b). O Senhor, que pode dar-se a si mesmo, acolheu-me.

V. 11: “Ensina-me, Senhor, o teu caminho” (11 a). Estabelece-me, Senhor, uma lei em teu caminho, porque me sinto atraído por ti e parti do temor para chegar, através de conhecimento tão grande, à sabedoria. Não erre, abandonando teus ensinamentos. “Guia-me por sendas direitas por causa dos que me perseguem” (11 b c). Dirige-me em linha recta nas estreitezas do caminho, pois não basta começar, visto que os inimigos até ao fim não descansam.

V. 12: “Não me entregues à mercê dos meus inimigos” (12 a). Não permitas que os que me afligem se saciem de meus males. “Pois contra mim se levantaram testemunhas falsas” (12 b). Insurgiram contra mim levantando falso testemunho, para afastar-me, apartar-me de ti, como se eu almejasse glória humana. “Que sussurram violência” (12 c). Não me abalou a mim, que tenho a promessa de maior recompensa nos céus.

V. 13: “Creio, firmemente, vir a contemplar a bondade do Senhor na terra dos vivos” (13). “A boca de quem calunia dá morte à alma” (Sb 1, 11). “Creio, firmemente, vir a contemplar a bondade do Senhor, na terra dos vivos” (13), onde não há lugar para a falsidade.

V. 14: “Confia no Senhor, sê forte e corajoso, e confia no Senhor!” (14). É árduo para o mortal, tardio para o amante. Mas ouve a palavra que não é falaz: “Confia no Senhor” (14 a). Não consideres negado o que ainda não recebeste. Não desfaleças por falta de esperança. Vê que foi dito: “Confia no Senhor”.

SALMO 27 (26)

Catequese

O Senhor, nosso Deus, consola-nos, vendo-nos, por justo juízo, comer o pão com o suor do rosto (Gn 3, 19). Digna-se falar em nosso lugar e a nós, mas também em nós habita.

Versículo 1: O termo Cristo vem de crisma unção. Não foi apenas a Cabeça que foi ungida, mas também nós, seu corpo. Ele é rei que nos governa e nos conduz, e sacerdote que intercede por nós (Rm 8, 34). Só Ele é sacerdote e sacrifício simultaneamente. Ofereceu a Deus em sacrifício, nada menos do que a si próprio. Não se encontraria fora dele uma vítima racional puríssima, que nos redimisse, qual cordeiro imaculado, derramando o próprio sangue, e incorporando-nos a si como membros, de sorte que também nele nós, fossemos ungidos. A unção, portanto, atinge todos os cristãos. Nos tempos anteriores, no Antigo Testamento, cabia somente a duas espécies de pessoas, o rei e o sacerdote. Daí se vê que somos o Corpo de Cristo porque somos ungidos. E todos nele somos Cristo, e somos Cristo, porque de certo modo o Cristo total é a Cabeça e Corpo. Tal unção nos dará a perfeição espiritual, na vida que nos é permitida. Eis o que diz o salmista: “O Senhor é a minha luz e salvação: de quem terei medo?” (1 a). Ele me ilumina; dissipem-se as trevas. Ele me cura; ceda a enfermidade. O Senhor ilumina; somos iluminados. O Senhor salva; somos salvos. Fora dele somos trevas e fraqueza. A quem temeremos, tendo nele uma esperança certa, fixa, verdadeira? Não tenho medo de ninguém, a não ser dele. “O Senhor é o baluarte da minha vida: quem me assustará?” (1 b).

V. 2: “Quando os malvados avançam contra mim, para me devorar, são eles meus opressores e inimigos, que resvalam e caem.” (2). Por conseguinte, o que temerei, ou a quem? De quem temerei, ou de quê? Meus perseguidores resvalam e caem. Para que me perseguem? Para devorar-me as carnes? O que são as minhas carnes? Os meus afectos carnais. Há uma região aonde o perseguidor não pode chegar. É onde habita o meu Deus. A quem temerá a minha carne, quando o que for mortal tiver revestido a incorrupção? Queres saber por que os perseguidores nos consomem a carne, e nem assim ela deve temer? “Semeando o corpo terreno é ressuscitado o corpo espiritual” (1 Cor 15, 44). “O Senhor é minha luz e salvação: de quem terei medo” (1 a). O imperador protegido por escudeiro, não teme; mortal, escoltado por mortais sente-se seguro. Um mortal protegido pelo imortal temerá, tremerá?

V. 3: “Ainda que um exército me cerque, o meu coração não temerá” (3 a). Os acampamentos são fortificados, mas quem mais forte do que Deus? “Mesmo que me declarem guerra, ainda assim terei confiança” (3 b). O doador é invencível, o dom não pode ser arrebatado. Até mesmo as dádivas temporais, apenas podem ser tiradas por quem as deu. Ele não retira os dons espirituais se tu não os abandonares. Seja quem for que os tira, tira-os se ele lhe der possibilidade para tal, sabemo-lo e lemos no livro de Job. Nem o diabo, que parecia ter o máximo poder por algum tempo, pôde coisa alguma sem permissão (Job 1), igualmente no Evangelho diz o Senhor: “ «Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas eu roguei por ti para que a tua fé não desapareça» ” (Lc 22, 31). Deus permite, pois, para nosso castigo, ou para nossa provação.

Por isso temamos somente a Deus.

V. 4: “Uma só coisa peço ao Senhor e ardentemente a desejo” (4 a). Vejamos o que pede quem nada teme. Grande segurança de coração! Quereis de nada ter medo? Pedi esta única coisa, único pedido por quem nada teme, ou que pede para não temer. Qual é esta única coisa? “É habitar na casa do Senhor, todos os dias da minha vida” (4 b). Chama-se casa o lugar onde permanecemos para sempre. Exprime outro salmo o que faremos naquela casa. “Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar” (Sl 83, 5). Fala-se aqui de dias, como em outra parte de anos: “Os teus anos não têm fim” (Sl 101, 28 b). Pois os dias da vida eterna constituem um só dia sem ocaso. E o que farás ali? Qual será o teu deleito? Qual o recreio de teu coração? Quais delícias, lá onde as alegrias não faltam? Não permanecerias ali se não fosses feliz. (…) Deus nos é propício quando nos nega o mal que amamos. Está irado, ao invés, quando dá ao que ama o objecto perverso do seu amor. A palavra do Apóstolo o evidencia: “Deus, de acordo com os apetites dos seus corações os entregou à impureza” (Rm 1, 24). Deu-lhes, portanto, o que amavam, mas condenando. Vê-se, ao contrário, um pedido rejeitado: “A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim” (um anjo de Satanás), diz S. Paulo. Respondeu-me, porém: “«Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza»” (2 Cor 12, 8. 9). Se amamos o que Deus quer, sem dúvida ele no-lo dará. Eis a única coisa que devemos amar: habitar na casa do Senhor por todos os dias da nossa vida. Uma vez que nestas habitações terrenas, os homens se entregam a diversas delícias e prazeres, e cada qual deseja habitar numa casa onde nada incomode ao espírito e existam muitos deleites e, porém, foram subtraídas as coisas agradáveis, ele procura mudar-se para qualquer outro lugar, indaguemos com certa curiosidade do salmista o que faremos nós e o que fará ele naquela casa: “Para saborear o seu encanto” (4 c). Realiza-se ali um grande espectáculo: a contemplação das delícias do próprio Senhor. Então, será a nossa manhã. A noite passou. Por esta razão em outro lugar diz o salmo: “Pela manhã, Senhor, exponho diante de ti o meu pedido e fico à espera, confiante” (Sl 5, 4). Nós caímos. Ele desceu. Ele subiu, somos erguidos; porque “ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu” (Jo 3, 13). É reerguido aquele que ruiu, quem desceu, subiu. Não desesperemos, porque Ele subiu sozinho. Ergue-nos a nós, caídos, por quem Ele desceu. E estaremos de pé, contemplaremos e gozaremos de grande deleite.

(…) Pode dizer-se: bom homem, bom campo, boa casa, bom animal, boa árvore, bom corpo, boa alma. De cada vez acrescentaste a palavra: bom. Existe um bem simples, o próprio bem, através do qual todas as coisas se tornam boas. Se já nos aprazem os bens que não o são por si mesmos (todas as coisas mutáveis não são boas em si mesmas), qual não será a contemplação do bem imutável, eterno, permanente, sempre igual? Mas, o que me fará o Senhor para que possa contemplar sempre, nada me moleste durante essa contemplação, nenhuma sugestão me distraia, poder algum me retire, não suporte qualquer inimigo enquanto contemplo e seguro gozo de delícias do próprio Senhor, meu Deus? Ele me protegerá. Não quero só contemplar as delícias do Senhor, mas também: “Ficar em vigília no seu templo” (4 c). O Senhor nosso Deus proteja seu templo, e estarei seguro. Contemplarei para fruir, serei protegido para minha salvação. À medida que a contemplação for perfeita, perfeita será a protecção.

V. 5: Qual a razão por que teremos isto no fim?

“No dia da adversidade, Ele me abrigará na sua cabana; há-de esconder-me no interior da “Sua tenda” (5 a b). Habitarei na casa todos os dias da minha vida, para contemplar as delícias do Senhor e ser protegido como seu templo. Então, não haverá mais dias de meus males. Quem me olhou misericordiosamente quando estava distante, como não me fará feliz junto dele? Ousas esperar certa contemplação de Deus, sendo fraco e de coração imundo? Ele responde: “ouso”. Não por minha própria causa, mas devido às suas delícias. Os dias de nossos males são os desta vida. Divergem os dias maus dos ímpios e dos fiéis. “Permanecemos neste corpo, vivemos exilados, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão” (2 Cor 5, 6). Mas são bem diferentes os dias maus daqueles que ainda não acreditam. Entretanto, nem a estes Cristo desprezou, tendo morrido pelos ímpios (Rm 5, 6). Ouse, portanto, presumir a alma humana, e pedir aquela coisa única; ela a terá seguramente, com garantias a possuirá.

Vs. 5. 6: “O rochedo era Cristo” (1 Cor 10, 4). “Colocar-me no alto de um rochedo” (5 c). Portanto, exaltou-me em Cristo. Porque te humilhaste até ao chão, eu te exaltarei sobre o rochedo. Mas, Cristo está em alto, tu, porém, em baixo. Ouve a sequência: “Agora Ele ergue a minha cabeça acima dos inimigos que me rodeiam” (6 a). Ainda suporto os inimigos do Corpo de Cristo, ainda não estou exaltado acima dos meus inimigos. Nossa Cabeça, Cristo, já está nos céus. Por enquanto ainda nossos inimigos podem enfurecer-se contra nós, porque ainda não estamos exaltados acima deles; mas nossa Cabeça já está no Céu. Foi lá que disse: “«Saulo, Saulo, porque me persegues»” (Act 9, 4)? Declarou estar em nós aqui em baixo; portanto, também nós estamos lá em cima. Nós, pela fé, esperança e caridade estamos com nossa Cabeça no Céu eternamente, uma vez que também Ele, pela divindade, bondade e unidade está «sempre connosco até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20). “Oferecei sacrifícios de louvor no seu santuário” (6 b). Imolamos uma vítima de júbilo, imolamos uma vítima de alegria, vítima de agradecimento, de acção de graças, vítima inefável. Mas onde? Na Santa Igreja. O que imolamos? Uma alegria superabundante e inenarrável, sem palavras, com sons inefáveis. Isto é que é vítima de júbilo. Tua alma percorra toda a criação. Em toda a parte te clamarão as criaturas: Deus me fez. Quanto mais percorreres o Universo, reflectirás, conceberás o louvor do artífice. Vês os céus, grandiosa obra de Deus. Vês a terra: Deus fez as numerosas sementes, a multidão dos animais. Vai ainda dos céus à terra. Em toda a parte se fala do Criador. Quem, porém, descreverá toda a criação? Quem enumerará seus louvores? No entanto, trata-se apenas de coisas visíveis.

Vs. 6. 7: “Cantarei e entoarei hinos ao Senhor” (6 c). Estaremos seguros, seguros cantaremos, seguros salmodiaremos, ao contemplarmos as delícias do Senhor e formos protegidos como seu templo, no estado de incorrupção, quando a morte for tragada pela vitória (1 Cor 15, 54).

E agora? “Ouve, Senhor, a voz da minha súplica” (7 a): agora gemamos, rezemos. O gemido é peculiar aos infelizes, a oração aos necessitados. Terminará a oração, suceder-lhe-à o louvar. Passará o choro, virá a alegria. Não desistamos desta petição, até que, por meio de sua conduta e de sua graça, alcancemos. “Ouve, Senhor, a voz da minha súplica, tem compaixão de mim e responde-me” (7 a b). Pede uma só coisa, longamente rogando, chorando, gemendo.

V. 8: Ouve por que razão a pedi: “O meu coração murmura por ti, os meus olhos te procuram; é a tua face que eu procuro, Senhor. Não desvies de mim o teu rosto, nem afastes, com ira, o teu servo” (8 a b c). Se nossa alegria dependesse do sol, nosso coração não diria: “É a tua face que eu procuro Senhor” (8 c), mas diriam nossos olhos corporais. Os olhos carnais voltam-se para a luz visível, os do coração, procuram aquela outra luz. Queres ver a luz atingida pelos olhos do coração? Deus é esta luz: “Deus é luz”, diz João, e nele não há nenhuma espécie de trevas. (1 Jo 1. 5). Queres, então, ver aquela luz? Purifica os olhos que podem vê-la: “Felizes os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Nada se pode dizer maior. Percebem-no os que amam de verdade. “Tu és o meu amparo: não me rejeites nem me abandones” (9 c). Estou a caminho. Eu pedi-te uma só coisa: habitar na tua casa todos os dias da minha vida, contemplar as tuas delícias, ser protegido, como teu templo. Foi a única coisa que pedi. Acaso haverás de dizer: esforça-te, caminha; dei-te o livre arbítrio, és dono da tua vontade, “Desvia-te do mal e faz o bem, procura a paz e segue-a” (Sl 33, 15). Não te afastes do caminho recto, não te detenhas, não olhes para trás. Continua andando. “Mas aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 10, 22). Não presumas de ti mesmo. Se o Senhor te abandonar, desfalecerás no caminho, cairás, perder-te-às e por lá hás-de ficar. Diz-lhe, portanto: Deste-me vontade livre, mas sem ti, de nada vale meu esforço. “Tu és o meu amparo: não me rejeites nem abandonas, ó Deus, meu salvador” (9 c d). Tu que plasmaste ajudas; não abandones, tu que criaste.

V. 9: Não peças outra coisa, porque uma só te bastará. “Meu coração murmura por ti, os meus olhos te procuram, é a tua face que eu procuro, Senhor. Não desvies de mim o teu rosto, nem afastes com ira o teu servo” (8. 9 a b).

V. 10: “Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem” (10 a). O salmista fez-se pequenino diante de Deus. Toma-O por pai, por mãe. É pai porque criou, porque chama, ordena, rege; mãe, porque abriga, nutre, aleita, mantém. “Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem, o Senhor há-de acolher-me” (10 a b).

Temos aqui outro pai, outra mãe, ou antes, tivemos. O pai, segundo o século, é o diabo e foi nosso pai quando éramos infiéis, porque aos infiéis disse o Senhor: “Vós tendes por pai o diabo” (Jo 8, 44). Se é ele que é o pai de todos os ímpios, “o espírito que agora actua nos rebeldes” (Ef 2, 2), quem é a mãe? É certa cidade, chamada Babilónia. É constituída pela sociedade de todos os perdidos do Oriente e do Ocidente. Viemos também a conhecer outra mãe, a Jerusalém celeste, a Santa Igreja. Uma porção peregrina na terra. Deixamos a Babilónia.

Quem concede ao homem até mesmo os bens deste mundo, senão Deus. Ou o que é tirado ao homem, senão o que ordena o doador, ou permite? Mas os homens insensatos pensam que são os demónios (que eles adoram) quem concede estes bens, e às vezes dizem a si mesmos: Deus nos é necessário para obtermos a vida eterna, a vida espiritual. Devemos, porém, cultuar estes poderes, por causa dos bens temporais. Oh, futilidade do género humano. Eles não são necessários para se alcançarem tais bens? Não. Mas, receamos que, irados, nos prejudiquem. Não prejudicarão se Deus não o permitir. Se os adorares, o que consegues é apenas ofender a Deus; e este, ofendido, há-de entregar-te ao poder dos demónios.

V. 11: O diabo é quem rege os ímpios a este mundo de trevas. Quais trevas? As dos pecadores, dos infiéis. Daí dizer o apóstolo aos fiéis: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz, no Senhor” (Ef 5, 8). Já aceites por Ele o que diremos? “Ensina-me, Senhor, o teu caminho” (11 a).

O salmista não ousaria pedir, se antes não tivesse dito: O Senhor, porém, me acolheu. Não teria coragem de pedir se antes não houvesse suplicado: Sê o meu auxílio. Estabelece-me, portanto, uma lei em teu Cristo. O próprio caminho nos falou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Lei de Cristo é lei misericordiosa. Ele é a sabedoria, da qual está escrito: “Abre a boca com sabedoria, tem na língua instruções de bondade” (Pr 31, 26). E se transgredirdes em algum ponto a Lei, confessai-vos. Quem por ti derramou o seu Sangue, perdoar-te-á. Apenas não deixes o caminho. Diz-lhe: Acolhe-me: “Guia-me por sendas direitas, por causa dos que me perseguem” (11 b c). Não retires a misericórdia, tu dizes-me em outro salmo: Dará misericórdia Quem deu a Lei.

V. 12: “Não me entregues à mercê dos meus inimigos” (12 a), isto é, não dê meu consenso aos que me afligem. Entrega, se te apraz, às mãos dos meus perseguidores. Mas, o que entregou? O corpo. Assim fala o Livro de Job: “Deixa a terra entregue às mãos do ímpio” (Job 9, 24). “Não me entregues” a mim; falo-te da alma, falo-te da mente. “Pois contra mim se levantaram testemunhas falsas” (22 b). Uma vez que são testemunhas perversas, falam muito mal de mim, atacam muito minha reputação; se for entregue a sua animosidade, eu também mentirei; serei companheiro deles e não participarei de tua verdade, mas serei participante da mentira contra ti: “Que sussurram violência” (12 c).

Se se assanhassem quanto quiserem e se eles se empenharem em impedir minha carreira, não me entregues a seus desejos.

V. 13: Volta o salmista àquela única coisa, depois de labores, de dificuldades, entre as mãos dos perseguidores e dos que o afligem, fatigando-se, mas também firme e seguro, pois o Senhor o acolhe e ajuda, guia, rege. Suspirou, por fim, e disse: “Creio, firmemente, vir contemplar a bondade do senhor, na terra dos vivos” (13). Livrar-me-à da terra dos mortais o Senhor, que por mim, se dignou aceitar a terra dos mortais e morrer às mãos dos que morrem.

V. 14: O que diz aquele que lhe estabeleceu uma lei? Ouçamos também a voz do Senhor, que do alto nos exorta e nos consola. Ouçamos a voz daquele que ficou em lugar do pai e da mãe que nos abandonaram. Pois, ouviu nossos gemidos, viu nossos suspiros, observou nosso desejo, nosso único pedido; recebeu de bom grado a única súplica, por intermédio de Cristo, nosso advogado, disse-nos: “Confia no senhor” (14 a). Não esperas num mentiroso. Prometeu o omnipotente, prometeu inteiramente seguro, prometeu o veraz. “Sê forte e corajoso e confia no Senhor”! (14 b). Não desanimes, não sejas daqueles aos quais se diz: “Ai de vós que perdestes a perseverança” (Eclo 2, 14)!

“Confia no Senhor” (14 a), diz o salmista a todos nós, diz o salmista a um só homem somos um em Cristo, somos o Corpo de Cristo. Por conseguinte, quem perdeu a perseverança efeminou-se, perdeu o vigor. Ouçam-me os homens, ouçam-me as mulheres, porque acham num único varão, homem e mulher. Em Cristo “não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28).

SALMO 28 (27)

Comentário

Versículos 1. 2: Não é imprecação, mas perdição de castigo o que ele parece desejar aos inimigos. Assim, no Evangelho, o Senhor não está lançando uma imprecação, mas prediz o castigo iminente das cidades onde operou milagres, e que não se converteram (Mt 11, 20). “Clamo por ti, Senhor, meu rochedo; não fiques surdo à minha voz” (1 a). Por ti clamei, Senhor; meu Deus não quebres a unidade de teu Verbo com a natureza humana que possuo. “Não suceda que, pelo teu silêncio, eu seja como os que descem à sepultura” (1 b). Desde que a eternidade de teu Verbo não deixa de unir-se a mim, não sou homem como os demais que nascem na profunda miséria deste mundo, onde teu Verbo não é conhecido, e parece que te calas. “Ouve o grito das minha súplicas quando te invoco, quando ergo as minhas mãos para teu Santuário” (2), quando sou crucificado para a salvação dos que, pela fé, se tornaram teu santo templo.

V. 3: “Não me arrastes com os pecadores, com os que praticam a iniquidade; eles falam de paz com os seus semelhantes” (3 a b c), com os que dizem: “Sabemos que tu vieste da parte de Deus, como Mestre” (Jo 3, 2), “mas no seu coração existe maldade” (3 d). No coração cogitam o mal.

V. 4: “Retribui-lhes segundo os seus actos” (4 a). É justo retribuir-lhes conforme suas obras. “Segundo a malícia dos seus crimes” (4 b). Afeiçoados ao mal, não podem atingir o bem. “Retribui-lhes segundo a obra de suas mãos” (4 c). Recompensa-os conforme a intenção de suas obras, embora tenha valido para a salvação dos outros aquilo que fizeram. “Dá-lhes a paga que merecem” (4 d). Quiseram retribuir com mentiras a verdade que ouviam; engane-os a sua astúcia.

V. 5: “Eles não compreendem as acções do senhor” (5 a). Como se manifesta que assim lhes aconteceu? Por isso mesmo: “nem reparam na obra que Ele fez” (5 b). Isto já foi castigo para eles com ânimo malévolo experimentaram-no como homem e não conheceram qual o plano do Pai, ao enviar um Deus encarnado. Nem as obras visíveis, desenroladas diante dos seus olhares, não os moveram. “Por isso Ele os destruirá e não os deixará restaurar-se” (5 c d). em nada me prejudiquem, nem possam coisa alguma, por seus novos esforços de sátira a minha Igreja.

V. 6: “Bendito seja o Senhor, pois ouviu o grito das minhas súplicas” (6).

V. 7: “O Senhor é a minha força e o meu escudo” (7 a). O Senhor auxilia-me, ao sofrer tanto e protege-me ao ressuscitar imortal. “Nele confiou o meu coração e Ele socorreu-me” (7 b); “por isso hei-de louvá-Lo de todo o coração (7 c). Os que em mim crêem, depois de passado o medo da morte, louvá-lo-ão, não coagidos pelo temor sob a lei, mas dentro da lei por livre vontade.

V. 8: “O Senhor é a força do seu povo” (8 a), que não é aquele povo ignorante da justiça de Deus, querendo estabelecer a sua própria. Não se considerou forte por si mesmo, porque o senhor é que é a fortaleza de seu povo, a lutar entre as dificuldades desta vida com o diabo. “A fortaleza que salva o seu ungido” (8 b). Protegerá finalmente o seu povo, salvo por Cristo, depois que demonstrou fortaleza no combate com a imortalidade da paz.

V. 9: “Salva o teu povo, Senhor, abençoa a tua herança” (9 a). Intercedo por ele, após ter reflorescido a minha carne, porque me disseste: “Pede-me e Eu te darei povos como herança” (Sl 2, 8) porque “tudo o que é meu é teu” (Jo 17, 10). “Apascenta-o e guia-o para sempre” (9 b). Rege-os nesta vida temporal e daqui transfere-os para a eterna.

SALMO 29 (28)

Comentário

Versículos 1. 2: O salmo dirige-se ao mediador de mão forte, a respeito da perfeição da Igreja neste mundo, onde ela milita no tempo, contra o diabo.

“Filhos de Deus prestai ao Senhor” (1 a). Trazei ao Senhor a vós mesmos. Os Apóstolos, pastores do rebanho, por meio do Evangelho, vos geraram. “Prestai ao Senhor glória e honra” (1 b). Por vossas obras seja o Senhor honrado e glorificado. “Prestai ao Senhor a glória de seu nome” (2 a). Este se torne conhecido gloriosamente por toda a terra. “Adorai o Senhor no seu átrio sagrado” (2 b). Adorai ao senhor em vosso coração, grande e santificado. Sois sua santa e régia habitação.

V. 3: “A voz do Senhor ressoa sobre as águas” (3 a). A voz de Cristo prevalece sobre os povos: “O Deus glorioso fez ecoar o Seu trovão” (3 b). O Deus de majestade, de uma nuvem, sua carne, pregou de modo terrível a penitência. “O Senhor está sobre a vastidão das águas” (3 c). O mesmo Senhor Jesus, após ter emitido a voz acima dos povos, e os ter atemorizado, converte-os para si e habitou neles.

V. 4: “A voz do Senhor é poderosa” (4 a). A voz do Senhor actuante neles e fazendo-os poderosos. “A voz do Senhor é cheia de majestade” (4 b). A voz do Senhor que neles faz grandes coisas.

V. 5: “A voz do Senhor quebra os cedros” (5 a). Voz do Senhor que humilha os soberbos pela contrição do coração. “O Senhor derruba os cedros do Líbano!” (5 b). Pela penitência o senhor quebra os orgulhosos por causa do brilho da nobreza terrena, quando para confundi-los escolheu o que é vil neste mundo, para nele mostrar a sua divindade.

V. 6: “Ele faz saltar o Líbano como um novilho” (6 a). Contada sua soberba elevação, há-de derrubá-los para que imitem a humildade do Senhor que, como um vitelo, foi levado como vítima ao sacrifício pelos nobres deste século. “Revoltam-se os reis da terra e os príncipes conspiram juntos contra seu ungido” (Sl 2, 2). “E o Sirion, como um bezerro” (6 b). Pois, o bem-amado e unigénito do Pai despojou-se da sua nobreza; e fez-se homem como filhos de judeus, “que não se submeteram à justiça de Deus” (Rm 10, 3) e se gabavam orgulhosamente de uma peculiar justiça sua.

V. 7: “A voz do Senhor lança chispas de fogo” (7). A voz do senhor, que atravessava sem lesão alguma o calor agitado dos perseguidores, ou que dividia a furiosa raiva de seus perseguidores, de sorte que diziam alguns: Acaso seria o Cristo? Outros, porém, declaravam: “Não; o que Ele anda é a desencaminhar o povo!” (Jo 7, 12). De tal modo traçava uma linha divisória em seu insano tumulto que atraía uns ao seu amor, e a outros abandonava na sua malícia.

V. 8: “A voz do Senhor abala o deserto” (8 a). Voz do Senhor que impelia à fé povos outrora “sem esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2, 12). Entre eles não havia profeta, nem pregador da palavra de Deus, como se ali fosse região inabitada. “O Senhor fez tremer o deserto de Cadés” (8 b). E então o Senhor fará celebrar-se a palavra santa de suas Escrituras menosprezadas pelos judeus que a não entendiam.

V. 9: “A voz do Senhor retorce os carvalhos” (9 a). A voz do Senhor, primeiro, prepara os que superam e repelem as línguas envenenadas. “E despoja as árvores dos bosques” (9 b). E então revelar-lhes-á as obscuridades dos livros Divinos e as sombras dos mistérios, onde com liberdade, se apresentarão. “No seu santuário todos exclamam: “ «Glória»!” (9 c). Na sua Igreja todos os regenerados para a esperança eterna louvam a Deus, pelos próprios dons, recebidos do Espírito Santo.

V. 10: “Para além do dilúvio, está sentado o Senhor” (10 a). Em primeiro lugar, o Senhor habita no dilúvio deste mundo nos seus santos, como numa arca, a saber, recolhidos na Igreja. “E o Senhor está sentado como rei eterno” (10 b). e em seguida sentar-Se-à reinando eternamente sobre eles.

V. 11: “O Senhor dá força ao seu povo” (11 a). O Senhor dará força ao seu povo em luta nas porcelas e turbilhões deste mundo, porque não lhes prometeu a paz neste mundo. “O Senhor abençoa o seu povo com a paz” (11 b). O Senhor abençoará o seu povo, dando-lhes a paz em si mesmo, porque conforme Ele disse: “Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz” (Jo 14, 27).

SALMO 30 (29)

Comentário

Versículo 1: Alegria da ressurreição; mudança para o estado de imortalidade, renovação do corpo, não somente do corpo do Senhor, mas também de toda a Igreja.

V. 2: Fala, o Cristo total: “Senhor, eu te enalteço, porque me salvaste” (2 a). Louvarei a tua sublimidade, Senhor, porque me escolheste. “E não permitiste que os inimigos se rissem de mim” (2 b). Não permitiste que aqueles que frequentemente se empenharam em oprimir-te com várias perseguições, por toda a parte, se regozijassem por minha causa.

V. 3: “Apelei a ti, Senhor, meu Deus, e tu me curaste” (3). Senhor, meu Deus por ti clamei e já não carrego meu corpo ferido e doente, em condição mortal.

V. 4: “Senhor, livraste a minha alma da mansão dos mortos, poupaste-me a vida, para eu não descer ao túmulo” (4). Salvaste-me da condição de profunda cegueira, e do lodo profundo da carne corruptível.

V. 5: “Cantai salmos ao Senhor, vós que o amais” (5 a). Exulta o profeta vendo o futuro e diz: “dai-lhe graças lembrando a sua Santidade” (5 b). Louvai-O porque não Se esqueceu da santidade que vos concedeu.

V. 6: “A Sua indignação dura apenas um instante” (6 a). Castigou-os por causa do primeiro pecado, que pagaste com a morte. “Mas a sua benevolência é para toda a vida” (6 b). Deu-vos, porque quis, a vida eterna, à qual não podíeis voltar por vossas próprias forças. “Ao cair da noite vem o pranto” (6 c). Este começou à tarde, quando a luz da Sabedoria se retirou do homem que pecara e foi condenado à morte. E o pranto se prolongará à tarde, enquanto o povo de Deus espera no meio de trabalhos e tentações o dia do Senhor. “Ao amanhecer, volta a alegria” (6 d); até a manhã em que houver a alegria da ressurreição, alegria esta pronunciada na ressurreição matinal do Senhor.

V. 7: “Eu dizia na minha felicidade: «Jamais serei abalado» (7 a). Eu, porém, o povo que falava no início, disse na prosperidade, quando já não padecia necessidade alguma: “ «Jamais serei abalado» ” (7 b).

V. 8: “Senhor, foste bom para mim e deste-me segurança” (8 a). Mas esta prosperidade, Senhor, não provém de mim mesmo, mas por tua benevolência, confirmaste minha posição honrosa; foi o que aprendi, pois “se esconderes a tua face logo fico perturbado” (8 b). Ao desviares, em certo tempo, a face de mim, pecador, fiquei perturbado, porque se apartou de mim a iluminação do teu conhecimento.

V. 9: “Clamo a ti, Senhor, e imploro a piedade do meu Deus” (9). Relembrando o tempo de minha tribulação e miséria, e como se ainda estivesse nele mergulhado, ouço a voz do teu primogénito, minha Cabeça e disposto a morrer por mim.

V. 10: “Que vantagem tiras da minha morte e da minha descida à sepultura?” (10 b). “Porventura poderá o pó louvar-te” (10 c). se não ressuscitar logo e meu corpo se corromper, “porventura poderá o pó louvar-te?” (10 c), a saber, a turba dos ímpios que justificarei por minha ressurreição? “Ou anunciar a tua fidelidade?” (10 d). Ou anunciará a tua verdade para a salvação dos demais?

V. 11: “Ouve-me, Senhor, tem compaixão de mim; Senhor vem em meu auxílio” (11).

V. 12: “Tu converteste o meu pranto em festa” (12 a). Tendo a Igreja sucedido ao primogénito dentre os mortos, agora na dedicação da tua casa digo: “Tiraste-me o luto e vestiste-me de júbilo” (12 b). Rasgaste o véu de meus pecados, rompeste a tristeza de minha imortalidade, e me cingiste com a primitiva túnica, a alegria imortal.

V. 13: “Por isso o meu coração te cantará sem cessar” (13 a). Para não mais chorar e cantar a ti, não a minha humildade, mas a minha glória, porque já me reergueste de minha humilhação. Não me angustie a consciência do pecado, pelo temor da morte e do juízo. “Senhor, meu Deus, eu te louvarei para sempre” (13 b). Minha glória consiste, Senhor meu Deus, em louvar-Te eternamente, porque nada tenho de mim mesmo, mas todos os bens provêm de ti, que és, ó Deus, “tudo em todos” (1 Cor 15, 28).

SALMO 30 (29)

Catequese

Versículo 2: “Senhor, eu Te enalteço, porque me salvaste e não permitiste que os inimigos se rissem de mim” (2). Em primeiro lugar, pensemos no próprio Senhor que, por se ter dignado fazer-se homem, pôde aplicar a si mesmo estas palavras. Era fraco, porque homem; orava porque fraco, afastava-Se dos discípulos e ia para o deserto. Longe de todos, orava. Se considerarmos a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo quem é que ora? A quem ora? Porque ora? Reza a Deus? Implora a um igual? Ele coeterno com o Pai? Diz o Apóstolo João: “No princípio havia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que tudo começou a existir, e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam” (Jo 1, 1-5). Ao recitarmos tudo isso, não encontramos oração, nem razão de orarmos, nem oportunidade para orar, nem desejo de orar. Mas, como pouco adiante se diz: “E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco” (Jo 1, 14), aí está a majestade à qual podes suplicar, a humanidade que reza por ti. Aquele “que está à direita de Deus e é quem intercede por nós” (Rm 8, 34).

Por que razão intercede por nós? Porque se designou ser mediador. O que significa ser mediador entre Deus e os homens? O que é Deus? O Pai, o Filho e o espírito Santo. O que são os homens? Pecadores, ímpios, mortais. Entre a Santíssima Trindade e a fraqueza, iniquidade dos homens, o mediador fez-se homem e não iníquo, contudo fraco. Não sendo iníquo uniu-te a Deus, sendo fraco aproxima-se de ti.

E assim, para que existisse um mediador entre o homem e Deus o “Verbo se fez carne”, isto é, o Verbo se fez homem. Pelo nome de carne designa-se os homens: daí a palavra: “E toda a criatura verá a salvação de Deus” (Lc 3, 6). Toda a carne representa os homens. Também diz o Apóstolo: “Porque não é contra os seres humanos que temos que lutar mas contra os Principados, as Autoridades e contra os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6, 12).

“E o Verbo se fez carne”, que deveis entender: E o Verbo se fez homem.

Na verdade, nada de maior existiu no género humano, nem surgiu “entre os nascidos de mulher (Mt 11, 11) não apareceu ninguém maior do que João Baptista”. Se perguntas: O que há de mais sublime entre os homens? A resposta é: João Baptista. Aquele, porém, do qual afirmara João não ser digno de me inclinar para lhe desatar as correias das sandálias (Mc 1, 7). O que era senão o maior de todos? Mesmo enquanto homem era maior do que os outros homens. Pois, enquanto Deus, segundo a divindade era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus, acima de toda a criatura, Ele é igual ao Pai. Talvez alguém de vós julgue que a natureza humana, assumida pela Sabedoria de Deus, era igual aos demais homens. Em teus membros grande é a diferença entre a cabeça e os demais membros. De facto, nos restantes membros, só existe o sentido do tacto. Na cabeça, no entanto, acham-se a vista, o ouvido, o olfacto, o gosto e o tacto. Se tão grande é a excelência da cabeça relativamente aos outros membros, quanto maior não será a supereminência da Cabeça da Igreja, isto é, daquele homem que Deus escolheu para ser o mediador entre Deus e os homens? Sabeis que o homem consta de alma e corpo. Mas a própria alma humana, de algo que as almas dos animais não têm. Pois, também os animais têm alma, e chamam-se, por isso, seres animados. Não se chamariam animais se não fosse a alma; vemos também que eles vivem. Mas, o que possui além disso o homem, para se dizer que foi feito à imagem de Deus? Ele entende e avalia, distingue o bem do mal; nisto foi feito à imagem e semelhança de Deus. Possui, portanto, algo que os animais não têm. E se despreza em si aquilo que o torna melhor que os animais, destrói e de certo modo invalida a imagem de Deus, de sorte que se diga a esses tais: não sejas “irracional como um cavalo ou um jumento (Sl 31, 9). Jesus Cristo era em tudo igual aos homens, excepto no pecado. Se usou do corpo para agir, como sabemos que este corpo não era fictício, mas verdadeiro? Como, por exemplo, nos certificamos de que tem um corpo? Ele andou, dormiu, foi preso, flagelado, esbofeteado, crucificado, morto.

Sem corpo, nada disso se teria podido realizar. Teve um corpo verdadeiro, conforme Ele próprio disse após a ressurreição: “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo. Tocai-me e olhai que um espírito não tem carne nem ossos, como verificais que Eu tenho” (Lc 24, 39). Por tais factos, tais acções, conhecemos que o Senhor Jesus teve um corpo, e igualmente através de outras funções naturais percebemos que possuía uma alma. Sentir fome, ter sede, provêm da alma. Excluída a alma, o corpo exânime não poderá sentir. O Senhor fez-se fraco por tua causa, ó homem que me ouves. Não te compares a Deus. Efectivamente, és criatura, e Ele teu Criador. Nem te compares a teu mediador, porque se fez homem, por tua causa, teu Deus, o Verbo, Filho de Deus. Deves antepôr a ti aquele que é o homem, enquanto mediador; Deus, porém, acima de toda a criatura. Assim entenderás que, feito homem por ti, com toda a conveniência reza por ti. “Senhor, eu te enalteço, porque me salvaste e não permitiste que os inimigos se rissem de mim” (Sl 29, 2).

Versículo 1: “Salmo. Cântico da dedicação do templo de David” (1). A casa, agora em construção, será dedicada um dia. Agora, de facto, se edifica a casa, isto é, a Igreja; depois será dedicada. Na dedicação manifestar-se-à a glória do povo cristão, agora oculto. Enfureçam-se agora os inimigos e humilhem, mas o que lhe for permitido do alto. Nem tudo o que sofremos da parte dos inimigos, lhes deve ser atribuído, mas antes ao Senhor Nosso Deus. Nosso mediador demonstrou por seu exemplo que, se do alto vem aos homens a permissão de nos prejudicar, não lhes é dado do alto a vontade de fazer mal, mas apenas o poder. O mau tem em si mesmo a vontade de causar dano; mas não o poder de prejudicar. Pelo facto de querer, já se torna réu; quanto ao poder, contudo, por oculta disposição da providência de Deus, é permitido contra uns para castigo, contra outros para provação, e contra outros para coroa. Para castigo, isto é, aos estrangeiros, vencer o povo de Israel, porque este pecara contra Deus (Jz 10, 7 e 13, 1, etc.). Para provação, como foi permitido ao diabo contra Job (1, 12). Job foi provado e o diabo, confundido. Para a coroa, todavia, como foi permitido aos perseguidores contra os mártires. Os mártires foram mortos e os perseguidores pensaram que venciam. Querer fazer mal vem do homem, mas ele nem sempre pode matar a quem quiser.

Por isso, o próprio Senhor, juiz dos vivos e dos mortos, ao comparecer perante um juiz humano, dando-lhes um exemplo de humildade e paciência, respondeu ao juiz ameaçador, inchado de soberba, que lhe perguntava: “Não sabes, que tenho o poder de te libertar e o poder de te crucificar?”. Tirou-lhe o inchaço do orgulho, dizendo: “«Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto»” (Jo 19, 10-11). E Job (de quem o diabo matou os filhos, arrebatou os bens) o que disse? “ «O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou, bendito seja o nome do Senhor» ” (Job 1, 21).

“ «Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males» ” (Job 2, 10).

O que dizer, a respeito de tantos males que os inimigos infligiram aos cristãos, enquanto exultavam e se alegravam por isto? Mas quando se manifestará que não se alegraram? Quando estes forem confundidos e os cristãos exultarem na vida do Senhor nosso Deus, que trará na mão a retribuição: condenação para os ímpios, reino para os justos. Por conseguinte, quando isto acontecer vos recordais da leitura do Livro da Sabedoria: “Então, com grande confiança, o justo se levantará face aos que o oprimiram e desprezavam as suas obras. Ao verem-no serão abalados por um horrível temor. Insensatos de nós, que considerávamos a sua vida uma loucura. Que proveito tirámos do nosso orgulho? Tudo isso desapareceu como a sombra”. E o que dirão sobre o justo? “Como é ele contado entre os filhos de Deus, e partilha da sorte dos santos? (Sb 5, 1 ss.). Então será a dedicação da casa, que agora é constituída no meio das tribulações. Então dirá com razão aquele povo: “Senhor, eu te enalteço, porque me salvaste e não permitiste que os inimigos se rissem de mim” (2). Esta palavra se realizará no povo de Deus, povo agora angustiado, atribulado por tantas tentações, tantos escândalos, tantas perseguições, tantas opressões. O principiante não sente na Igreja estes tormentos espirituais. Pensa que há paz. Mas, logo que começa a progredir, verá em que tribulação se há-de encontrar, porque quando cresce o trigo, e produz a espiga, “aparece também o joio” (Mt 13, 26); “Porque na muita sabedoria há muita arrelia, e o que aumenta o conhecimento, aumenta o sofrimento” (Ecl 1, 18). “E assim também todos os que quiserem viver a fé em Cristo Jesus serão perseguidos. Quanto a esses perversos e impostores, irão de mal a pior, extraviando outros e extraviando-se a si próprios” (2 Tm 3, 12. 13).

Espera no Senhor. Passarão as aflições; virá aquele que esperas, enxugará teu suor, secará tuas lágrimas e não chorarás mais. Agora, porém, gemamos no meio das tribulações, conforme diz Job: “A vida do homem sobre a terra não é ela uma luta (Job 7, 1)?

A dedicação da casa já se realizou na nossa Cabeça, como se fosse a dedicação dos alicerces. Pois disse o Apóstolo: Quanto ao fundamento, “ninguém pode pôr um alicerce do que já foi posto: Jesus Cristo. Se alguém sobre este alicerce, edifica com ouro, prata, pedras preciosas…” (1 Cor 3, 11. 12). Os que vivem bem, os que honram e louvam a Deus, os pacientes na tribulação, os que desejam a pátria, estes edificam com ouro, prata, pedras preciosas. Os que, porém, ainda amam os bens mundanos, e no entanto são cristãos, sem apartar seu coração de Cristo e a Ele nada preferindo, estes edificam de facto, mas com madeira, feno e palha. Qual a consequência? “O fogo provará o que vale a obra de cada um” (1 Cor 3, 11. 13), o fogo da tribulação e da tentação. Tal fogo experimentou aqui muitos mártires, e no fim provará o género humano. Houve mártires possuidores destes bens temporais. Assim declara o Apóstolo: “Se a obra construída resistir o construtor receberá a recompensa” e nada perderá, porque encontrará o que amou. Qual foi para eles o efeito do fogo da tribulação? Experimentou-os. Que o fundamento não seja de feno, dando-lhe o primeiro lugar no coração e o segundo a Cristo. Se, contudo, for impossível não haver feno ali, ao menos tenha Cristo o primeiro lugar, e o feno o segundo. Cristo é, portanto, o fundamento. A Igreja de Deus tende para o Céu. O nosso fundamento ali está colocado: Nosso Senhor Jesus Cristo, sentado à direita do Pai. “Senhor, eu Te enalteço, porque me salvaste e não permitiste que os inimigos se rissem de mim” (2). Quais? Por conseguinte, de que inimigos se trata? Dos judeus, ou antes do diabo e de seus anjos, que confusos se afastaram, após a ressurreição do Senhor? O príncipe da morte condenou-se quando a morte foi vencida, porque Cristo não pôde ser retido nos infernos.

V. 3: “Apelei a ti, Senhor, meu Deus e Tu me curaste” (3). O Senhor orou no Getsémani antes da paixão (Mt 26, 39) e Deus o curou. Curou a quem? Ao Verbo que é Deus, à divindade do Verbo? A Ele que nunca esteve doente? Não. Mas Ele era portador de uma carne mortal, portador de tuas feridas para curá-las. A carne, porém, foi curada. Quando? Quando Ele ressurgiu. Ouve o apóstolo dizer: “A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1 Cor 15, 55).

V 4: “Senhor, livraste a minha alma da mansão da morte” (4 a). Quais são os que descem à fossa? Os pecadores que mergulham nas profundezas, nos desejos mundanos, na sensualidade. Esses perseguiram a Cristo. Mas, o que diz o salmista? “Poupaste-me a vida, para eu não descer ao túmulo” (4 b).

V. 5: “Cantai salmos ao Senhor, vós que o amais” (5 a). Ressuscitou vossa Cabeça. É um provérbio antigo e verdadeiro: onde está a cabeça acham-se também os membros. Cristo subiu ao Céu, aonde nós havemos de segui-Lo. Não ficou na região dos mortos; ressuscitou já não morre. Quando ressuscitamos, também nós já não morreremos mais. De posse destas promessas, “Cantai salmos ao Senhor, vós que o amais, e dai-lhe graças, lembrando a sua santidade” (5 a b). O que quer dizer: “dai-Lhe graças, lembrando Sua santidade? (5 b). Estáveis esquecidos dele, mas Ele não vos esqueceu.

V. 6: “A sua indignação dura apenas um instante, mas a sua benevolência é para toda a vida” (6 a b).

Em sua indignação se irrita contra o pecador: “No dia em que o comeres, certamente morrereis” (Gn 2, 17). Salvou-nos porque quis e não porque éramos dignos. De que é digno o pecador senão do suplício? Ele, no entanto, deu a vida. E se deu a vida aos ímpios, o que reserva aos fiéis? “Ao cair da noite, vem o pranto” (6 c). Não temais, porque o salmista dissera-nos “Salmodiai”, e agora aparece o gemido. Na Salmodia há exultação, na oração há gemido. Geme a respeito das realidades presentes; salmodia acerca das futuras. “Ao cair da noite vem o pranto” (6 c). O Sol se pôs para o homem, isto é, aquela luz da justiça, a presença de Deus. Por conseguinte, quando Adão foi expulso do paraíso, o que disse o Génesis? À tarde passeava Deus, e ao passear Deus no paraíso, já Adão pecador se escondia no meio das árvores e não queria ver a face de Deus, que costumava alegrá-lo. O Sol da justiça para ele se pusera. Também nós somos oriundos de Adão e quantos procriaram filhos e hão-de procriar, provêm de Adão, do qual eles descendem. “Ao cair da noite, vem o pranto; e, ao amanhecer, volta a alegria” (6 c d), quando começar a raiar a luz para os fiéis. Ela pusera-se para os pecadores. Por conseguinte, também o Senhor Jesus Cristo de manhã ressurgiu do sepulcro (Mt 28, 1).

Para nosso Senhor era tarde quando foi sepultado e manhã quando ressuscitou ao terceiro dia.

V. 7: “Eu dizia na minha felicidade: “ «Jamais serei abalado» ” (7 a b). Quem possui com abundância aqui na terra? Ninguém. De que existe abundância para o homem? Tribulações, calamidades. Mas os ricos não desfrutam de prosperidade? Quanto mais têm, mais aumentam as necessidades. Ardem em desejos, dissipam-se em cobiças, atormentam-se com temores, consomem-se de tristeza. Qual a abundância para o homem? Havia abundância quando o homem estava no paraíso, quando nada lhe faltava, quando fruía da presença de Deus. Mas disse o homem: “Jamais serei abalado” (7 b). Quando disse: “Jamais serei abalado?” Quando ouviu de bom grado a palavra: “No dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus”, e em contraste com o que Deus dissera: “Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”. E o diabo: “Não, não morrereis” (Gn 3, 3-5). E o homem acreditou em quem assim o persuadia, disse: “Jamais serei abalado”.

Vs. 8. 9: Mas, como era verdadeira a promessa do Senhor de que traria ao homem soberbo o que lhe dera enquanto era humilde, ao criá-lo, prossegue: “Senhor, foste bom para mim e deste-me segurança” (8 a). E no intuito de me demonstrares que assim era por tua vontade, “mas, se escondes a tua face, logo fico perturbado” (8 b). O Senhor escondeu o seu rosto ao homem expulso do paraíso. Na terra, onde agora se acha, clame e diga: “Clamo a ti, Senhor, e imploro a piedade do meu Deus” (9 a b). No paraíso não clamavas, mas louvavas; não gemias, mas fruías. Fora dele gemo e clamo. O Senhor, que abandonou o soberbo, aproxima-se do atribulado, porquanto “Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes” (Tg 4, 6).

V. 10: É o Senhor quem fala no versículo seguinte: “Que vantagem tiras da minha morte e da minha descida à sepultura? (10 a b). Que pedido formula? O de ressuscitar. Diz Ele: Se eu baixar à sepultura, se minha carne entrar em decomposição, como a dos demais homens, para ressurgir somente no fim do mundo, com que finalidade derramarei meu sangue? “Porventura, poderá o pó louvar-te ou anunciar a tua fidelidade?” (10 c). Duas são as espécies de confissão: a do pecado e a do louvor. Se vamos mal, confessemos nossos pecados, no meio de nossas tribulações; se vamos bem, com exultação da justiça confessemos, em louvor a Deus. Todavia, jamais fiquemos sem confissões.

V. 11: “Ouve-me, Senhor, tem compaixão de mim; Senhor, vem em meu auxílio” (11).

V. 12: Ouve. Já se fala da própria ressurreição. “Tu converteste o meu pranto em festa, tiraste-me o luto e vestiste-me de júbilo” (12). O que é o luto? A mortalidade. O nosso Senhor assumiu a mortalidade, mas não a mereceu. O pecador é que merece a morte. Ele, que não merecia a morte, aceitou por tua causa a mortalidade. Quem peca merece a morte. O Senhor escondeu-se aos olhos dos pecadores para que o considerassem apenas um homem.

V. 13: “Por isso o meu coração te cantará sem cessar” (13 a). Não morrerei mais. Angustiado estava ao pender da cruz e ser trespassado pela lança (Jo 19, 34). Diz, portanto, nossa Cabeça: Já não morrerei. E nós, que diremos? Não nos angustie a consciência com remorsos pelo pecado. Serão todos perdoados, e então estaremos livres. “Por isso meu coração te cantará sem cessar” (13 a), não a minha humilhação. Se é nossa é também de Cristo, porque somos o Corpo de Cristo. Porquê? Porque embora esteja Cristo sentado no Céu, há-de dizer a alguns: “Tive fome e deste-me de comer” (Mt 25, 35). Está lá e está aqui; lá em si, aqui em nós. O que quer dizer: “Senhor, meu Deus, eu te louvarei para sempre” (13 b). Louvar-te-ei eternamente, porque existe confissão também de louvores e não só de pecados. Confessa, pois, agora o que fizeste contra Deus, e confessarás aquilo que Deus fez em ti. O que fizeste? Pecados. E Deus? Perdoa-te os pecados, para que depois, sem angústia por causa dos pecados, confesses eternamente seus louvores.

SALMO 31 (30)
Comentário
Versículo 1: Neste salmo aparece mais o pavor do povo de Deus, perturbado pela perseguição de todos os agentes e pela diminuição da fé em todo o orbe. Primeiro fala o próprio mediador; em seguida, o povo, redimido pelo seu sangue dá graças; finalmente, agitado, fala longamente em êxtase. O próprio profeta intervém por duas vezes: quase no fim e no próprio final.
V. 2: “Em ti, Senhor, me refugio, que eu nunca seja confundido” (2 a b). Em ti, Senhor, esperarei, jamais serei confundido. Assim acontece quando for insultado, como se fosse um homem semelhante aos outros: “Salva-me pela tua justiça” (2 c). Em tua justiça livra-me da fossa mortal e tira-me do número daqueles que nela caem.
V. 3: “Inclina para mim os teus ouvidos” (3 a). Estás perto de mim. Ouve-me, pois sou humilde. “Apressa-te a libertar-me” (3 b). Não difiras até ao fim do mundo. Separa-me dos pecadores, como acontece a todos os que crêem em mim. “Sê para mim uma rocha de refúgio” (3 c). Protege-me, ó Deus. “Uma fortaleza que me salve” (3 d). Uma casa onde refugiado me posso salvar.
V. 4: “Tu és o meu rochedo e a minha fortaleza” (4 a). Minha fortaleza para suportar os meus perseguidores e meu abrigo para escapar deles és tu. “Por amor do teu nome, guia-me e conduz-me” (4 b). Em tudo seguirei a tua vontade a fim de que por meu intermédio te manifestes a todos os povos. Pouco a pouco, congregando em mim os santos, completarás o meu Corpo e a minha estatura perfeita.
V. 5: “Livra-me da cilada que me armaram” (5 a). Livras-me das insídias que me armaram ocultamente. “Porque Tu é o meu refúgio” (5 b).
V. 6: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (6 a). Entrego a teu poder o meu espírito, que em breve recompensarei. Diga também o povo unido pela paixão do seu Senhor, e alegre pela glorificação de sua Cabeça. “Senhor, Deus fiel, salva-me” (6 b).
V. 7: “Detesto os que adoram ídolos falsos” (7 a). Detesto os que cultuam a falsa felicidade do século. “Eu, por mim, confio no Senhor” (7 b).
V. 8: “Hei-de alegrar-me e regozijar-me com a tua misericórdia” (8 a), ela não me engana. “Pois viste a minha miséria” (8 a). Por meio desta me submeteste à vaidade na esperança “e conheceste a angústia da minha alma” (8 c); Salvaste a minha alma do temor que me premia, para te servir na liberdade e na caridade.
V. 9: “Não me entregaste nas mãos do inimigo” (9 a). Não me prendeste, de sorte que não tivesse possibilidade de respirar com liberdade, e fosse entregue para sempre ao poder do diabo, que seduzia pelas ambições desta vida e aterrorizava com a morte. “Mas deste aos meus pés um caminho espaçoso” (9 b). Ciente da ressurreição do meu Senhor e da promessa da minha própria ressurreição, minha caridade se dilata, livre das angústias do temor, e permanecendo nas auras da liberdade.
V. 10: “Tem com paixão de mim, Senhor, que vivo atribulado” (10 a). Mas, que inesperada crueldade de perseguidores é, que me incute enorme pavor? Já não é a morte que me atemoriza mas os padecimentos e tormentos. “Os meus olhos consomem-se da tristeza” (10 b). Fixara meus olhos em ti, para não me abandonares. “A minha alma e o meu corpo definham” (10 c). a ira turvou a minha alma, com a lembrança de que por mim sofreu o meu Deus.
V. 11: “A minha vida mirrou-se na amargura” (11 a), pois minha vida está em confessar-te, mas desfaleci de dor, porque disse o inimigo: sejam torturados até renegarem. “E os meus anos em gemidos” (11 b). Não vem a morte terminar com os anos que passo neste século, decorridos em gemidos, mas que continuam. “A aflição acabou com as minhas forças” (11 c). Falta-me a saúde corporal, não me são poupados os tormentos. A dissolução do corpo era necessária e a morte não me sobrevém. Nesta miséria debilitou-se minha confiança. “Os meus ossos consumiram-se” (11 d). Minha firmeza foi abalada.
V. 12: “Tornei-me objecto de escárnio para os meus inimigos” (12 a). Meus inimigos são todos os iníquos, e no entanto, devido a seus crimes, serão triturados até que confessem. Então, venço o opróbrio deles. À sua confissão não se seguirá a morte, mas virão os tormentos. “De desprezo para os meus vizinhos” (12 d). Isto pareceu excessivo aos que começavam a conhecer-te e a possuir a fé que eu possuo. “E de terror para os meus conhecidos” (12 c). Incuti temor aos meus próprios amigos pelo exemplo de minha horrível tribulação. “Os que me vêem na rua fogem de mim” (12 b). Não entendiam minha esperança interior e invisível; fugiram de mim, optando pelas coisas exteriores e visíveis.
V. 13: “Votaram-me ao esquecimento como se tivesse morrido” (13 a). Eles se esqueceram de mim; estou morto para o seu coração. “Sou como um vaso desfeito” (13 b). Parecia-me ser eu imprestável para uso do Senhor, pois vivendo no século, não lucrava a ninguém. Todos receavam associar-se a mim.
V. 14: “Na verdade, ouvi os gritos da multidão” (14 a). Ouvi muitos a ultrajar-me nesta peregrinação desta terra, seguindo o decurso do tempo e recusando voltar comigo para a pátria eterna. “O terror envolveu-me, porque conspiraram contra mim e decidiram tirar-me a vida” (14 c). E cogitaram o plano de me deixarem morrer, para obterem que concordasse com eles a minha alma. Do contrário ela escaparia pela morte do seu poder.
V. 15: Mas eu confiei em ti, Senhor; e digo: «Tu és o meu Deus». Não mudaste. Salvas, embora corrijas” (15 a b).
V. 16: “O meu destino está nas Tuas mãos” (16 a). Em teu poder a minha sorte. Não encontro mérito algum de minha parte para uma escolha pessoal em vista da salvação, no meio da universal impiedade do género humano. Se, no entanto, existe diante de ti uma disposição oculta para a minha eleição, a mim próprio, que a ignoro, coube por sorte a túnica de meu Senhor (Jo 19, 24). “Livra-me dos meus inimigos e perseguidores” (16 b).
V. 17: “Brilhe sobre o teu servo a luz da tua face” (17 a). Manifesta aos homens, descrentes de que a ti pertenço, como tua face se volta benevolamente para mim e que eu te sirvo. “Salva-me pela tua misericórdia” (17 b).
V. 18: “Senhor, que eu não seja confundido, pois te invoquei” (18 a). Senhor, não me cubra de confusão perante os que me atacam, porque te invoquei; “Sejam, antes, confundidos os pecadores e reduzidos ao silêncio do sepulcro” (18 b). Corem-se antes os que invocam ídolos de pedra, e sejam partícipes das sombras.
V. 19: “Emudeçam os lábios mentirosos” (19 a). Revelando aos povos os teus mistérios em mim, torna mudos de espanto os lábios dos que inventam falsidades a meu respeito. “Que proferem insolências contra o justo com orgulho e desprezo” (19 b); dos que falam iniquamente contra Cristo, orgulhando-se e desprezando-O, como a um homem crucificado.
Vs. 20. 21: “Como é grande, Senhor, a bondade” (20 a). Exclama aqui o profeta, divisando tais coisas e admirado da variedade com que se mostra abundante a tua doçura, Senhor, “que reservas para os que te são fiéis” (20 b). É grande o teu amor mesmo para aqueles a quem corriges. Mas, a fim de não agirem com maior negligência, devido a uma segurança desordenada, oculta-lhes a doçura de teu amor, por lhes ser útil que te temam. “Tu a concedes à vista de todos” (20 c), tornaste perfeita esta doçura para os que esperam em ti, não a subtrais dos que esperam com perseverança, até ao fim “àqueles que em ti confiam” (20 d). Não está oculta aos filhos dos homens, que não vivem mais segundo Adão, e sim conforme o Filho do homem. “Ao abrigo da tua face” (21 a). Guardas nesta habitação perpétua, no esconderijo de teu conhecimento, aqueles que em ti esperam. “Tu os guardas das intrigas dos homens” (21 b), de tal modo que não sofram mais perturbação humana. “Na Tua tenda os defendes contra as línguas maldizentes” (21 c d). Porquanto as línguas maldizentes gritavam: Quem sabe? Ou quem veio de lá? Então, tu os proteges, abrigando-os na tenda da fé naquilo que o Senhor por nós fez e sofreu no tempo.
V. 22: “Bendito seja o Senhor que, pelo seu amor, fez maravilhas por mim na cidade fortificada” (22). Bendito seja o Senhor que depois da correcção de agudas perseguições usou de admirável misericórdia para com a terra inteira, no âmbito da sociedade humana.
V. 23: “Na minha ansiedade eu dizia” (23 a). Daí vem que aquele povo repete: Eu disse, apavorado, quando os povos horrivelmente se encarniçavam contra mim: “Fui banido da tua presença” (23 b). “Se me olhasses, não me deixarias sofrer assim”. Tu, porém, ouviste o brado da minha súplica quando eu te invoquei” (23 c d). Mitigando, pois, a correcção e mostrando que estou sob os teus cuidados, ouviste, Senhor, a minha voz suplicante, quando, devido à tribulação, eu me entregava instantemente à oração.
V. 24: O profeta exorta: “Amai o Senhor, todos vós que sois seus amigos! O Senhor protege os seus fiéis” (24 a b). “Se o justo dificilmente se salva, o que virá a ser o do ímpio e do pecador” (1 Pd 4, 18)? “Mas castiga com rigor os orgulhosos” (24 c). E retribuirá aos que apesar de vencidos não se converterem por causa da excessiva soberba.
V. 25: “Tende coragem e fortalecei o vosso coração” (24 a). Praticai o bem sem desfalecimento, para colherdes no tempo oportuno. “Todos vós que esperais no Senhor!” (24 b).
SALMO 31 (30)
Catequese I

Versículos 1. 2: Atemorize-se a fraqueza humana, mas apesar de pavor, a misericórdia divina não falta. Com temor começa o salmista: “Em ti, Senhor, me refugio; que eu nunca seja confundido” (2 a b). Não é um temor desesperado. Mesmo se existe perturbação no coração humano, o consolo divino não falta.

Aqui fala Cristo através do profeta. Ouso afirmar: É Cristo quem fala. O salmista há-de proferir certas palavras neste salmo que aparentam ser inadequadas a Cristo. Nem mesmo se ajustem à condição de servo, que Ele recebeu da Virgem; e no entanto, fala Cristo porque nos membros de Cristo está Cristo. Quero que saibais constituem Cabeça e Corpo um só Cristo, Ele próprio ao tratar do sentido do casamento afirma: “Portanto, já não são dois, mas um só, o que Deus uniu não separe o homem” (Mt 19, 5. 6). Mas acaso a afirmação é atinente a qualquer espécie de união conjugal? Diz Paulo: “Serão os dois uma só carne. Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5, 31. 32).

De dois faz-se, portanto, de certo modo, uma só pessoa, constituída de Cabeça e Corpo, de esposo e esposa. Igualmente o profeta Isaías recomenda a unidade admirável e excelente desta pessoa; pois também fala Cristo, profeticamente o seguinte: “Como um noivo que cinge a fronte com o diadema e como uma noiva que se adorna com as suas jóias” (Is 61, 10). Chamou-se a si mesmo de esposo, de esposa. Pois que Ele é esposo, é esposa, se não porque serão dois numa só carne? Se são dois numa só carne, porque não seriam dois numa só voz? Fale, portanto, Cristo, porque em Cristo fala a Igreja, e na Igreja fala Cristo; o Corpo na Cabeça e a Cabeça no Corpo. Ouve como o Apóstolo exprime a mesma coisa, com maior clareza: “Pois, como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo” (1 Cor 12, 12).

Todos nós, portanto, simultaneamente, estamos em Cristo, nossa Cabeça; sem ela nada podemos. Porquê? Porque nós com nossa Cabeça assemelhamo-nos à videira. Sem Cabeça, que tal não aconteça, parecemo-nos como sarmentos cortados. Por isso, Cristo também disse no Evangelho: “Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que não dá fruto em mim” (Jo 15, 1. 2). Senhor, nada sem ti, contigo tudo. Ele pode muito e tudo sem nós; e nós sem Ele, nada.

V. 2: Digamos no Corpo de Cristo, digamos todos como um só (porque todos nós formamos uma unidade), digamos: “Em ti, Senhor, me refugio; que eu nunca seja confundido” (2 a b).

Existe uma confusão temporal, que é útil, a perturbação da alma que considera seus pecados, consideração de horror, horror de vergonha, vergonha do mundo. Daí dizer também o Apóstolo: “Afinal, que frutos produzíeis então? Coisas de que agora vos envergonhais” (Rm 6, 21)?

Não receie o cristão tal confusão; qual é a confusão eterna? Quando suceder o que foi predito: “Os seus pecados se levantarão contra eles para os acusar” (Sb 4, 20). E acontecerá que toda a grei perversa entregue pelas próprias iniquidades, estará à esquerda do trono, como bodes separados das ovelhas, e ouvirá a sentença: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25, 41). E perguntarão os condenados: Por que razão? “Porque tive fome e não me destes de comer”. Eles desprezavam o Cristo faminto, não lhe dando de comer; o Cristo sedento, não lhe dando de beber; o nu não O vestindo; peregrino, não O recebendo; doente, não O visitando; então desprezavam-No. O salmista, apavorado, com a mente arrebatada em Deus, roga: “Em ti, Senhor, me refugio; que eu nunca seja confundido” (2 a b). “Salva-me pela tua justiça” (2 c), porque se ponderas a minha justiça, hás-de condenar-me. Dando-se a nós, a justiça de Deus faz-se nossa. No entanto, denomina-se justiça de Deus, para que o homem não pense que adquire a justiça por si mesmo. Assim se exprime o Apóstolo: “Aquele, porém, que não realiza qualquer obra, mas acredita naquele que justifica o ímpio, a esse a sua fé é-lhe atribuída com a justiça” (Rm 4, 5). O que significa: Aquele que justifica o ímpio? É aquele que transforma o ímpio em justo. Os judeus, efectivamente, pensando que poderiam praticar a justiça pelas próprias forças, “tropeçaram na pedra de tropeço” (Rm 9, 32), na pedra de escândalo, e não reconheceram a graça de Cristo. Os judeus, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua, não se submeteram à justiça de Deus (Rm 10, 3). Por conseguinte, eles não conheceram a graça de Deus, porque não quiseram salvar-se gratuitamente. Quem é que se salva gratuitamente? Aquele em quem o Salvador não encontrou o que coroar, e sim o que condenar. É isto que afirma o Apóstolo: “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 23). Qual o sentido da frase: “estão privados da glória de Deus?”. É Ele que há-de libertar e não tu. Como não podes libertar-te precisas de um libertador. Porque presumes da lei e da justiça? Não vês a luta no teu interior, de ti, contra ti? “Deparo, pois, com esta lei: em mim, que quero fazer o bem, só o mal está ao meu alcance. Sim, eu sinto gosto pela Lei de Deus, enquanto homem interior, mas noto que há outra lei nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão e a reter-me, prisioneiro, na lei do pecado que está nos meus membros. Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rm 7, 21-25). Por que se chama graça? Porque foi dada gratuitamente. E por que razão foi dada gratuitamente? Teus méritos não foram precedentes, ao invés, os benefícios de Deus é que foram antecedentes. Glória, pois, ao nosso libertador.

V. 3: “Inclina para mim os teus ouvidos” (3 a). Deus assim agiu, ao enviar nosso próprio Cristo. Enviou-nos aquele que, com a cabeça inclinada, escrevia na terra com o dedo (Jo 8, 6), ao lhe ser apresentada a mulher adúltera para que a punisse. Inclinara-se para a terra, isto é, Deus para os homens, ao qual foi dito: “Porque és pó e ao pó voltarás” (Gn 3, 19). Deus, no entanto, inclina para nós o ouvido, derramando sobre nós a Sua misericórdia. Pode haver maior misericórdia do que dar-nos o Seu unigénito, não no intuito de viver connosco, mas para morrer por nós?

“Apressa-te a libertar-me” (3 b). Foi atendida esta súplica, pois diz o salmista: “Apressa-te”. Foi empregada tal expressão para se entender que consta de um instante toda a duração do tempo que nos parece longo enquanto decorre.

“Sê para mim uma rocha de refúgio, uma fortaleza que me salve” (3 c d). Sê para mim uma casa de refúgio, ó Deus, meu protector. Por vezes, acho-me em perigo, e quero fugir. Para onde? De tudo podes fugir, ó homem, excepto de tua consciência. Entra em casa, repousa no teu leito, entra no teu íntimo. Nada de mais fundo podes achar. Aonde fugir de tua consciência, se tens remorsos de teus pecados. Ouve o que diz o salmista em outra passagem, temendo a ira de Deus. “Onde é que eu poderia ocultar-me do teu espírito? Para onde poderia fugir da tua presença? Se subir aos céus, Tu lá estás; se descer ao mundo dos mortos, ali te encontras” (Sl 138, 7. 8). Nada me resta senão fugir para junto de ti e não fugir de ti. Para escapares de Deus foge para junto dele. Não há como fugir de Deus. Todos os lugares estão patentes e descobertos aos olhos do omnipotente. Sê, portanto, para mim uma casa de refúgio. Cura-me e me refugiarei em ti. Para onde iria, se não pudesse andar, estando meio morto no caminho, coberto por feridas infligidas pelos ladrões? O sacerdote passou ao lado, passou o levita e foi adiante, passou o samaritano e encheu-se de compaixão” Lc 10, 30). Quer dizer, o próprio Senhor que se compadeceu do género humano. Samaritano significa guardião. E quem nos guarda se Ele nos abandona? De facto, quando os judeus O injuriavam nestes termos: “ «Não temos nós razão ao dizer que és um samaritano e que tens demónio» ” (Jo 8, 48). Rejeitou uma acusação e aceitou a outra. Disse: “ «Eu não tenho demónio» ”, mas não declarou: Não sou samaritano. Assim deu a entender que era nosso guardião. Compadecido, aproximou-se, curou, levou à hospedaria, exerceu a misericórdia para com ele. E então, este homem já pôde andar; pôde fugir. Para onde, se não para junto de Deus, onde fez para si uma casa de refúgio?

V. 4: “Tu és o meu rochedo e a minha fortaleza; por amor do teu nome, guia-me e conduz-me” (4). Não devido a meus méritos, mas para honra do teu nome, a fim de seres glorificado, e não porque eu seja digno. Hás-de me conduzir. Não me desvie para longe de ti.

V. 5: “Livra-me da cilada que me armaram” (5 a). Já alude à paixão. Não se trata apenas da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O diabo estende seus laços até ao fim. E ai daquele que cai neste laço. Cai, efectivamente, todo aquele que não espera em Deus. Estão armados preparados os laços do inimigo. Seus laços são o erro e o terror. Erro que seduz, terror que esmaga e arrebata. Tu, porém fecha a porta da cobiça contra o erro; cerra a porta do temor contra o terror e escaparás do laço. Teu Imperador oferece em si exemplo desta luta, por ti tendo-se dignado até ser tentado. Primeiro foi tentado relativamente ao prazer. O diabo tentou, forçando a porta dos desejos, ao dizer: “«Ordena que estas pedras se convertam em pães. “Tudo isto te darei, se, prostrado me adorares”. “Lança-Te daqui para baixo. Pois está escrito: Dará a teu respeito ordens aos seus anjos; eles suster-te-ão nas suas mãos para que os teus pés não se firam nalguma pedra»” (Mt 4, 4. 9. 6). Todos esses atractivos são tentação para a cobiça. Experimentou então forçar a do temor e preparou a paixão. Finalmente, declara o evangelista: “Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se junto dele até um certo tempo” (Lc 4, 13). O que significa: “Até certo tempo”? Haveria de voltar a forçar a porta do medo, tendo encontrado trancada a da cobiça. Todo o Corpo de Cristo, por conseguinte, é tentado até ao fim. Diga, portanto, o Corpo inteiro de Cristo: “Livra-me da cilada que me armaram, porque Tu és o meu refúgio” (5). Escapou da cilada também nossa Cabeça, do laço escondido por aqueles que foram mencionados no Evangelho e que se haviam de dizer: “«Este é o herdeiro. Matêmo-lo e ficaremos com a sua herança»”. Eles responderam ao serem interrogados, sentenciando contra si próprios: “Ora bem, quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros? Certamente dará morte afrontosa aos malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros»”. Como? Não lestes o dito: “A pedra que os construtores rejeitaram, transformou-se em pedra angular?” (Mt 21, 38-42). “Rejeitaram os construtores”, equivale a: “lançaram-no fora da vinha e mataram-no”. Nossa Cabeça está no Céu: é livre. Unamo-nos a Ele pelo amor, para melhor depois a ela aderirmos pela imortalidade e digamos todos: “Livra-me da cilada que me armaram, porque Tu és o meu refúgio” (5 a b).

Ouçamos a voz que o Senhor emitiu na cruz:

V. 6: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (6 a). Uma vez que reconhecemos suas palavras no Evangelho, proveniente deste salmo, não havemos de duvidar que Ele aqui falou. Ele disse: “ «Pai, nas Tuas mãos entrego meu espírito» ” (Lc 23, 46), “E inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19, 30). Não foi sem razão que fez suas as palavras deste salmo. Reflecte como quis ser procurado em outro salmo: “Trespassaram as minhas mãos e os meus pés. Posso contar todos os meus ossos. Eles olharam para mim cheios de espanto! Repartem entre si as minhas vestes e sorteiam a minha túnica” (Sl 21, 17. 19). Quando te advertir de que nele isto se realizou, proferiu como palavra sua o início deste salmo: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste (Sl 21, 2)? E, no entanto, estava representando a voz do Corpo, pois o Pai jamais abandonou o seu Filho Único. “Senhor, Deus fiel, salva-me” (6 b), fazendo o que prometeste, não enganando com a tua promessa, ó Deus verdadeiro.

V. 8: “Hei-de alegrar-me e regozijei-me com a tua misericórdia” (8 a), não em minha justiça. “Pois viste a minha miséria e conheceste a angústia da minha alma” (8 b c). Quais as angústias, de que desejamos livrar nossa alma? Quem as pode enumerar? Quem as destacará com exactidão? Quem mostrará devidamente como evitá-las e delas fugir? Em primeiro lugar, dura necessidade do género humano é ignorar que se passa no coração de outrem, pensar mal, às vezes de um amigo fiel, e por vezes bem de um infiel. E o que dizer da obrigatoriedade da imortalidade? Forçoso é morrer, e ninguém o quer. Dura necessidade, não querer o inevitável! Gostaríamos de nos tornar como anjos por certa modificação, sem morrer, conforme diz o Apóstolo: “Teremos uma habitação no Céu, obra de Deus; uma casa eterna não construída por mãos humanas. E por isso gememos nesta tenda, ansiando por revestir-nos daquela habitação celeste contanto que nos encontremos vestidos e não nus. Pois, enquanto estamos na tenda, gememos oprimidos, porque não queremos ser despidos mas revestidos, a fim de o que é mortal seja absorvido pela vida” (2 Cor 5, 1-4).

Quais também são as angústias necessárias para vencer as ambições arraigadas e os maus costumes inveterados? Vencer um hábito, é duro combate. Exclama então: Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A Graça de Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso! (Rm 7, 25), e em si se cumprirá o que acabamos de dizer. Por que razão a tua alma foi salva de tuas ambições senão porque foi levada em conta a tua humildade? Se não te humilhasses primeiro, não te ouviria aquele que te salva das aflições. Humilhou-se quem diz: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte?” (Rm 7, 24). Não se humilharam “por não terem conhecido a justiça de Deus e terem procurado estabelecer a sua própria justiça não se submeteram à justiça de Deus”, (Rm 10, 3).

V. 9: “Não me entregaste nas mãos do inimigo” (9 a), que não se identifica com teu vizinho, nem teu sócio, nem aquele com quem militaste e o lesaste ou a quem injuriaste. Por este devemos rezar. É outro inimigo que temos, o diabo, a serpente antiga. Livra-nos, pois, o Senhor nosso Deus, das mãos do nosso inimigo. Ele quer apanhar-nos por meio da cobiça. Nossos desejos, se são fortes e os servimos, chamam-se necessidades. Se Deus livra a nossa alma das nossas necessidades, o que haverá de nós que o inimigo agarre para nos prender em suas mãos?

“Mas deste aos meus pés um caminho espaçoso” (9 b). Certamente, o caminho é estreito. Estreito para quem labuta, espaçoso para quem ama. Qual o significado da frase: “Mas deste aos meus pés um caminho espaçoso”? (9 b). Com efeito, tornaste fácil para mim a observância da justiça, que antes achava difícil.

SALMO 31 (30)

Catequese II

Versículo 10: Se nos examinarmos no tempo da tribulação, alegrar-nos-emos por ocasião da recompensa. Não há possibilidade de dúvida de que Cristo é Cabeça e Corpo, esposo e esposa, Filho de Deus e Igreja, Filho de Deus feito Filho do homem por nossa causa, para se tornarem filhos de Deus os que são filhos dos homens. “Assim, se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros; se um membro é honrado, todos os membros participam da sua alegria” (1 Cor 12, 26). Diga, portanto, em vez de alguns membros: “Tem compaixão de mim, Senhor, que vivo atribulado; os meus olhos consomem-se de tristeza; a minha alma e o meu corpo definham (10 a b c).

Perguntamos de onde se origina esta tribulação senão talvez da palavra do Senhor: “E, porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12).

Nos primórdios a Igreja estava confiada a pequenino número de santos, que lançaram as redes. A Igreja cresceu, e foram apanhados inúmeros peixes, acerca dos quais fora dito: “Quisera anunciá-los e proclamá-los, mas são tantos que não se podem contar” (Sl 39, 6). Eles também sobrecarregam a barca e as redes se rompiam, conforme se encontra na narrativa da primeira pesca (Lc 5, 6), antes da paixão do Senhor. Como não se sentirá atribulado o salmista diante de tal multidão, vendo que os mesmos que pouco antes enchiam as igrejas lotam os teatros e anfiteatros? Os mesmos que pouco antes estavam louvando a Deus, estarem no meio da maldade? Permaneça, persista, não desfaleça mesmo no meio da grande turba de iníquos, porque o grão também não desaparece na quantidade de palha, até que depois de joeirado, seja recolhido ao celeiro. Para que não escorregassem nem titubeassem os nossos pés diante desta prevista superabundância de maldade, acrescentou imediatamente uma palavra de ânimo, que consolasse e corroborasse os fiéis: “Mas aquele que se mantiver firme até ao fim, será salvo” (Mt 24, 13).

Enquanto estava em tribulação tinha, de certo modo, de se condoer (a dor é inerente à tribulação), e diz que se encolerizou na aflição; e suplica: “Tem compaixão de mim, Senhor, que vivo atribulado; os meus olhos consomem-se de tristeza” (10 a b). Se estás aflito por que te irritas? Ele irrita-se por causa dos pecados alheios. Quem não se encoleriza vendo homens que confessam a Deus com a boca e O negam com os costumes? Declara também em outro lugar ao ver muitos a praticarem o mal: “Fico indignado à vista dos ímpios, que rejeitam a tua Lei” (Sl 118, 53).

Mas, cautela! Não seja tão grande a ira que degenere em ódio. A ira ainda não é ódio. Podes encolerizar-te contra teu filho, mas não o odeias. A ira, portanto, ainda não é ódio. Ainda não odiamos aqueles contra os quais nos iramos, mas se a ira durar e não for logo arrancada, cresce e torna-se ódio. A Escritura nos ensina que arranquemos a ira recente, para não se converter em ódio. “Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento” (Ef 4, 26). Às vezes encontra-se um irmão com ódio e que, no entanto, repreende a outrem que se irrita. Tem uma trave na vista e repreende o argueiro na vista do irmão (Mt 7, 3). Mas o argueiro e a palha, se não forem tirados, hão-de transformar-se em trave, conforme diz João: “Quem tem ódio a seu irmão, está nas trevas” (1 Jo 2, 11). Algumas vezes, pois, é lícito irar-se contra os iníquos, os perversos, os transgressores da lei, os que vivem mal; mas não é lícito gritar.

V. 11: “A minha vida mirra-se na amargura, e os meus anos em gemidos” (11 a b). Diz o apóstolo: “Agora estamos reanimados, porque estamos firmes no Senhor. Todos os que são perfeitos, devido ao Evangelho e à graça de Deus, não vivem na terra senão por causa dos outros; pois a sua vida neste século já não lhe é necessária. Mas, como seu ministério é necessário aos outros, realiza-o neles o que disse o mesmo Apóstolo: “Estou pressionado dos dois lados: tenho o desejo de partir e estar com Cristo, já que isso seria muitíssimo melhor; mas continuar a viver é mais necessário por causa de vós” (Fl 1, 23. 24). De certo modo, a Igreja se nutre daqueles que lucramos para o Senhor.

Pedro representava a Igreja, quando desceu do Céu e lhe foi apresentado um recipiente cheio de todos os animais quadrúpedes, répteis e aves. Estas espécies representavam todos os povos. O Senhor prefigurava a Igreja que haveria de devorar inteiramente todos os gentios, e convertê-los em seu Corpo. E disse a Pedro: “ «Vamos, Pedro, mata e come» ” (Act 10. 13). Ó Igreja (isto é, ó Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja) (Mt 16, 18): “Imola e come”. Primeiro mata, e depois come. Mata o que eles são, e faz deles o que tu és. Quando, portanto, o Evangelho é pregado, e o pregador verifica que os homens não tiram proveito, como não há-de exclamar: “A minha vida mirrou-se na amargura, e os meus anos em gemidos. A aflição acabou com as minhas forças; os meus ossos consumiram-se” (11 a b c d). Nossos anos passados na terra, decorrem entre gemidos. Por que razão? “E, porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12). A Igreja, vendo muitos caminharem para a perdição, abafa seus gemidos e diz a Deus: “Senhor, diante de ti estão os meus desejos, e não desconheces o meu lamento”. (Sl 37, 10).

V. 12: “Tornei-me objecto de escárnio para os meus inimigos, de desprezo para os meus vizinhos e de terror para os meus conhecidos” (12 a b c). Quais são os inimigos da Igreja? Os pagãos? Os judeus? Pior do que todos esses é a vida dos maus cristãos. Deles diz o profeta Ezequiel que “se comparam a lenha da videira, que se lança no fogo” (Ez 15, 12). Considerando, portanto, a multidão dos que vivem mal na Igreja ele diz: “Tornei-me objecto de escárnio para os meus inimigos” (12 a). Os maus que recebem os meus sacramentos vivem pior do que aqueles que nunca se aproximaram. Declara o apóstolo Pedro: “Se aqueles que fugiram da corrupção do mundo, pelo conhecimento de Jesus Cristo, se deixam de novo enredar e vencer por ela, melhor lhes fora não ter conhecido o caminho da justiça”.

Finalmente, vede que comparação horrorosa ele utilizou: “Acontece-lhes o mesmo que diz aquele provérbio tão acertado: “o cão volta a seu vómito” (2 Pd 2, 20-22). “Tornei-me objecto de escárnio para os meus inimigos, de desprezo para os meus vizinhos e de terror para os meus conhecidos (12 a b c). Quer dizer, meus vizinhos desistiram inteiramente por causa da vida má dos cristãos péssimos e falsos.

Quantos serão os que desejam tornar-se cristãos, mas se escandalizam com os maus costumes dos cristãos!

“Tornei-me casa de terror para os meus conhecidos” (12 c). Que há de mais terrível para o homem do que ver muitos que vivem mal, e verificar que estão cheios de obras más daqueles de quem se espera que agissem bem? Tu que receias que todos sejam maus, tu também o és? A consciência responde: Não. Portanto, se não és mau és o único? Pois também Elias, certa vez, cheio de tédio por causa da multidão dos ímpios, disse: “Eles derrubaram os teus altares e mataram os teus profetas. Só eu escapei; também me querem matar a mim”. O que lhe responde o oráculo divino? “Deixarei com vida em Israel sete mil homens que não ajoelharam perante Baal” (1 Rs 19, 14, 18) (Rm 11, 3. 4). Para estes escândalos só existe um remédio: não pensar mal de um irmão. Sê humildemente o que queres que seja ele, e não julgarás que ele é o que não és.

“Os que me vêem na rua fogem de mim” (12 d).

Seria perdoável fugirem de mim os que não me viam; mas até mesmo os que me viam, fugiram para longe. Quer dizer, os que sabiam o que é a Igreja saíram e criaram heresias e cismas contra a Igreja. Contudo: Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar-se para Ele todos os confins da terra; hão-de protestar-se diante dele todos os povos e nações” (Sl 21, 28). Citarei apenas um facto como exemplo. Abraão foi nosso pai, não por causa da propagação carnal, mas devido à imitação da fé. Justo e agradável a Deus, pela fé recebeu na sua velhice o filho da promessa, Isaac, de Sara, sua esposa, que era estéril (Gn 21, 2). Foi-lhe ordenado imolar a Deus este mesmo filho. Não duvidou, nem considerou um mal o que pôde mandar aquele que é o sumo bem. Levou o filho para a imolação. Entregou a lenha do sacrifício, estendendo a mão, “agarrou no cutelo para degolar o filho. Abaixou-a à ordem daquele que lhe mandara levantá-la. (Gn 22, 3 ss). Obedecera à ordem de degolar, obedeceu ao preceito de poupar. Sempre obediente, nunca tímido. Todavia, a fim de realizar o sacrifício, encontrou um carneiro preso pelos chifres a um silvado. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em substituição de seu filho. Perguntas o significado de tudo isso. É figura de Cristo, envolvida em mistério. Esclareça-se o que estava oculto. Isaac, filho único e amado, é figura do Filho de Deus, carregando a lenha como Cristo carregou a cruz (Jo 19, 17). Enfim o próprio cordeiro representou a Cristo. O que é estar preso pelos chifres senão estar, de certo modo, preso à cruz? É a figura de Cristo. Em seguida devia ser anunciada a Igreja. A Cabeça foi prenunciada. Também o Corpo devia sê-lo. Começou o Espírito de Deus, Deus começou a querer anunciar a Igreja a Abraão. Deus anunciava a Cristo em figura, mas prenunciou claramente a Igreja, pois disse a Abraão: “Por teres procedido dessa forma e por não me teres recusado o teu único filho, abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar. E todas as nações da Terra se sentirão abençoadas na tua descendência” (Gn 22, 16. 17). Quase sempre Cristo foi predito pelos profetas veladamente num sinal, mas a Igreja foi claramente anunciada, a fim de que a vissem mesmo os futuros adversários, cumprindo neles a malícia predita no salmo. “Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos” (1 Jo 2, 19).

V. 13: “Votaram-me ao esquecimento como se tivesse morrido”, (13 a). Fui esquecido, de tal modo que não se recordaram de mim, como se fora riscado dos seus corações, como um morto. Qual o sentido da frase: “Sou como um vaso desfeito” (13 b)? Pelejava, mas sem proveito.

V. 14: “Na verdade, ouvi os gritos da multidão; o terror envolveu-me, porque conspiraram contra mim” (14 a b). Quantas acusações contra os maus cristãos, e tais maldições atingem a todos os cristãos! Dirá talvez o maldizente, acusador dos cristãos: Eis o que fazem os cristãos que não são bons? Ao contrário, declara: Eis o que fazem os cristãos. Não separa, não distingue. O que quer dizer: “e decidiram tirar-me a vida? (14 c). Queriam que consentisse em suas maldades. Consideram pouca coisa não entrar, os maldizentes, que não entram: ainda querem lançar fora os outros, injuriando-os. Se te tiram da Igreja tiraram tua vida.

V. 15: Eu, porém, achando-me no meio destes opróbrios, destes escândalos, cercado por fora de iniquidades e dentro de perversidades. Que recurso empreguei? “Mas eu confio em ti, Senhor (15 a). Nada de mais salutar, demais seguro. Não sei a quem querias imitar; viste que ele não era bom. Desiste da imitação. Buscaste um terceiro, não te aprouve. Então porque um e outro te desagradaram, estás perdido? Renuncia a pôr a esperança num homem, porque é maldito “aquele que confia no homem” (Jr 17, 5). Diga, portanto, o salmista: “Mas eu confio em ti, Senhor; e digo: «Tu és o meu Deus» (15 a b). Meu caminhar não está sobre a protecção do nome de um homem; é o nome de Cristo que tenho. Ouve Paulo dizer: “Porventura Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes baptizados em nome de Paulo”? (1 Cor 1, 13). Estaria perdido se fosse do partido de Paulo. Tu és o meu Deus. Mas Deus não falha, não progride. É perfeito, por tanto não tem em que se aperfeiçoar, nem desfalece, pois é eterno.

V. 16: “O meu destino está nas tuas mãos” (16 a). Não nas mãos dos homens; em tuas mãos. Destino não é coisa má; mas em caso de dúvida da parte do homem ele indica a vontade divina. Pois, mesmo os apóstolos lançaram sortes quando Judas morreu, depois de trair o Senhor, conforme foi escrito a seu respeito: “Receba outro o seu encargo”. Foram escolhidos dois, conforme critério humano, e um dos dois foi escolhido por juízo divino. Consultou-se a Deus qual era de seu agrado e a “sorte caiu em Matias” (Act 1, 26). O que significa, pois: “O meu destino está nas tuas mãos?” (16 a). A meu ver, o salmista designa destino a graça, pela qual fomos salvos. Por que a graça de Deus se chama destino? Porque no destino não há escolha, mas mostra-se a vontade de Deus. Quando, porém, Deus, sem mérito algum da nossa parte nos salvou, por escolha de sua vontade, foi porque quis, e não que fossemos dignos. “Porque é pela graça que estais salvos, por meio da fé”, diz o apóstolo Paulo; é dom de Deus. Não vem das obras (como se, praticando o bem, vos tivésseis tornado dignos de obter tal resultado), para que ninguém se glorie. “Porque nós fomos feitos por Ele, criados em Cristo Jesus, para vivermos na prática das boas obras” (Ef 2, 8-10). No género humano existe o destino, destino proveniente da vontade de Deus, em quem “não há injustiça” (Rm 9, 14). Ele não faz acepção de pessoas, mas a sua justiça oculta é o teu destino. “O meu destino está nas tuas mãos” (16 a). Que destino? A herança da Igreja. Até onde vai a herança da Igreja? Quais s seus limites? Até todos os confins: “Pede-me e Eu te darei povos como herança e os confins da terra por domínio” (Sl 2, 8).

SALMO 31 (30)

Catequese III

Muitas questões resolvem-se espontaneamente nas mentes dos fiéis, muitas outras necessitam de breve exposição; algumas, porém, mais raras, exigem esforço e suor para se tornarem inteligíveis. Por conseguinte, e de acordo com elas, louvai o Senhor; e se o salmo ora, orai; se geme, gemei; se rejubila, rejubilai; se espera, esperai; se teme, temei.

Versículo 16: “Livra-me dos meus inimigos e perseguidores” (16 b). Assim, rezemos, e cada um o repita a respeito de seus inimigos. É bom suplicarmos a Deus que nos livre das mãos dos nossos inimigos. Mas entendamos quais inimigos em favor dos quais havemos de orar e contra quais devemos rezar. Não odiemos a homens, inimigos nossos, quaisquer que sejam. Mas, existem inimigos contra os quais devemos rezar: o diabo e os seus anjos. Eles invejam-nos, por causa do Reino dos Céus, e não querem que subamos para o lugar de onde eles foram precipitados. Peçamos que a nossa alma deles se livre. Pois, também quando os homens são instigados por eles contra nós, tornam-se instrumentos deles. Por esta razão, o Apóstolo Paulo, admoestando-nos acerca da grande cautela a empregar contra os inimigos, declara aos servos de Deus que padeciam tribulações, a saber, sedições, maldades, inimizades da parte dos homens: “Porque não é contra os seres humanos que temos de lutar”, isto é, não é contra os homens “mas contar os Principados; as Autoridades, os Dominadores deste mundo das trevas” (Ef 6, 12). Mas o que é que ele denomina mundo? Os que amam o mundo? Chamo de mundo a este “mundo de trevas”. De que trevas a não ser os infiéis e ímpios? Pois, aos ímpios e infiéis, transformados em pios e fiéis, se dirige o mesmo Apóstolo, dizendo: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5, 8).

V. 17: “Brilhe sobre teu servo a luz da tua face; salva-me pela tua misericórdia” (17 a b). Dizíamos acima, que os maiores perseguidores da Igreja são os cristãos que não querem viver bem. Deles a Igreja sofre opróbrios e suporta oposição. No meio desses geme o salmista, ou se quisermos, nós próprios. São muitos, e nesta multidão, mal apareçem os bons, como grãos na eira, que, no entanto, depois de limpos, encherão o celeiro do Senhor (Lc 3, 17).

Como distinguir os que gemem daqueles que levam vida deplorável, se o Senhor não irradiar a luz de sua face, sobre o seu servo? O que significa, portanto: “Brilhe sobre teu servo a luz da tua face?” (17 a). Evidencie-se que a ti pertenço. Não afirme igualmente o cristão ímpio que pertence a Ti, para não ser inútil o meu pedido em outro salmo: “Faz-me justiça, ó Deus, e defende a minha causa contra a gente sem piedade” (Sl 42, 1). Todavia acrescenta para não se ensoberbecer, nem parecer justificar-se: “Salva-me pela tua misericórdia” (17 b), isto é, não por minha justiça, não por meus méritos mas por “tua misericórdia”; não sou digno, mas Tu és misericordioso.

V. 18: “Senhor, que eu não seja confundido, pois te invoquei” (18 a b). Deus responderia, de certo modo, interiormente e diria: Por que me pedes que não seja confundido? Porquê? Por que me invocaste? Deus é invocado para um lugar repleto de blasfémias, de adultérios, de fraudes, de concupiscências más, e tu me invocas? “Não invocaram o Senhor” (Sl 52, 5). De facto, invocaram, mas de outro lado, não invocaram. Como vemos que tantos maus invocaram a Deus, surgiu a questão. Digo, portanto, brevemente, ao homem avaro: Invocas a Deus? Por que invocas a Deus? Para que me dê um lucro qualquer. Portanto, é o lucro que invocas e não a Deus. Ambicionas tal lucro e não podes obtê-lo por meio de teu servo. Invocas a Deus, fazendo dele um servo do teu lucro; desvalorizas a Deus. Queres invocar a Deus invoca-O gratuitamente. Se Deus vem a ti sem ouro nem prata, não o queres? Que criatura de Deus te bastará, se Deus não te basta? Com razão, portanto, reza o salmista: “Senhor, que eu não seja confundido, pois te invoquei” (18 a b). Invocai o Senhor, irmãos, se não quereis ser confundidos. O salmista receia certa confusão. Pois a fim de saberes que teme esta confusão, tendo dito: “Senhor, que eu não seja confundido” (18 a), “Pois te invoquei” (18 b), acrescentou: “Sejam, antes, confundidos os pecadores e reduzidos ao silêncio no sepulcro” (18 c d).

V. 19: “Calem-se os lábios mentirosos, que proferem insolências contra o justo com orgulho e desprezo (19 a b c). Este justo é Cristo, muitos lábios proferem contra Ele a iniquidade, com soberba e desprezo. Por que se diz com soberba e desdém? Porque aos soberbos pareceu desprezível aquele que veio com tamanha humildade. E qualquer de seus servos que desejar seguir suas pegadas, andando também com humildade, conforme aprendeu com o seu Senhor, é desprezado em Cristo, como membro de Cristo. E se são desprezados Cabeça e Corpo, é todo o Cristo que é desprezado, porque todo ele, Cabeça e Corpo é justo. Forçoso é que seja desprezado o Cristo total pelos soberbos e ímpios, para que se cumpra neles o que foi dito: “Calem-se os lábios mentirosos, que proferem insolências contra o justo com orgulho e desprezo” (19 a b c). Quando emudecerão esses lábios? Neste século? Nunca. Diariamente gritam contra os cristãos, principalmente contra os humildes. Não é agora que estes lábios emudecerão. Mas quando? Quando sobre eles recaírem suas iniquidades, conforme se diz, no livro da Sabedoria: “O justo se levantará face aos que o oprimiram e desprezaram as suas obras. Ao verem-no, serão abalados por um horrível temor. Dirão entre si arrependidos: «Este é aquele de quem nós outrora escarnecemos. Insensatos de nós, que considerámos a sua vida uma loucura. Como é Ele contado entre os filhos de Deus e partilha da sorte dos santos” (Sb 5, 1-5)? Então emudecerão os lábios dos que proferem a iniquidade contra os justos, com soberba e desdém. Agora, pois, eles dizem-nos: Onde está o vosso Deus? O que adorais? O que vedes? É certo que pelejais, incerto o que esperais. Quando vier o que esperamos com toda a certeza, emudecerão os lábios mentirosos.

V. 20: Por este motivo, vede a sequência: Aquele que geme assim observa, vê os bens de Deus no seu interior no espírito, vê estes bens apenas ocultamente visíveis, mas que os ímpios não percebem. O salmista, porém, querendo recomendar os bens do século futuro aos homens, aos quais não manda amar, mas suportar as coisas presentes, exclamou em seguida: “Como é grande, Senhor, a bondade” (20 a). “Saboreai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33, 9). “Como é grande, Senhor, a bondade que reservas para os que te são fiéis, Tu a concedes à vista de todos” (20 a b c). O que significa: reservaste para eles? Não recusaste. Guardaste para eles, somente para eles, a fim de que a obtenham com temor. Mas, os justos, enquanto temem ainda não alcançaram; acreditam, contudo, que obterão, e começam pelo temor. Nada há de mais suave que a sabedoria imortal, mas o início da sabedoria é o temor do Senhor (P r 1, 7; Sl 110, 10), “àqueles que em ti confiam” (20 d). “Tu a concedes, à vista de todos” (20 c). Isto é, completaste tua doçura para os que em ti esperam, diante dos filhos dos homens. Identifica-se com a afirmação do Senhor: “Mas aquele que me negar diante dos homens também o hei-de negar diante de meu Pai que está no Céu” (Mt 10, 33).

Se esperas, por conseguinte, no Senhor, espera diante dos homens; não suceda esconderes tua esperança no coração e teres medo de confessar ao te incriminarem por seres cristão. Com a boca se confessa para alcançar a salvação (Rm 10, 10). Se, portanto, queres andar pelo caminho do Senhor, mesmo na presença dos homens, espera em Deus, quer dizer, não te envergonhes de tua esperança. Assim como Ele vive em teu coração, habite em tua boca. Se não corares dele na presença dos homens, se perante os filhos dos homens não negares a Cristo, nem por palavras, nem por obras, espera que a doçura de Deus em ti chegue à perfeição.

V. 21: Como continua: “Ao abrigo da tua face” (21 a). De que espécie é este lugar? O salmista não disse: Esconde-os em teu Céu. Desvaloriza-se para nós tudo o que há fora de Deus. Aquele que nos protege nesta vida, Ele mesmo seja nosso lugar na outra.

Estaremos, pois, escondidos no esconderijo da face de Deus? Purificai o coração para que ele vos ilumine entre aquele que invocais. Sê a sua casa e Ele será a tua casa; habita em ti, habitarás nele.

Se neste mundo O receberes no teu coração, Ele no outro mundo te receberá no esconderijo de sua face. Abrigá-lo-às. Onde? “Ao abrigo da tua face, Tu os guardas das intrigas dos homens” (21 a b). Ali, pois, não serão perturbados porque estão escondidos. “Na tua tenda os defendes contra as línguas maldizentes” (12 c d). Chegará o dia em que os abrigarás no esconderijo de tua face, da perturbação dos homens, de sorte que não poderá mais haver para eles perturbação vinda dos homens. Mas, por enquanto, na peregrinação deste mundo, uma vez que teus servos suportam a língua de muitos contraditores, o que fazer por eles? “Na tua tenda os defendes” (21 c). O que quer dizer tenda? A Igreja, no presente, chama-se tenda, porque ainda peregrina na terra. A tenda é a morada dos soldados expedicionários. O Céu será tua casa eternamente, se viveres honestamente na tua tenda. Serás, portanto, protegido por Ele nesta tenda da contradição das línguas. Contradizem muitas línguas. Ressoam várias heresias, várias cismas. Muitas línguas contradizem à verdadeira doutrina. Tu, porém, abraça a Igreja Católica.

V. 22: “Bendito seja o Senhor, que, pelo seu amor, fez maravilhas por mim na cidade fortificada” (22 a b c). O povo de Deus estava estabelecido só na Judeia, como no centro do mundo. Lá se cantavam os louvores de Deus, ofereciam-Lhe sacrifícios, os profetas não cessavam de vaticinar as rivalidades futuras, que agora vemos realizadas. Foi admirável, na verdade, Senhor, a tua misericórdia para com a cidade de Jerusalém. Ali, Cristo sofreu, ali ressuscitou, dali subiu aos Céus, ali fez muitos milagres. Mas louvor maior te é devido, porque difundiste a tua misericórdia entre todas as gentes. Naquela Jerusalém, não guardaste no vaso fechado teu unguento; mas, de certo modo, quebraste o vaso e o unguento se espalhou pelo mundo, para se cumprir o que foi dito nas Sagradas Escrituras: “A Tua fama é odor que se difunde” (Ct 1, 3). Cristo, portanto, subiu ao Céu, está sentado à direita do Pai. Depois enviou o Espírito Santo. Os discípulos, repletos do Espírito Santo, começaram a pregar as maravilhas de Cristo. Foram apedrejados, mortos, postos em fuga (Act 8). E, afugentados dali, de um só lugar, incendiaram toda a floresta do mundo com o fervor do Espírito Santo e a luz da verdade.

V. 23: “ Na minha ansiedade, eu dizia: «Fui banido da tua presença» (23 a b). O salmista se vê apavorado interiormente não sei bem por qual tribulação, pois elas nunca faltam. Percebe que seu coração está cheio de temor e tremor e diz: “ «Fui banido da tua presença» ” (2 b). Se estivesse diante de tua face, não estaria temeroso. Mas, conforme o salmista diz em outro salmo: “Quando digo: «Os meus pés vacilam», logo a tua bondade Senhor me ampara” (Sl 93, 18). Aqui também continua: “Tu, porém, ouviste o brado da minha súplica” (23 c). Ouviste minha oração, porque não fui soberbo, mas acusei meu coração, e titubeante em minha tribulação, por ti clamei. Pensa no que aconteceu a Pedro; vê o Senhor a caminhar sobre as águas, e julga ser um fantasma. O Senhor exclama: “ «Sou Eu! Não temais» ”. Pedro confia e diz: “ «Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas» ”. Desta forma me certifico de que és Tu, se à tua palavra puder o que tu podes. “«Vem» - Disse-lhe Jesus”. E Pedro desceu, começou a caminhar, avançou intrépido, confiante. Mas, sentindo a violência do vento, teve medo e, começando a ir ao fundo, gritou: “«Salva-me, Senhor!»”. Jesus estendeu-lhe a mão e segurou-o e disse-lhe: “Homem de pouca fé, porque duvidaste?” (Mt 14, 22-32).

Disse, portanto, em meu pavor: “ «Fui banido da tua presença» ” (23 b). E como alguém em perigo de afundar no mar, clamou: “Tu, porém, ouviste o brado da minha súplica” (23 c), “quando eu te invoquei” (23 d). Clamor para Deus é o que vem do coração, não da voz. Muitos de lábios fechados, clamaram com o coração revoltado, nada puderam obter. Se clamas, clama interiormente. Lá é que Deus ouve.

V. 24: “Amai o Senhor, todos vós, que sois seus amigos” (24 a). Como se dissesse: Acreditai em mim; eu experimentei. Tive tribulações. Invoquei e não fui decepcionado. Esperei no Senhor e não fui confundido. Isto é, amai o Senhor, vós que não amais o mundo. Como direi que ame ao Senhor àquele que ainda ama as pompas do mundo e a todas as vaidades e enganosas loucuras? A este admoesto: Aprende a não amar, para aprenderes a amar. “O Senhor protege os seus fiéis, mas castiga com rigor os orgulhosos” (24, b c). Suportai até que a provação se retire, tolerai até que termine. Forçoso é que o Senhor querendo a verdade, retribua aos que se orgulham desmesuradamente. E logo hás-de dizer: Quando retribuirá? Quando Ele quiser. É certo que retribuirá. Não duvides da retribuição, não ouses dar conselhos a Deus a respeito do tempo. E retribuirá aos que se orgulham imensamente. A alguns aqui mesmo na terra. De facto, quando são humilhados os que temem a Deus, se talvez se haviam destacado em alguma dignidade secular, não caíram quando foram humilhados, porque não retiraram a Deus de seu coração. Sua elevação é Deus. Job parecia humilhado. Perdera seus bens, seus filhos. Parecia humilhado. Vê se ele se tornou infeliz, vê se não se abrigou no esconderijo da face de Deus. Disse ele: “Saí nu do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21).

Se quereis ser ricos, ambicionai tais riquezas que não podeis tirar num naufrágio. Não considereis, portanto, infelizes, homens de tal têmpera, quando humilhados. Seria erro. Não sabeis ao que eles possuem interiormente. Fazeis suposições, baseadas em vós mesmos, que amais o mundo, porque se perdeis tais bens vós vos sentis infelizes. Eles têm interiormente com que se alegrar. Ao contrário, caem miseravelmente os que depositam sua esperança neste mundo. Tu, porém, ó cristão, aprendeste a suportar, e não a te vingar. Queres vingar-te, ó cristão? Cristo ainda não foi vingado. Sofreste de um malvado. E ele não sofreu? Não sofreu primeiro por ti aquele que não tinha motivos para sofrer? Pois, em ti, a tribulação é o cadinho do ourives, para te purificares das escórias e não para seres reduzido a cinzas.

V. 25: “Tende coragem e fortalecei o vosso coração” (25 a). Na tribulação não deixeis as mãos caírem de cansaço, nem vacilarem os joelhos. Comporte-se o vosso coração para sofrer e suportar todos os males deste mundo. Mas a quem o diz o profeta? Talvez aos que amam o mundo? Não. Ouvi a quem se dirige: “Todos vós que esperais no senhor” (25 b).

SALMO 32 (31)

Comentário

Versículos 1. 2: O homem, confessando seus pecados, é libertado pela graça de Deus e não pelo mérito das obras. “Feliz aquele a quem é perdoada a culpa e absolvido o pecado” (1), foram esquecidos. “Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade e em cujo espírito não há engano” (2). Na sua boca não ostenta justiça, porquanto sua consciência está cheia de pecados.

V. 3: “Enquanto me calei, os meus ossos definhavam” (3 a). Não tendo confessado com a boca para a salvação (Rm 10, 10). Envelheci e minha firmeza se tornou fraqueza. “No meu gemido de todos os dias” (3 b). Era ímpio e blasfemo, gritando contra Deus, defendendo e escusando, de certo modo, meus pecados.

V. 4: “Pois a tua mão pesava sobre mim dia e noite” (4 a), pela contínua aplicação de teus castigos. “O meu vigor consumia-se com o calor do Verão” (4 b). Tornei-me infeliz, reconhecendo minha miséria, contrito por causa de uma consciência onerada.

V. 5: “Confessei-te o meu pecado e não escondi a minha culpa” (5 a), isto é, não ocultarei minha injustiça. “Disse: «Confessarei ao Senhor a minha falta» ” (5 b). Disse: confessarei ao Senhor a minha injustiça, contra mim mesmo e não contra Deus, como no clamor da impiedade, quando me calei: “Tu me perdoaste a culpa do pecado” (5 c), ouvindo a voz da confissão no coração, ainda antes de ser proferida pela boca.

V. 6: “Por isso todo o infiel te invoca no tempo da angústia” (6 a). Por causa desta impiedade do coração todo o santo há-de implorar-te. Não se tornarão santos por seus próprios méritos, mas na ocasião oportuna, no tempo da vinda daquele que nos redimiu de nossos pecados.

“E, mesmo que transbordem águas caudalosas, jamais o hão-de atingir” (6 b). Ninguém pense, contudo, que ao chegar repentinamente o fim, como nos dias de Noé, seja ainda tempo da confissão que aproxima de Deus.

V. 7: “Tu és o meu refúgio: livras-me da angústia” (7 a). Tu és o meu refúgio da angústia dos meus pecados, que apertam o meu coração. “E me envolves em cânticos de libertação” (7 b). Em ti encontro meu refúgio. Preserva-me da tristeza que meus pecados me causam.

V. 8: Resposta de Deus: “ «Vou ensinar-te e mostrar-te o caminho que deves seguir» ” (8 a). Depois da confissão, vou dar-te entendimento, para não te afastares do caminho em que ingressaste, a fim de não procurares ser dono de ti mesmo. “De olhos postos em ti serei o teu conselheiro” (8 b). Consolidarei para contigo o meu amor.

V. 9: “Não sejas irracional como um cavalo ou um jumento” (9 a b), e por conseguinte querem governar-se a si mesmos. E prossegue o profeta: “Cujo ímpeto só é dominado com freio e cabresto” (9 c). Faz-lhe, portanto, ó Deus, o que se faz ao cavalo e ao jumento; por meio de castigos, força-os a seguir a direcção que lhes imprimes, “para os aproximares de ti” (9 d).

V. 10: “Muitos são os sofrimentos do ímpio” (10 a). É muito castigado quem não confessa os seus pecados e quer guiar-se a si mesmo. “Mas o que confia no Senhor, o seu amor o envolve” (10 b). A misericórdia cercará o que confia no Senhor e a Ele se submete.

V. 11: “Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor” (11 a). Alegrai-vos e exultai, ó justos, não em vós mesmos, mas no Senhor: “Exultai todos vós, que sois rectos de coração” (11 b). Gloriai-vos nele todos os que compreendestes que é recto submeter-vos a Ele. Então sereis preferidos aos demais.

SALMO 32 (31)

Catequese

Primeiro recomendo às vossas orações, a minha fraqueza, para que, segundo diz o Apóstolo: “quando abrir a minha boca me seja dada a palavra (Ef 6, 19), possa falar-vos de modo que não seja perigoso e vos seja de proveito. O ânimo do homem é vacilante, e hesita entre a confissão de sua fraqueza e a audácia da presunção.

Se, por exemplo, for indulgente totalmente à própria fraqueza, e disser que Deus perdoa todos os pecados, mesmo se preservarem nos pecados, contanto que creiam que Deus os livra, porque quando quiser, Deus me livrará em sua misericórdia, porque nele acreditei: Quem, portanto, diz que nenhum destes se perde, inclina-se para um pensamento erróneo à impunidade dos pecados. Aquele Deus justo de quem se canta o amor e a justiça (Sl 100, 1), vê-se diante deste homem que falsamente presume de si e abusa da misericórdia de Deus, que necessariamente o condenará. Tal opinião arrasa o homem para o abismo. Alguém pode então aterrorizado ao chegar, contudo, a certa audácia presunçosa, presumindo de suas forças e de sua justiça e faz o propósito de cumprir a justiça sem tropeços e realizar todas as prescrições da lei sem escorregar. Atribui tudo isso a si mesmo, ao arbítrio da sua vontade. Mesmo se praticar tudo o que parece justo aos olhos dos homens, no entanto, Deus já condena a própria presunção e orgulhosa jactância. O que acontecerá se o homem se justificar e presumir de sua justiça? Ouçamos a voz de Deus que nos diz: “Não te desvies nem para a direita nem para a esquerda” (Pr 4, 27). Se perguntares, o que devo fazer? Este salmo no-lo ensina. O Apóstolo Paulo atestou, que este salmo se refere à graça que nos constitui cristãos.

O Apóstolo, ao recomendar que a justiça vem da fé, opondo-se aos que se gloriam da justiça proveniente das obras, disse: “Que havemos de dizer de Abraão, nosso antepassado segundo a carne? É que, se Abraão foi justificado por causa das obras, tem motivo para se poder gloriar mas não diante de Deus” (Rm 4, 1. 2). Livre-nos Deus de tal glória e ouçamos com preferência a palavra: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Cor 1, 31). Muitos gloriam-se das suas obras e encontram-se muitos ateus que não querem tornar-se cristãos, porque supõem que é suficiente uma vida de homem honesto.

Para que preciso de Cristo? Este gloria-se mas não diante de Deus. Não foi assim que sucedeu com o nosso pai Abraão. No intuito de dizermos e sabermos que ele se gloria em Deus, afirma o Apóstolo: Ele teve glória junto de Deus; portanto, não foi justificado por causa das obras. Se Abraão não foi justificado por causa das obras, o que foi que o justificou? O que diz a Escritura? “Que Abraão acreditou em Deus e isso foi-lhe atribuído à conta de justiça” (Rm 4, 3; Gn 15, 6). Pela fé, portanto, foi justificado Abraão.

Então posso fazer o que quiser, apesar de não ter praticado boas obras, somente acreditar em Deus, isso me será reputado em conta da justiça? Se alguém assim falar e decidir, cai e submerge. A Escritura de Deus, porém, bem interpretada, não somente livra o periclitante mas ainda retira do abismo quem nele mergulhou. Efectivamente, Tiago, na sua epístola, impugnando os que presumiam da fé apenas, sem as boas obras, recomendou as obras do mesmo Abraão cuja fé Paulo destaca. Mas os apóstolos não se contradizem. S. Tiago refere-se à obra de Abraão notória a todos, ao oferecer seu filho sobre o altar a Deus. (Tg 2, 21). Obra grandiosa mas oriunda da fé. Aprovo o edifício em cima, mas vejo em baixo os alicerces da fé. Se Abraão agisse assim, deixando de lado a fé verdadeira, nada lhe adiantaria a obra, por melhor que fosse. Ainda mais. Se Abraão conservasse a fé, ao lhe ordenar Deus que oferecesse seu filho em sacrifício, mas dissesse a si mesmo: Não faço, e no entanto, acredito que Deus me livrará, mesmo desprezando as suas ordens. A fé sem obras estaria morta, e como raiz infrutífera ficaria estéril e seca.

A meu ver, as obras ditas antecedentes à fé, apesar de serem louváveis aos homens, são vãs. Onde não havia fé, não existia boa obra. A intenção cria a boa obra, a fé dirige a intenção. Imagina um homem que é óptimo comandante de um navio, mas perdeu o rumo; que adianta segurar a vela do mastro com firmeza, mover bem o navio, virar a proa contra as ondas, evitar que dêem nos costados? Assim acontece também com aquele que corre velozmente, mas fora do caminho. Não seria melhor, mais tolerável que um fosse mais fraco, dominasse o timão com labor e dificuldade mantendo, contudo, a direcção certa e devida?

Conserva a fé quando te dispões a obrar. Mas podes responder: O apóstolo Paulo não diz isto! Ao contrário, o apóstolo Paulo afirma: “a fé que actua pelo amor” (Gl 5, 6), em outra passagem, “É no amor que está o pleno cumprimento da lei” (Rm 13, 10).

Vê se não queres que obres aquele que ordena: “Não cometerás adultério, não matarás, não cobiçarás, bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei”. (Rm 13, 9-10).

Sereis preguiçosos, mortos, detestáveis, infelizes, se nada amais. Amai. Vede, contudo, o que amar. O amor a Deus, o amor ao próximo chama-se caridade; o amor ao mundo, o amor deste século denomina-se cobiça. Crer refere-se à fé, e obrar à caridade.

Quais, então, são os bem-aventurados? Não são alguns nos quais Deus não encontrou pecados, pois, achou-os em todos. Todos, de facto, “pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 23). Se, portanto, em todos existem pecados resta que não são felizes senão aqueles cujos pecados foram perdoados. A graça é concedida gratuitamente. E o que quer dizer: concedida gratuitamente? Que nada recebe em troca. Nada fizeste de bom e te é dada a remissão dos pecados. As tuas obras são examinadas, e resulta que todas são más. Se Deus retribuísse com o que merecem aquelas obras, condenaria efectivamente. “O salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23). Qual o merecimento das más obras senão a condenação? O que é devido às boas obras? O Reino dos Céus. Estavas entregue às más obras; se te for pago o que te é devido, hás-de ser punido. Mas o que aconteceu. Deus não te deu o castigo merecido; ao invés, deu a graça imerecida. Devia vingar-se mas foi indulgente. Começas a ter fé pela indulgência de Deus. A fé, acompanhada de esperança e caridade, começas a agir bem. Ninguém se gabe das suas obras, antes de possuir a fé, ninguém seja preguiçoso relativamente às boas obras, depois de ter recebido a fé. Deus, efectivamente, concede perdão a todos os ímpios e justifica-os pela fé.

Versículos 1. 2: “Feliz aquele a quem é perdoada a culpa e absolvido o pecado” (1). “Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade e em cujo espírito não há engano” (2).

Entendimento ou inteligência consiste em saberes que não te deves gabar de teus méritos, nem presumir da impunidade de teus pecados. Em primeiro lugar, é inteligente saberes que és pecador. Em segundo, que ao começares a agir bem, pela caridade oriunda da fé, não o atribuas às tuas forças, mas à graça de Deus. Quem, portanto, é iníquo e se apresenta como justo, não é mentiroso? Não era assim Natanael, do qual diz o Senhor: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Porque não havia fingimento em Natanael? “Eu te vi”, diz o Senhor, “quando estavas sob a figueira”. Estava debaixo da figueira, estava sujeito à condição mortal, porque estava sujeito ao pecado inerente à propagação da carne, estava sob a figueira, a respeito do qual geme-se em outro salmo:”Eis que nasci na culpa e minha mãe concebeu-me em pecado” (Sl 50, 7). Mas, viu-o aquele que veio trazer a graça. O que quer dizer: eu o vi? Compadeceu-se dele. Portanto, recomenda o homem sem fingimento, para nele recomendar a sua graça. Qual a importância de ver um homem debaixo da figueira? Se Cristo não tivesse visto o género humano debaixo desta figueira, ou murcharíamos inteiramente, ou como aconteceu aos fariseus, que eram fraudulentos, isto é, se justificavam com palavras, mas suas obras eram más, Ele só encontraria em nós folhas e não frutos. Ao ver Cristo esta figueira, amaldiçoou-a e ela secou: “Vejo, disse Ele, senão folhas, isto é, apenas palavras, sem frutos. Disse então: «Nunca mais nascerá fruto de ti». Naquele instante a figueira secou” (Mt 21, 19). Os fariseus eram aquela árvore: tinham palavras, mas não tinham obras. E, como tudo, é imputado à graça e não aos nossos méritos. “Feliz aquele a quem é perdoada a culpa a quem o Senhor não acusa de iniquidade” (1-2 a). Não se trata daqueles aos quais não se acha pecados, mas daqueles cujos pecados foram perdoados. Foram encobertos os pecados, tapados, apagados; se não quis percebê-los, não quis anotar; se não quis punir, não quis reconhecer, prefere perdoar. O que significa dizer que Deus vê os pecados, se não que pune os pecados. Qual a palavra que mostra que, para Deus, ver os pecados é o mesmo que puni-los? “Desvia o teu rosto dos meus pecados” (Sl 50, 11). Não veja, pois teus pecados, para te ver.

“Em cujo espírito não há engano” (2 b). De facto, os que não querem confessar os seus pecados, pelejam sem razão procurando defendê-los. É forte quem tira a sua fortaleza de Deus, não de si mesmo. A esse respeito disse o Apóstolo: “Três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me: «Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza”. Por este motivo, disse ele ainda em outro lugar: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 8. 10). Por conseguinte, quem deseja ser forte, de certo modo presumindo de si, e gabando-se de seus méritos, sejam quais forem, assemelhar-se-ão ao fariseu que se jactava com orgulho daquilo que ele afirmava ter recebido de Deus. Dizia: “Ó Deus, dou-te graças”. Observai a qual género de soberba a que se refere Deus. Verdadeiramente, é a espécie que pode insinuar-se no justo, torna-se sub-reptícia até para o homem de bem. Dizia o fariseu: “Ó Deus, dou-te graças”. Ao dizer: Eu Te dou graças, confessava ter recebido de Deus o que tinha. Que tens tu que não tenhas recebido” (1 Cor 4, 7)? Portanto disse: dou-te graças por não ser como o resto que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos” (Lc 18, 11). Onde está a soberba? Não em dar graças por seus dons, mas porque se exalta acima do outro, por causa desses mesmos bens. O Evangelista acrescentou: “Disse também a seguinte parábola a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais. Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro cobrador de impostos”, etc., como sabeis. O fariseu desprezou aquele que estava à distância, de quem, todavia, o Senhor está perto, enquanto se confessava pecador. “O cobrador de impostos, mantinha-se à distância”. Mas Deus não estava longe dele. Por que Deus não estava distante dele? Porque diz em outra passagem: “O Senhor está perto dos corações contritos” (Sl 33, 19). “O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao Céu, mas batia no peito”. As batidas no peito representavam a contrição do coração. E qual foi a sentença do Senhor? “Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não”. Porquê? Ele não ousava levantar os olhos para o Céu, examinava a consciência, fica de longe e é mais justificado do que aquele fariseu. Porquê? Deus expõe a regra de sua lei: “Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18, 8-14). O publicano não ousava levantar os olhos para o Céu. Porque olhava para si mesmo. Examinava-se para, em primeiro lugar, desagradar a si mesmo e assim agradar a Deus. O Senhor diz ao soberbo: Não queres olhar-te? Eu olho-te. Queres que Eu te observe? O publicano não ousava levantar os olhos para o Céu, porque olhava para si mesmo, punia a própria consciência. Ele castigava-se para que Deus o libertasse; acusava-se para que o Senhor o defendesse. De tal sorte o defendeu, que proferiu sentença favorável: “Este voltou justificado para sua casa, o outro não”. No entanto, também o fariseu era pecador. Não deixava se ser pecador por dizer: “Não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros”; nem por jejuar duas vezes por semana, nem pelos dízimos. Se não tivesse outro pecado a soberba já era grande crime. Enfim, quem não tem pecado? “Quem poderá dizer: o meu coração está puro, estou limpo de pecado” (Pr 20, 9)? Ele, portanto, tinha pecados; mas pervertido e sem saber aonde tinha vindo, era como se estivesse a atentar com um médico, e lhe mostrasse os órgãos sadios e escondesse as feridas.

V. 3: Por isso vede o que disse o salmista: “enquanto me calei, os meus ossos definhavam no meu gemido de todos os dias” (3). Qual o sentido disso? Parece contraditório. Se clama, como calou? Calou uma coisa, não calou outra. Calou a confissão, clamou a presunção. “Calei”, disse ele, não confessei. Então devia falar. Calar os próprios méritos, clamar os seus pecados. O que lhe acontecerá? Seus ossos definhavam. Notai que, se clamasse os seus pecados e calasse os próprios méritos, renovar-se-iam os seus ossos, Ele que em si mesmo, se tornou fraco e seus ossos definhavam.

V. 4: “Pois a tua mão pesava sobre mim dia e noite” (4 a). Qual o sentido da frase: Pesava sobre mim a tua mão? Considerai a justa sentença dos dois, a do fariseu e a do publicano. O que foi dito do fariseu? Que foi humilhado. E do publicano? Que foi exaltado. Quando Deus quer humilhar quem se exalta, faz pesar sobre ele a sua mão. Se não se quis humilhar pela confissão de seu pecado, foi humilhado pelo peso da mão de Deus.

Vs. 4. 5: “O meu vigor consumia-se pelo calor do Verão” (4 b). Devido ao peso da tua mão, à própria humilhação, resolvia-me na minha dor, tornei-me infeliz, minha consciência compungia-se. “Confessei-te o meu pecado e não escondi a minha culpa” (5 a). Já reconhece, pois. Se ele conhece, Deus perdoa. E agora: “Disse: «confessarei ao Senhor a minha falta» e Tu me perdoaste a culpa do pecado” (5 b c). Promete dizer; e Deus já perdoa. É importante. Declarou: confessarei. Não declarou confessei. Pelo facto de dizer: “confessarei” mostra que ainda não proferira com a boca, mas pronunciara com o coração. Enquanto diz: “Confessarei”, já confessou; e, por isso: “Tu me perdoaste a culpa do meu pecado” (5 c).

Foi com razão que: “Disse: «confessarei ao Senhor a minha falta;» (5 b), e isto tem importância. Pois, muitos confessam sua iniquidade, mas contra o próprio Senhor Deus. Quando se vêem com pecados dizem: Deus assim quis. Se, pois o homem diz: Não fiz; ou: esta acção que condenas não é pecado, não pronuncia isto contra si, nem contra Deus. Se disser: Efectivamente, agi assim, e é pecado, mas foi Deus quem quis; que fiz eu? Isto é pronunciar contra Deus o seu pecado. Muitos dizem o destino me fez isto, minhas estrelas me fizeram tal coisa. Assim dão uma volta, para chegarem a Deus. Por um rodeio querem acusar a Deus. A sorte me fez isto. Acaba com estas desculpas dos teus pecados. Lembra-te das palavras do salmo: “Não me deixes escorregar para a maldade, nem praticar a iniquidade com os ímpios, nem tomar parte em seus lautos banquetes”. (Sl 140, 4). Deus me criou dotado de livre-arbítrio. Se pequei, fui eu que pequei, de modo que não somente confessarei minha iniquidade ao Senhor, mas confessarei contra mim mesmo e não contra Ele. Não foi Ele que me forçou, mas eu mesmo que consenti em sua persuasão. “Eu disse: «Senhor, tem compaixão de mim; cura-me, embora tenha pecado contra ti!» ” (Sl 40, 5).

V. 6: “Por isso, todo o fiel te invoca no tempo da angústia” (6 a b). Por causa de quê? Da impiedade. A fim de quê? Para obter a remissão dos pecados. Todo o fiel há-de suplicar-te, porque perdoaste os pecados. Pois, se não perdoasses os pecados, não haveria fiel para te suplicar. Tempo oportuno será quando se manifestar o Novo Testamento, quando se manifestar a graça de Cristo. “Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher” (Gl 4, 4. 4); isto é, de uma jovem. “Nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei”. De que os redimiria? Do diabo, da perdição, de seus pecados, daquele ao qual os homens se haviam vendido. Estavam sob a Lei porque a Lei os oprimia. Sua condição os oprimia, convencendo-os de culpa, não salvando. De facto, a Lei proibia o mal; mas como eles não possuíam forças para se justificar a si mesmos, deviam clamar ao Senhor, como clamava aquele que se achava cativo sob a lei do pecado: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte” (Rm 7, 23-24)? Todos eles estavam sob a Lei. A Lei revelou o pecado. Ela cravou o espinho, fez o coração se compungir, admoestou a que se reconhecesse cada um como réu, e clamasse a Deus por perdão: Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus seu Filho.

“E, mesmo que transbordem águas caudalosas, jamais o hão-de atingir” (6 c d). A quem? A Deus. O salmista costuma mudar de pessoa conforme fez no salmo: “De ti, Senhor, vem a salvação. Desça a tua benção sobre o teu povo” (Sl 3, 9). O que significa águas caudalosas? O que é o dilúvio de muitas águas? A multiplicidade de várias doutrinas. Muitas águas são as várias doutrinas. A doutrina de Deus é uma só, suas águas não são muitas, mas uma só água, seja a do sacramento do Baptismo, seja a da doutrina salutar. Diz-se a respeito desta doutrina, que nos irriga, por obra do Espírito Santo: “Bebe da água da tua cisterna, e da água que jorra do teu poço” (Pr 5, 15). Os ímpios não têm acesso a estas fontes; ao invés, delas se aproximam os que acreditam naquele que justifica o ímpio (Rm 4, 5), depois que foram justificados. Qual é a água verdadeira, que mana da fonte mais profunda, do puro filão da verdade? Que água é esta, meus irmãos, senão a que ensina o louvor do Senhor? Que água, senão a que exorta: “É bom louvar-te, Senhor” (Sl 91, 2).

E ainda a água da confissão dos pecados, água da humilhação do coração, água da vida da salvação, água da renúncia a si mesmo, que nada presume de si, nada orgulhosamente atribui a seu próprio poder. A corrente desta humildade vem de Cristo. Essa estrada parte dele, que sendo excelso, veio humildemente. “Rebaixou-Se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8). O que ensinou, pagando o que não devia, para salvar o nosso débito? O que ensinou de diverso, ao ser baptizado sem ter pecado e ser crucificado sem ter culpa alguma? Ensinou outra coisa a não ser a humildade? Não foi sem razão que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Com esta humildade é que alguém se aproxima de Deus, porque o “Senhor está perto dos corações contritos” (Sl 33, 19).

V. 7: Por toda a parte, mesmo quando confessamos os pecados, fazem ruído em torno de nós aquelas águas caudalosas. Não estamos submersos no dilúvio, mas estamos cercados dele. As águas pressionam, mas não oprimem, impele-nos mas não nos submergem. O que se há-de fazer, então, no meio do dilúvio, avançando por este mundo. Como rezará então, quem já está justificado e que presume de Deus acerca de tantas águas? “Tu és o meu refúgio: livras-me da angústia” (7 a). Refugiem-se eles nos seus deuses, ou nos seus demónios, ou em suas forças, ou nas escusas de seus pecados. Para mim, neste dilúvio, não há refúgio senão em ti diante da angústia que me cerca.

“E me envolves em cânticos de libertação” (7 b). Se já exultas porque desejas ser redimido? Sim, diz o salmista, alegro-me e gemo. Alegro-me na esperança, gemo ainda na realidade. “Sede alegres na esperança”, diz o Apóstolo. Continua o Apóstolo: “Pacientes na tribulação” (Rm 12, 12). O mesmo Apóstolo prossegue: “De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê, não é esperança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar”. (Rm 8, 24-25).

V. 8: “Vou ensinar-te e mostrar-te” (8 a). O próprio salmo é de inteligência. Vou dar-te entendimento e indicar o caminho a seguir. O que significa: “Vou ensinar-te e mostrar-te o caminho que deves seguir” (8 b)? Dar-te-ei entendimento para sempre te conheceres, e sempre te alegrares na esperança depositada em Deus, até chegares à pátria, onde não terás mais esperança e sim realidade. “De olhos postos em ti serei o teu conselheiro” (8 c). Não tirarei os olhos de ti, porque tu também não apartas de mim os teus olhos. Já justificado, após a remissão dos pecados, ergue para Deus os teus olhos. Teu coração apodrecerá retido na terra. Tu também levanta os olhos para Deus continuamente para que Ele fixe em ti os seus olhos. Mas por que receias que, mantendo os olhos elevados para Deus, tropeces? Ou não olhas para a frente, e talvez caias num laço. Não temas. Vêem os olhos daquele que os fixou em ti. “Não vos preocupeis” (Mt 6, 31). E diz o apóstolo Pedro: “Confiai-lhe todas as vossas preocupações, porque Ele tem cuidado de vós” (1 Pd 5, 7). Ouve as palavras de outro salmo: “Os meus olhos estão sempre postos no Senhor” (Sl 24, 15). O que fazes de teus pés, uma vez que não olhas para a frente? Responde. “Porque Ele tira os meus pés da armadilha” (Sl 24, 15 b).

V. 9: Agora se dirige aos soberbos: “Não sejas irracional como um cavalo ou um jumento” (9 a). E o que é que eles sofrem? “Cujo ímpeto só é dominado com freio e cabresto, para os aproximares de ti” (9 b). Tua boca será amarrada; com ela te gabas de teus méritos e calas os teus pecados.

V. 10: “Muitos são os sofrimentos do ímpio” (10 a). Não é de admirar, que uma vez usado o freio, siga-se o chicote. Ele queria ser um animal indómito. É domado com o freio e o chicote. E oxalá seja domado por completo. Pois é de recear que resistindo demais, mereça ser abandonado, permanecendo indómito e permanecendo em sua licenciosa vagabundagem de sorte que se diga a seu respeito: “A maldade brota-lhes do coração” (Sl 72, 7). Mas como foi domado? Com o chicote. Deus doma o jumento, que Ele monta, porque ao jumento convém ser montado. Não é cheio de mistério o facto de um jumentinho foi levado ao Senhor (Mt 21, 7)?

O povo manso e quieto que carrega com segurança o Senhor é um jumentinho e encaminha-se para Jerusalém. Como está em outro salmo: “Guia os humildes na justiça e dá-lhes a conhecer o seu caminho” (Sl 24, 9). Quais são esses humildes? Os que não erguem a cerviz contra o seu domador, os que suportam o chicote e o freio, a fim de que depois de domados, andem sem chicote e sem freio nem cabresto e se mantenham no caminho. Se te faltar esse cavaleiro, tu cais, Ele não. “Muitos são os sofrimentos do ímpio; mas a quem confia no Senhor, o seu amor o envolve” (10 a b). De que maneira o Senhor é refúgio na tribulação? Aquele que primeiro está cercado de tribulação, cerca-o em seguida a misericórdia, porque quem deu a lei, dará a misericórdia nas consolações.

V. 11: “Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor” (11 a). E como sois justos? Não pelos vossos méritos, mas por sua graça. Como sois justos? Porque fostes justificados. “Exultai todos vós, que sois rectos de coração” (11 b). “Rectos de coração”? São aqueles que não resistem a Deus. Esta a diferença entre coração recto e coração malvado: Recto de coração é aquele que, sofrendo contra sua vontade, aflições, tristezas, trabalhos, humilhações, atribui tudo isso à justa vontade de Deus e não a julga insensata, como se não soubesse Deus o que faz, porque castiga a uns e a outros poupa. Malvados de coração, maus e perversos aqueles que dizem serem injustos os males que sofrem, acusando de iniquidade aquele por cuja vontade padecem, ou não ousando acusá-lo de maldade, negam-lhe o cuidado no governo. Portanto, os corações perversos, isto é, distorcidos, têm três opiniões. Ou: Deus não existe, pois “O insensato diz em seu coração: «Não há Deus»” (Sl 13, 1). Ou então (2ª opinião). Deus é injusto, pois agradam-lhe tais factos e Ele assim age. Ou ainda (3ª opinião), Deus não governa os eventos humanos, nem cuida de todos. Estas três opiniões são muito ímpias, porque ou negam a existência de Deus, ou O denominam injusto, ou não lhe atribui o governo do mundo. De onde vem isto? De um coração distorcido. Deus é recto, portanto o coração distorcido não se ajusta a Ele. “Mas quem se une ao Senhor forma com Ele um só espírito” (1 Cor 6, 17). Como se gloriam os corações rectos? Declara o Apóstolo: E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações. Pois não é grande coisa gloriar-se no meio de regozijos, de alegrias; os corações rectos se alegram mesmo nas tribulações. Escuta como o Apóstolo fala: “Mais ainda, gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança. Ora, a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 3-5). Assim, pois, é que é um coração recto. Em qualquer acontecimento diga: O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Eis o coração recto: como foi do agrado do Senhor, assim se fez. “Bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21). Preste atenção, para não dizerdes: Isto foi o diabo que fez. Atribui a Deus unicamente o castigo que te aflige, porque nem o diabo te consegue fazer algo, sem a permissão daquele que do alto tem o poder de castigar ou corrigir. Castigo para os ímpios, correcção para os filhos. “Porque o Senhor corrige os que ama e castiga todo aquele que reconhece como filho” (Hb 12, 6). Não esperes ficar isento de qualquer castigo, a menos que penses ser deserdado. Ele castiga todo o filho que acolhe. Todo o filho sem excepção. Nenhum ficará sem castigo. O próprio Unigénito, carregando tua fraqueza e prefigurando em Si a tua pessoa e como Cabeça representando também seu Corpo, ao se aproximar da paixão, contristou-se segundo a natureza humana, para te alegrar; contristou-se para te consolar. Ouve como Paulo exulta ao se aproximar da paixão. Declarou: “Quanto a mim, já estou pronto para oferecer-me como sacrifício, avizinha-se o tempo da minha libertação; combati o bom combate, terminei a minha corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda” (2 Tm 4, 6-8). Vede como exulta a caminho da paixão. Mas, tua vontade se corrija segundo a vontade de Deus, e não se dobre a vontade de Deus à tua. Tua vontade é má; a dele é regra. Vede como ensina Nosso Senhor Jesus Cristo: “ «A minha alma está numa tristeza de morte», e: «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice» ”. Aqui mostrou a sua vontade humana. Mas vê o coração recto: “ «No entanto, não seja como Eu quero, mas como Tu queres» ”. (Mt 26, 38-39). Age assim alegrando-te com o que te acontece; e se chegar o último dia, alegra-te. Se certa fragilidade humana sorrateiramente se introduzir, seja logo dirigida para Deus, a fim de seres do número daqueles aos quais se diz: “Exultai todos vós, que sois rectos de coração”! (11b).

SALMO 33 (32)

Comentário

Versículo 1: “Exultai, ó justos, no Senhor” (1 a). Exultai, ó justos, não em vós mesmos, porque isto é inseguro; mas no Senhor. “Louvai-o rectos de coração” (1 b). Louvam o Senhor os que a Ele se submetem; de contrário, são distorcidos, tortos.

V. 2: “Louvai o Senhor com a cítara” (2 a). Celebrai o Senhor, oferecendo-lhe os vossos corpos como sacrifício vivo, santo (Rm 12, 1). “Cantai-Lhe salmos com a harpa de dez cordas” (2 b). Vossos membros se dêem ao amor de Deus e do próximo, que constam de três e sete mandamentos.

V. 3: “Cantai-lhe um cântico novo” (3 a). Entoai-lhe o cântico da graça da fé. “Tocai com arte por entre aclamação” (3 b). Com alegria cantai-lhe bem.

V. 4: “As palavras do Senhor são verdadeiras”. (4 a). A palavra do Senhor é recta. “As suas obras nascem da fidelidade” (4 b). Não pense alguém ter alcançado a fé pelos méritos das obras, ao passo que é com a própria fé que se realizam todas as obras que Deus ama.

V. 5: “Ele ama a rectidão e a justiça” (5 a). Ama a misericórdia que agora oferece primeiro; e ama a justiça, na qual exige contas do que antes concedeu. “A terra está cheia da sua bondade” (5 b). Em todo o orbe os pecados dos homens são perdoados pela misericórdia do Senhor.

V. 6: “A palavra do Senhor criou os céus” (6 a). Os justos não se firmaram por si mesmos, mas pela palavra do Senhor. “E o sopro da sua boca todos os astros” (6 b). Do Espírito Santo provém a fé que há neles.

V. 7: “Ele juntou as águas do mar como numa represa” (7 a), reúne os povos do mundo na confissão dos pecados remidos, para não deslizarem sem freio devido à soberba, “e guardou as torrentes do Abismo nos seus depósitos” (7 b). Neles guarda como riquezas, seus bens ocultos.

V. 8: “A terra inteira teme ao senhor” (8 a), tema-O o pecador para deixar de pecar. “Tremam diante dele os habitantes do mundo” (8 b). E reverenciem-no, não por terror dos homens ou de qualquer criatura, mas dele mesmo.

V. 9: “Porque Ele disse e tudo foi feito” (9 a). Não foi outro quem fez as coisas temíveis; mas foi Ele que disse e foram feitas. “Ele ordenou e tudo foi criado” (9 b). Mandou por seu Verbo, e tudo foi criado.

V. 10: “O Senhor desfez os planos das nações” (10 a); não os do seu reino, mas as que procuram seus próprios reinos. “Frustrou os projectos dos povos” (10 b) desejosos de felicidade terrena.

V. 11: “Só o plano do Senhor permanece para sempre” (11 a). O conselho do Senhor, que torna feliz somente quem lhe é submisso, permanece para sempre. “E os desígnios do seu coração por todas as idades” (11 b). Os desígnios de sua sabedoria não são mutáveis, mas permanentes pelos Séculos dos Séculos.

V. 12: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (12 a). Somente é feliz a nação pertencente à cidade celeste, que escolheu exclusivamente “seu Deus” por Senhor. “O povo que Ele escolheu para sua herança” (12 b). Não por si mesma, mas por vontade de Deus foi eleita. Possuindo-a, a ela não deixa inculta e infeliz.

V. 13: “Do céu, o Senhor contempla e vê toda a humanidade” (13). Através da alma justa, o Senhor viu misericordiosamente a todos os que querem nascer para a vida eterna.

V. 14: “Do trono em que está sentado” (14 a), habitação da natureza humana, que preparou para si: “Observa todos os habitantes da terra” (14 b). Viu, na sua misericórdia, todos os que vivem na carne, para presidi-los, governando-os.

V. 15: “Ele formou o coração de cada homem” (15 a). Ele concedeu espiritualmente dons peculiares a cada coração, a fim de que o corpo não seja todo ele olho, nem todo ele ouvido (1 Cor 12, 17), mas cada qual incorpore-se a Cristo. “Discerne todas as suas obras”, (15 b). Para Ele são inteligíveis todas as obras humanas.

V. 16: “A vitória do rei não está num grande exército” (16 a). Quem domina a própria carne não se salvará, se presumir muito de sua virtude. “Nem o guerreiro se salva pela sua força” (16 b). Nem se livrará quem luta contra os hábitos de seus maus desejos, ou contra o diabo e seus anjos, se muito confiar em sua fortaleza.

V. 17: “A garantia da vitória não está no cavalo”; (17 a). Engana-se quem pensar que é possível obter a salvação desejada por meio dos homens ou entre eles ou defender-se do mal por uma energia impetuosa: “Não é ele que salva pela sua grande força” (17 b).

V. 18: “Os olhos do Senhor velam pelos seus fiéis” (18 a). Se procuras a salvação, aqui tens o amor para com os que o temem, “por aqueles que esperam na sua bondade” (18 b), os que não confiam em seu próprio valor, sim em sua misericórdia.

V. 19: “Para os libertar da morte e os manter vivos no tempo da fome” (19), dando-lhes o alimento do Verbo e da vida eterna, que haviam perdido, ao presumirem de suas forças. Por isso, carecem das mesmas forças, por fome da justiça.

V. 20: “A nossa alma espera no Senhor” (20 a). Por enquanto, aqui na terra, nossa alma espera pacientemente no Senhor, a fim de que depois, seja saciada com manjares incorruptíveis. “Ele é o nosso escudo” (20 b). Amparo ao nos empenharmos em buscá-lo, escudo ao resistirmos ao adversário.

V. 21: “Nele se alegra o nosso coração” (21 a). O nosso coração não se alegrará em nós mesmos, porque sem o Senhor sofremos grande penúria, mas no Senhor. “E em seu nome santo confiamos” (21 b). Esperamos chegar até Deus, porque enquanto estávamos longe dele, enviou-nos seu santo nome, através da fé.

V. 22: “Venha sobre nós, Senhor, o teu amor, pois depositamos em ti nossa confiança” (22). Desça sobre nós Senhor a tua misericórdia. A esperança não confunde, porque esperamos em Ti.

SALMO 33 (32)

Catequese I

Versículo 1: Este salmo nos exorta ao exultarmos no Senhor. Os justos exultem no Senhor, porque o Senhor permaneceu e sua exultação igualmente permanecerá. Convém, pois, exultar no Senhor, para louvarmos o único que em nada nos pode desagradar. Não penseis que isto seja fácil. Vedes quantos são os que disputam Deus, a quantos desagrada a sua obra!...

Quando o Senhor quer fazer algo contra a vontade humana, uma vez que é o Senhor, sabe o que ele faz, e atende mais a nossa utilidade do que a nossa vontade.

Diz o salmista: “Exultai, ó justos, no Senhor” (1 a); como podemos exultar nele sem louvá-Lo, nós louvamos aquele ao qual agradamos tanto mais quanto Ele nos apraz. Diz o salmista: “louvai-o, rectos de coração” (1 b). Quais são os homens rectos? Os que orientam seus corações segundo a vontade de Deus; e se a fragilidade humana os perturba, a equidade divina os consola. Embora individualmente possam querer devido a seu coração mortal, alguma coisa conveniente no momento a seus interesses, ou negócios, logo que entenderem e conhecerem que Deus quer outra coisa, à sua vontade preferem a daquele que é melhor, o querer do omnipotente à sua fraca vontade, vontade de Deus à do homem. Quanto mais Deus está acima do homem, tanto mais a sua vontade se distancia da vontade humana. Daí vem que Cristo, em sua natureza humana, propondo-nos uma regra, ensinando-nos como viver, uma vez que Ele é nossa Cabeça, e a Ele pertencemos, na qualidade de membros.

Ele disse: “ «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice» ”. Era a vontade humana, optando por algo de próprio e como que particular: “ «No entanto, não seja como Eu quero, mas como Tu queres»” (Mt 26, 39). Mas, que mal poderia querer Cristo? Enfim, o que poderia querer diverso da vontade do Pai? A divindade neles é uma só; não podem diferir na vontade. Mas, enquanto homem, representando os seus, dos quais tomou o lugar, dizendo: “Porque tive fome e deste-me de comer” (Mt 25, 35), e também ao clamar do alto a Saulo, que perseguia os santos, enquanto ninguém o tocava. “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (Act 9, 4), demonstrou ter vontade própria e humana.

É difícil que não te aconteça querer algo próprio; mas pensa logo naquele que está acima de ti. Ele acima, tu em baixo. Ele criador, tu criatura. Ele Senhor, tu servo. Ele omnipotente, tu fraco. Corrige-te, submetendo-te à sua vontade e dizendo: “No entanto, não seja como Eu quero, mas como tu queres” (Mt 26, 29).

Se és curvo, louvas a Deus, quando tudo te corre bem e blasfemas quando as coisas te vão mal. Então serás um menino tolo na casa de teu Pai, amando-o se acaricia, e odiando-o quando te castiga, como se não te preparasse uma herança, quer acariciando, quer castigando. “Em todo o tempo, bendirei o Senhor; o seu louvor estará sempre nos meus lábios” (Sl 33, 2). “Em todo o tempo” equivale a: “sempre”. Em todo o tempo e sempre na prosperidade e na adversidade. Já começaram a louvar a Deus por causa da prosperidade; hão-de aprender a reconhecer o Pai quando castiga, e não murmurar contra a mão que corrige. Possam louvar a Deus mesmo na adversidade, dizendo: “O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; como foi do agrado do Senhor assim se fez, bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21).

Que espécie de justo sou eu quando sou justo? Não deveis menosprezar-vos, nem desesperar de vós mesmos. Sois homens feitos à imagem de Deus. Quem vos fez homens assim, por vós igualmente se fez homem. O sangue do Filho único foi derramado por vós, a fim de que muitos de vós fossem adoptados por filhos, em vista da herança eterna.

Hás-de responder que acreditas em Cristo. Não ouviste a afirmação do Apóstolo: “O justo viverá da fé” (Rm 1, 17)? Tua fé é tua justiça. Se, de facto, acreditas, tens cautela. Se tens cautela, esforças-te. Deus conhece teu esforço e inspecciona a tua vontade, considera a tua luta contra a carne, exorta a combateres; ajuda a venceres, assiste ao lutares, sustenta ao fraquejares, coroa ao seres vencedor. Portanto: “Exultai, ó justos, no Senhor” (1 a). “Louvai-o rectos de coração” (1 b).

Aprende a dar graças a Deus na prosperidade e nas tribulações: Aprendei a manter no coração o que todos têm na boca: “o que Deus quiser”. Este será um dos rectos que exultam no Senhor, aos quais convém o louvor.

V. 2: “Louvai o Senhor com a cítara; cantai-lhe salmos com a harpa de dez cordas” (2). Ordena-se empregar o que já possuímos dentro de nós, conforme declara outro salmo: “Mantenho as promessas que te fiz, ó Deus, quero cumpri-las com sacrifícios em teu louvor” (Sl 55, 13). Qual a diferença entre saltério e cítara? Na diversidade dos dois instrumentos vimos representada a variedade de actos humanos, praticados em nossa vida. A cítara tem a parte sonora em baixo e o saltério em cima. Na vida cá de baixo, isto é, na terrena, temos prosperidade e adversidade, e em ambas devemos louvar a Deus, a fim de que esteja sempre seu louvor nos nossos lábios e bendigamos o Senhor em todo o tempo (Sl 33, 2). Existe prosperidade terrena e adversidade terrena; em ambas Deus há-de ser louvado para tocarmos cítara. Qual é a prosperidade terrena? Consiste em gozarmos de saúde corporal, de abundarem os bens necessários à vida, em conservarmos a incolumidade, em termos abundância dos frutos da terra, em que Deus fez com que o Sol se levante sobre os bons e maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores (Mt 5, 45). É ingrato quem não louvar a Deus por tudo isso. Acaso não pertencem a Deus por serem bens terrenos? Ou será outro o doador, uma vez que são também concedidos aos maus? A misericórdia de Deus é múltipla, paciente, longânime.

As adversidades derivam da parte inferior, da fragilidade do género humano, constando de dores, angústias, doenças, tribulações, tentações. Em toda a parte louve quem toca a cítara. A Sabedoria não governa só as coisas celestes e abandona as terrenas. Não se lhe diz: “Onde é que eu poderia ocultar-me do teu espírito? Para onde poderia fugir da tua presença? Se subir aos céus, Tu lá estás; se descer ao mundo dos mortos, ali te encontras” (Sl 138, 7. 8)? Ao considerares, porém, os dons superiores de Deus, a saber, o que te ordenou do alto, daquela fonte da verdade, toma o saltério, salmodia ao senhor no saltério de dez cordas. Pois os preceitos da Lei são dez. Nos dez preceitos da Lei tens o saltério. É coisa perfeita. Ali tens o amor de Deus em três mandamentos e o do próximo em sete. Em verdade, sabes, pois o Senhor disse que “desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas (Mt 22, 40). Deus te fala do alto: “O Senhor teu Deus é um só”. Eis a primeira corda. “Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus”. Aqui tens a segunda corda. Observa o dia do Sábado, não carnalmente. Melhor seria, de facto, cavar a terra o dia todo do que dançar o dia inteiro. Tu, porém, abstém-te de toda a obra servil. “Todo aquele que comete o pecado é servo do pecado” (Jo 8, 34).

Estas três coisas pertencem ao amor de Deus, a saber, unidade, verdade, deleite. Daí a palavra: “Procura no Senhor a tua felicidade, e Ele satisfará os desejos do teu coração” (Sl 36, 4). Nesses três mandamentos se trata do amor de Deus, em sete outros do amor ao próximo. Não faças a outrem o que não queres que te façam. “Honra o teu pai e a tua mãe”. “Não cometerás adultério”. “Não matarás”. “Não responderás contra o teu próximo como testemunha mentirosa”. “Não desejarás a mulher do teu próximo o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo” (Ex 20, 12-17) e (Dt 5, 6-21). Reprime a tua língua, se não gostas de quem te prejudica.

Cumpre a Lei que o Senhor teu Deus não veio abolir, mas levá-la à perfeição (Mt 5, 17). Farás por amor o que não podias cumprir por temor. Quem não ama, esfria-se, enrijece. Ame-se, mas aquela beleza que reclama os olhos do coração. Ama-se o que não é visível; ou antes ama-se o que vê o coração. Agrade-vos, portanto, e pedi ao Senhor que vos agrade. “O próprio Senhor nos dará os seus bens e a nossa terra produzirá os seus frutos” (Sl 84, 13). De sorte que cumprireis por caridade o que é difícil cumprir por temor.

E como é a justiça? Quem a pintou? Que beleza tem a sabedoria de Deus? Ela faz belas todas as coisas que agradam aos olhos. Para vê-la e atingi-la, os corações têm de ser purificados.

V. 3: “Cantai-lhe um cântico novo” (3 a). Despi tudo o que é velho. Cada qual pergunta a si mesmo como há-de cantar a Deus. Cantai-lhe, mas bem. Ele não quer ter ouvidos a doer. Mas eis que Ele te dá um estilo para cantar. Não procures palavras, como se pudesse explicar em Deus que Deus se compraz. Canta “Com júbilo”. Cantar bem a Deus é cantar com júbilo. O que quer dizer: cantar com júbilo? Entender, não poder explicar com palavras o que se canta com o coração.

O júbilo é som significativo de que o coração está concebendo o indizível. E diante de quem é conveniente tal júbilo senão diante do Deus inefável? Inefável é aquilo de que é impossível falar. E se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar? O coração rejubila sem palavras e a imensidão do gáudio não se limita a sílabas: “Tocai com arte por entre aclamações” (3 b).

V. 4: “As palavras do Senhor são verdadeiras, as suas obras nascem da fidelidade” (4). Recta é a palavra mesmo naquilo que desagrada aos que são rectos. Nas tuas obras haja fé, pois está escrito: «O justo viverá da fé» (Rm 1, 17), e a fé actua pelo amor (Gl 5, 6). Em tuas obras haja fé, porque acreditando em Deus tornas-te fiel. Também Deus é fiel. Não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, Ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar.

Ouvi esta passagem: “Se com Ele morrermos também com Ele viveremos. Se nos mantivermos firmes, reinaremos com Ele. Se o negarmos, também Ele nos negará: se formos infiéis, Ele permanecerá fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2 Tm 2, 11. 12. 13). Mas distingamos entre Deus fiel e homem fiel. O homem fiel é o que acredita em Deus que promete; Deus é fiel oferecendo ao homem o que prometeu. É dele que recebemos tudo o que lhe ofertamos, e dele, porém, todo o bem que há em nós. Todos os bens que fruímos vêm dele. “Quem conheceu o pensamento do Senhor? Quem lhe serviu de conselheiro? Quem antes lhe deu a Ele para que lhe seja retribuído? Porque é dele, por Ele e para ele que tudo existe” (Rm 12, 34-36).

V. 5: “Ele ama a rectidão e a justiça” (5 a). Agora é tempo de misericórdia; o do juízo virá depois. Por que é tempo de misericórdia? Agora perdoa os pecados aos convertidos, é paciente para os pecadores até que se convertam. Exorta os preguiçosos, consola os aflitos, ensina os esforçados, ajuda os combatentes. Não abandona o lutador que clama por Ele. Não nos escape, irmãos, não passe em vão o tempo favorável da misericórdia. O juízo virá depois. Haverá então remorsos, mas já é inútil. “Dirão entre si, arrependidos, gemendo na angústia da sua alma: Que proveito tirámos do nosso orgulho? E de que nos serviu a riqueza e a arrogância? Tudo isso desapareceu como a sombra” (Sb 5, 3. 8. 9). Não deveis pensar, irmãos, que a misericórdia e o juízo possam em Deus se separar de algum modo. Deus é omnipotente, e não omite o juízo quando exerce a misericórdia, nem perde a misericórdia durante o juízo. Ele compadece-se, considera a sua imagem, a nossa fragilidade, o nosso erro, a nossa cegueira e chama-nos. Aos que se convertem a Ele perdoa os pecados, mas não perdoa os que não se arrependem. Terá, contudo, também misericórdia no último juízo para com aqueles aos quais há-de dizer: “Porque tive fome, e deste-me de comer” (Mt 25, 35). Por esta razão diz-se na Epístola de um Apóstolo: “Porque quem não pratica a misericórdia será julgado sem misericórdia (Tg 2, 13). E felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7).

Portanto, no juízo final haverá também misericórdia, mas não sem critério. Haverá misericórdia não para qualquer um, mas para aquele que exerceu a misericórdia. É certamente misericórdia o perdão dos pecados, é misericórdia a concessão da vida eterna. Vê o juízo: “Perdoai e sereis perdoados; dai e ser-vos-á dado” (Lc 6, 37. 38). Mas se dali estivesse ausente o juízo não teria dito: “Com a medida com que medirdes assim sereis medidos” (Mt 7, 2). Ouviste como Deus exerce a misericórdia e o juízo; exerce também tu a misericórdia e o juízo. Se não coubessem ao homem, o Senhor não teria dito aos fariseus: “Desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade!” (Mt 23, 23). Não penses que cabe a ti a misericórdia, o juízo não. Às vezes ouves a causa de dois homens, um dos quais é rico, o outro pobre. Acontece que a causa do rico é boa e a do pobre é má. Julgas agir bem se, compadecido do pobre esconderes e disfarçares a sua maldade e quiseres justificá-lo.

Fala o teu Deus: “Não favorecerás o fraco no seu processo” (Ex 23, 3). Ao invés, devias manter ambas as coisas a misericórdia e o juízo. Mas perguntas o que devias dizer? Julgar primeiro conforme a causa, arguindo o pobre, convencendo o rico. A um julgar, a outro pedir. “A terra está cheia da sua bondade (5 b)”.

SALMO 33 (32)

Catequese II

É laborioso tanto ouvir, quanto anunciar a palavra da verdade. Desde os primórdios do género humano, ouviu o homem, não da parte de um homem falaz, nem do diabo sedutor, mas da própria verdade, da boca de Deus: “Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gn 3, 19). Se nosso pão é a palavra de Deus, suemos à custa dela, para não morrermos de inanição. “Ele ama a misericórdia e o juízo” Quem ama a misericórdia, compadece-se. Evidentemente, se ama a misericórdia, importa que dê o que promete, e se ama o juízo, convém que exija contas do que deu. Daí dizer o Senhor a determinado servo: “Então, porque não entregaste o meu dinheiro a um banco? Ao regressar tê-lo-ia recuperado com juros” (Lc 19, 23). O mesmo Senhor diz em outro trecho do Evangelho: “Eu não julgo ninguém. A palavra que Eu anunciei; essa é que há-de julgar no último dia” (Jo 8, 15; 12, 48). Não se escuse quem não quer ouvir. Terá de dar contas pelo facto de não querer receber quando era oferecido. Uma coisa é não poder receber, outra não querer; a primeira tem a desculpa de ser necessário, a segunda é culpa voluntária. Por esta razão acolhe a misericórdia teme o juízo. Quando Ele vier para as contas, não exija de tal modo que nos demita sem nada. Pois ele exige contas; prestadas essas dá a eternidade. Nenhum de nós durma no momento de receber, para não ser acordado em má hora de prestar contas.

Versículo 5: Não quero que digas. De onde a recebo? Para onde devo ir? Recorda-te do que cantaste: “Ele ama a rectidão e a justiça; a terra está cheia da sua bondade” (5 a b). Onde ainda não é pregado o Evangelho? Onde se cala a palavra de Deus? Onde cessa a salvação? Não foi anunciado: Levantem-se, ó povos, e vinde para um só lugar. Mas foi pregado às gentes onde estavam, para que se cumprisse a profecia: “Prostrar-se-ão diante dele, cada um no seu próprio território” (Sf 2, 11).

V. 6: Na terra abunda a miséria humana e superabunda a misericórdia do Senhor, mas nos céus, porquanto não há miséria, não se precisa de misericórdia. Então não se precisa do Senhor? Todas as coisas necessitam do Senhor, tanto as infelizes como as felizes. Sem Ele o infeliz não tem alívio; sem Ele o feliz não tem governo. Também os céus precisam do Senhor: “A palavra do Senhor criou os céus” (6 a). Eles não deram solidez a si mesmos, nem prestaram a si próprios firmeza. “A palavra do Senhor criou os céus, e o sopro da sua boca, todos os astros” (6 a b). As mesmas obras são do Filho e do Espírito Santo.

Uns confundem, discernindo mal entre a criatura e o Criador. Sendo Criador o Espírito de Deus, eles o enumeram entre as criaturas. Ouve agora que uma só é a obra do Filho e do Espírito Santo. O Verbo é certamente o Filho de Deus e o Espírito da sua boca é o Espírito Santo. Isto é a obra do Filho e do Espírito Santo. Acaso sem o Pai? Quem, pois, obra, através do seu Verbo e do seu Espírito Santo senão aquele de quem é o Verbo e o Espírito. Esta Trindade é, portanto, um só Deus. A esse adora quem sabe adorar, e encontra-o em toda a parte quem se converter.

Deixemos de lado aqueles céus superiores, qual o governo que os rege, como ali num hino indefectível, todos glorificam a Deus. Lá é a nossa pátria, da qual talvez nos esquecêssemos na nossa longa peregrinação. Pois é nossa a palavra do salmo: “Ai de mim, que vivo entre bárbaros! Já vivi tempo demais entre aqueles que odeiam a paz” (Sl 119, 5. 6). Vê o que diz em outra parte sobre os céus: “Os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a obra de suas mãos”. céus e firmamento aqui identificam-se. “Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite”. Não cessam, não se calam. Mas onde pregaram, e até onde chegaram? O som em todas as línguas até onde chegou, o que encheu? Ouve a continuação. “O seu eco ressoou por toda a terra, e a sua palavra, até aos confins do mundo” (Sl 18, 2-5). De quem senão dos céus que narram a glória de Deus? Pois se em toda a terra repercutiu seu som, indique-nos o Senhor que os enviou o que eles nos pregaram. Na verdade, Ele indica. Indica fielmente, porque mesmo antes que se realizassem, predisse as realidades futuras aquele em cujas obras há fé. Ressuscitou dos mortos: seus discípulos tocaram-lhe os membros e o reconheceram. Disse-lhes: “O Messias havia de sofrer e ressuscitar dos mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados”. De onde até onde?” A todos os povos, começando por Jerusalém” (Lc 24, 46. 47). E como ousaram estes céus avançar com firmeza, como homens cheios de fraqueza, se tornaram céus, senão porque a palavra do Senhor criou os céus? Donde as ovelhas no meio de lobos, hauriram tanta força a não ser porque do sopro de sua boca lhes veio toda a fortaleza? Disse o Senhor: “Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos” (Mt 10, 16). Ó Senhor, cheio de misericórdia! Certamente assim ages para encheres a terra da tua misericórdia. Eis que os lobos vos prenderão e vos entregarão e conduzirão à presença de governadores por causa do meu nome. Armai-vos. Com a vossa força? Longe disso. “Não vos preocupeis nem como haveis de falar. Não sereis vós a falar, mas o Espírito do vosso Pai é que falará por vós” (Mt 10, 19. 20). Isto realizou-se. Os Apóstolos foram enviados, sofreram angústias. “Se nos mantivermos firmes, reinaremos com Ele” (2 Tm 2, 12). Tudo isso se realizou. Celebramos a memória dos mártires que eram destas ovelhas enviadas para o meio de lobos. Uma só ovelha aprisionada venceu tantos lobos, e a ovelha morta encheu o lugar de outras ovelhas. Agora, porém, por causa do que padeceram aqueles que abriram as fileiras, o nome de Cristo foi glorificado.

Vs. 7. 8. 9: Visto que agora a restante água salgada do mar não ousa enfurecer-se contra os cristãos, vede a continuação: “Ele juntou as águas do mar como numa represa” (7 a). No entanto, a amargura continua a mesma. Odeiam, detestam. Mas se o furor era então manifesto, agora é oculto. Avance, pois, a Igreja, caminha. Vamos ardorosos pelos caminhos das boas obras. E se aparecerem as angústias das tentações onde não esperávamos, compreendamos que o Senhor age assim para nosso ensinamento, a fim de sacudir nossa enganosa segurança, baseada nas coisas temporais, e dirigir-nos para o seu reino, pondo nossos desejos em seu lugar. Tais desejos nascem das tribulações que nos afectam daqui e dali. Levemos ao ouvido do Senhor sons afinados, como de trombetas dúcteis. Igualmente o coração cristão batido com os golpes das tribulações tende para Deus.

Prossegue o salmo: “E guardou as torrentes do Abismo nos seus depósitos” (7 b). Reservatórios de Deus são os seus segredos. Ele conhece o coração de todos. Sabe o que dar por certo tempo, de onde tirá-lo, quanto tempo há-de conceder aos maus contra os bons, mas para julgar os maus e educar os bons. Faça-se, por conseguinte, o que segue: “A terra inteira tema ao Senhor” (8 a). Ele, de facto, tem para teu ensinamento reservatórios do abismo, educando-te para o tesouro dos céus. Em vista disto, volta ao temor, tu que já andavas seguro de ti. Exulte a terra, mas tema. Exulte! Porquê? Porque da misericórdia do Senhor a terra está cheia. Tema! “Servi o Senhor com temor, prestai-Lhe homenagem com tremor” (Sl 2, 11).

Vs. 8. 9: “A terra inteira tema ao Senhor, tremam diante dele os habitantes do mundo (8 a b)”. “Tremam diante dele os habitantes do mundo”. Uma fera se enfurece? Teme a Deus. Uma serpente prepara o bote? Teme a Deus. Um homem te odeia? Teme a Deus. Toda a criatura está subordinada àquele a quem deves temer. “Porque Ele disse e tudo foi feito, Ele ordenou e tudo foi criado” (9). Para que o homem não se entregasse ao temor de qualquer outra coisa, e afastando-se do temor de Deus abandonasse o Criador, adorando a criatura, confirmou-nos no temor de Deus. Por que hás-de ter medo de alguma coisa terrestre ou celeste, ou marítima? “Ele disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado”. Quando aquele que disse e tudo foi feito, ordenou e tudo foi criado, manda, as coisas movem-se, e quando manda, elas param. Igualmente a malícia dos homens pode ter proveniente dela mesma, desejo de prejudicar, mas não o poder, se Ele não o der. “Não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13, 1). Há cobiça, que não provém de Deus. Mas como a cobiça a ninguém prejudica se Ele não permitir “não há autoridade que não venha de Deus”. Por isso o homem-Deus, ao comparecer perante um homem disse: “Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto” (Jo 19, 11).

O próprio diabo, ousou acaso tirar uma só ovelhinha do santo homem Job, sem ter antes dito a Deus: Dá o poder. O diabo queria mas Deus não permitia. Quando Deus permitiu ele pôde. Por isso bem instruído o próprio Job não disse, como costumamos relembrar: O Senhor deu o diabo tirou, mas: “O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; Bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21). A Escritura ordena que fora dele não temais a ninguém: “Porque Ele disse e tudo foi feito, Ele ordenou e tudo foi criado” (9 a b).

V. 10: “O Senhor desfez os planos das nações, frustrou os projectos dos povos” (10 a b). Quando os reis disseram: Tiremo-los da terra; se o fizermos extinguir-se-à o nome de cristãos; sejam mortos, torturados, sofram tais e tais tormentos. Disseram palavras como estas, e no meio deles cresceu a Igreja. “Frustrou os projectos dos povos” (10 b).

V. 11: “Só o plano do Senhor permanece para sempre, e os desígnios do Seu coração, por todas as idades”. (11 a b). Não penseis, irmãos, que disse: “os desígnios do coração” (11), como se Deus se assentasse para pensar o que fazer, e procurasse conselho para fazer ou não fazer alguma coisa. Que demora pode existir na deliberação daquele Verbo que é um só e tudo abrange? Quais são os pensamentos de seu coração e quais os desígnios do Senhor que permanecem eternamente? Foi contra quais desígnios que: “Se amotinam as nações e os povos fazem planos insensatos” (Sl 2, 1)? Efectivamente, quando o Senhor frustrou os pensamentos dos povos e reprova os planos dos príncipes. O conselho do Senhor permanece eternamente, senão porque nos escolheu de antemão e nos predestinou (Ef 1, 4. 5)? Quem pode anular a predestinação de Deus? Ele nos viu antes da criação do mundo, fez-nos, corrigiu-nos, enviou-nos seus mensageiros, redimiu-nos.

V. 12: Qual o significado de tudo isso? “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor, o povo que Ele escolheu para sua herança” (12 a b). Todos querem ser felizes, porém, sê-lo-ão apenas os que se resolverem a ser justos. Procura saber o que deves ter para ser feliz. Serás de facto melhor sendo feliz do que sendo infeliz. Não é possível que o pior te faça melhor. És homem; pior do que tu é tudo o que desejas para ser feliz. Ouro, prata ou qualquer bem material que ambicionas adquirir, possuir, usufruir são inferiores a ti. De facto, é melhor ser feliz do que ser infeliz. Queres melhorar; e procuras, insistes em buscar neste intuito o que é pior do que tu. Queres tornar-te melhor. Eu sei, todos sabemos, todos queremos. Procura o que é melhor do que tu, a fim de te tornares melhor.

Encontra-se na alma o que procuras. Queres ser feliz: procura o melhor em tua própria alma. És composto de dois elementos: a alma e o corpo; dos dois o melhor chama-se alma. O melhor pode fazer teu corpo melhor, porque o corpo está sujeito à alma. Sendo ela justa, posteriormente será imortal também o teu corpo. Pela iluminação da alma, o corpo merece a incorrupção. Mas, o que é a tua alma? Atenção. Não aconteça que desprezando tua alma, considerando-a algo de vil e abjecto, vás atrás de bens insignificantes para fazê-la feliz. Na tua alma acha-se a imagem de Deus; a mente humana a contém. Recebeu-a, mas inclinando-se para o pecado a empalideceu. Quem a formara veio reformá-la; porque foi pelo Verbo que foram feitas todas as coisas, e pelo Verbo se imprimiu esta imagem. Veio o próprio Verbo, conforme diz o Apóstolo: “Deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade” (Rm 12, 2). Resta apenas que procures o que há de melhor do que tua alma; porque quando tua natureza for perfeita, igualar-se-á aos anjos. Acima só o Criador. Eleva-te até Ele. Não digas é demais para mim. Talvez seja mais difícil obteres o ouro que ambicionas. Quando quiseres, porém, terás a Deus, porque antes que o quisesses veio a ti e chamou-te. Quem tudo te concedeu, que te fez para existires, que dá aos teus companheiros mesmo se forem maus, o Sol, a chuva, os frutos, a vida, a saúde e tantas consolações, guarda para ti alguma coisa, exclusivamente para ti. O que reserva para ti senão a si mesmo? Pede outra coisa, se encontrares melhor. Deus reserva para se dar a ti. Avaro, porque ambicionas o céu e a terra? Melhor é o Criador do céu e da terra. Hás-de vê-lo e possuí-lo. Porque te esforças para obter aquela quinta e passando por ela dizes: como é feliz quem a possui!... Assim falam muitos que passam por ela. É o tilintar da cobiça, da maldade; mas não cobices nada que pertença ao teu próximo (Dt 5, 21). Somente assim sereis felizes: um bem maior do que vós, vos tornará melhores. Diria Deus que te fez é melhor do que tu. Ama-O, apossa-te dele. Quando O quiseres, tê-lo-ás gratuitamente.

“Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (12 a). De quem Ele não é Deus? Efectivamente, não é de todos de igual modo. É mais nosso, que vivemos dele como de um pão nosso. Será temerário fazer de Deus nossa posse, sendo Ele o Senhor e o Criador? Não é temeridade; é desejo afectuoso e doce esperança. Diga a alma, diga com inteira segurança: Tu és o meu Deus, que dizes à nossa alma: “Eu sou a tua salvação” (Sl 34, 3). Ouve o que a Escritura afirma sobre a Sabedoria: “É árvore da Vida para aqueles que a alcançam” (Pr 3, 18). Eis que o teu Senhor se fez para ti um báculo. É apoio seguro porque Ele não sucumbe. Afirma pois com certeza, que é tua “propriedade”. Fala com segurança, ama com segurança, espera com segurança. Sejam tuas também as palavras do salmo: “Senhor minha herança” (Sl 15, 5). Seremos, pois, felizes, possuindo a Deus. Como? Nós O possuiremos, Ele nos possuirá. Possui e é possuído. Nós O cultuamos como Deus e Senhor; Ele nos cultiva como terra sua. Mas quem nos indica que Ele nos cultiva? Aquele que disse: “Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor” (Jo 15, 1), Para sermos dele devemos labutar.

V. 13: “Do céu, o Senhor contempla e vê toda a humanidade” (13). Pois, toda a humanidade é herança de Deus. E disse: “Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira (Jo 1, 48). Viu-o porque dele se compadeceu. Há um olhar compadecido, que não é olhar de quem castiga. Este olhar relativamente aos pecados é de aversão. O pecador não quer que eles sejam vistos e diz: “Desvia o teu rosto dos meus pecados” (Sl 50, 11). Não quer que seja visto aquilo que deseja ver perdoado. Mas não te verá? Daí dizer outro salmo: “Não desvies de mim o teu rosto” (Sl 26, 9). Aparta o rosto dos teus pecados mas não de ti.

V. 14: “Do trono em que está sentado, observa todos os habitantes da terra” (14 a b). Ele nos viu através dos apóstolos, viu-nos através dos pregadores da verdade, viu-nos através dos anjos que nos enviou. Todos eles são sua casa, todos sua habitação. São seus os daquela feliz nação, que tem o Senhor por seu Deus; aquele povo que o Senhor escolheu por herança, porque Ele está em todas as terras e não só numa parte delas.

V. 15: “Ele formou o coração de cada homem” (15 a). Com as mãos de sua graça, com as mãos de sua misericórdia formou os corações, plasmou um a um dando-nos individualmente um coração, sem, contudo, romper a unidade. Como os membros foram formados um a um, têm suas funções peculiares e, no entanto, vivem na unidade do Corpo. A mão faz o que o olho não faz. Todos, porém, agem na unidade. Apesar de serem diversas as funções elas não se opõem. Assim também no Corpo de Cristo cada um dos homens, como membros, têm dons próprios. “Porventura são todos apóstolos? São todos profetas? São todos mestres? Possuem todos o dom das curas? Todos falam línguas? Todos as interpretam” (1 Cor 12, 29. 30). Porquê? Porque fez os seus corações um a um. Como são diversas as funções dos nossos membros, mas a saúde é uma só, assim entre os membros de Cristo, há dons diferenciados, mas a Caridade é um só.

“E discerne todas as suas obras” (15 b). O que quer dizer: “discerne”? Vê o que há de mais secreto e íntimo. Reza o salmo: “Atende a minha súplica” (Sl 5, 2). Não há necessidade de vozes para um pedido atingir os ouvidos de Deus. Sua visão oculta chama-se inteligência. O homem vê as obras pelo movimento do corpo, Deus, porém, vê no coração. Se dois homens derem esmolas aos pobres, um procurando a recompensa celeste, e o outro o louvor dos homens, tu vês idêntica acção nos dois, Deus, porém, percebe duas acções diferentes.

V. 16: “A vitória do rei não está num grande exército” (16 a). Junto de Deus todos se salvam, todos em Deus. Seja Deus tua esperança, seja Deus tua força, seja Deus tua firmeza, tua súplica seja Ele, teu louvor seja Ele, o fim em que repouses seja Ele, o auxílio nos trabalhos seja Ele.

“Nem o guerreiro se salva pela sua força” (16 b). Gigante é o soberbo que se orgulha contra Deus, como sendo algo em si mesmo. Sua força extraordinária não o salva.

Vs. 17. 18: “A garantia da vitória não está no cavalo; não é ele que salva pela sua grande força” (17 a b).

Em figura, cavalo também pode representar qualquer grandeza deste século, qualquer honra à qual ascendas orgulhosamente. Quanto mais subires, julgas falsamente que te achas não só no alto, mas ainda em maior segurança. Não sabes que pode jogar-te no chão, e que será tanto mais grave escorregar quanto mais no alto estiveres. E como há-de alguém se livrar? Não pela força, não pelo vigor, não pela honra, não pela glória, não por meio do cavalo. Como, então? Para onde ir? Onde encontrar a salvação? Não procures muito tempo, nem muito longe.

“Os olhos do Senhor velam pelos seus fiéis, por aqueles que esperam na sua bondade” (18 a b), e não em seus méritos, não no seu valor, não na sua força, não no seu cavalo, e sim na sua misericórdia.

V. 19: “Para os libertar da morte” (19 a). O Senhor promete a vida eterna. Mas, o que acontece na nossa peregrinação? Acaso abandona? Vê a continuação do salmo: E a fim de “0s manter vivos no tempo da fome” (19 b). Tempo de fome é agora; depois será o da saciedade. Enquanto dura o tempo da fome temos de tolerar, suportar, perseverar até ao fim.

V. 20: Mas para suportarmos a peregrinação enquanto dura a fome e esperamos alimento no caminho para não desfalecermos, o que nos é imposto ou como devemos viver? “Nossa alma espera no Senhor” (20 a). Confiante há-de esperar naquele que promete com misericórdia e dá com misericórdia e verazmente. E se não perseverarmos na paciência? Absolutamente: vamos perseverar, porque “Ele é o nosso amparo e o nosso escudo” (20 b). Ajuda na luta, protege no calor, não te abandona; tolera por tua vez, persevera. “Aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 24, 13).

V. 21: E o que te sucederá, se permaneceres paciente até ao fim? Qual a recompensa da tua tolerância? Porque sofres durante tanto tempo padecimentos tão duros? “Nele se alegra o nosso coração e em seu nome santo confiamos” (21). Espera aqui, para te alegrares lá; sofre aqui fome e sede para te banqueteares lá.

V. 22: Ele nos exortou a tudo, encheu-nos da alegria da esperança, propôs-nos o que devemos amar. Depois disto vem uma oração breve e salutar: “Venha sobre nós, Senhor, o teu amor” (22 a). Qual o merecimento? “Pois depositamos em Ti a nossa confiança” (22 b). Não hesitemos em exigir a misericórdia do Senhor nosso Deus; não se aborrecerá ao ser rogado, nem se perturbará de forma alguma, como a alguém a quem pedes o que ele não tem. Queres saber como Deus te dará misericórdia? Pratica a caridade.

SALMO 34 (33)

Catequese I

Versículo 1: Feliz o homem que espera no Senhor. Confiemos todos que ele há-de abrir a quem bater à porta (Mt 7, 7). Disse: “Levantar-se-à, devido à impertinência dele, e dar-lhe-à tudo quanto precisar” (Lc 11, 8). David é figura de Cristo, como Golias é figura do diabo. David prostrou Golias e Cristo matou o diabo. O que quer dizer: Cristo matou o diabo? A humildade matou a soberba. Se me refiro a Cristo, meus irmãos, é a maior recomendação da humildade; porque pela soberba nos afastáramos de Deus. Não podíamos voltar a Ele senão pela humildade, nem tínhamos modelo a imitar. Os homens mortais estavam inchados de soberba. E se existiam humildes de espírito, como os profetas e os patriarcas, o género humano, em geral, desdenhava imitá-los. No intuito de que o homem não desdenhasse imitar os humildes, Deus fez-se humilde, para que assim, a soberba do género humano não desdenhasse seguir as pegadas de Deus.

Os sacrifícios judaicos, segundo a ordem da Aarão, consistiam em vítimas de animais. Ainda não existia o sacrifício do Corpo e do Sangue do Senhor. Um segundo a ordem de Aarão, e outro segundo a ordem de Melquisedec. Pois está escrito: “O Senhor jurou e não voltará atrás: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 109, 4). A quem se referem as palavras: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec?”. A Nosso Senhor Jesus Cristo. Quem era Melquisedec? Rei de Salém. Salém era uma cidade, que depois, conforme os doutos, tomou o nome de Jerusalém. Antes que ali reinassem os judeus, morava ali um sacerdote, chamado Melquisedec, que o Génesis conta ter sido sacerdote do Deus altíssimo. Tão grande era Melquisedec que abençoou Abraão. Ofereceu pão e vinho e abençoou Abraão; este pagou-lhe dízimos. Foi abolido, portanto, o sacrifício de Aarão, e começou a existir o sacrifício segundo a ordem de Melquisedec. Nosso Senhor Jesus Cristo quis que a nossa salvação viesse por meio do seu corpo e do seu sangue. E de onde vem que nos entregou o seu corpo e o seu sangue? Da sua humildade. Se não fosse humilde, não seria comido nem bebido. Considera a sua grandeza: “No princípio havia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). Eis o alimento eterno; mas dele comem os anjos, comem as virtudes supremas, comem os espíritos celestes, comem e se nutrem, e íntegro permanece o Verbo que os sacia e alegra. Que homem tem acesso a este alimento? Onde está o coração idóneo para tal manjar? Era preciso que naquela mesa o alimento se transformasse em leite para servir aos pequeninos…

Como, porém, a comida se torna leite? Como a comida se torna leite, a não ser que passe pelo corpo materno? Pois é a mãe que faz tal coisa. A criança nutre-se do que come a mãe. Como, então, a Sabedoria de Deus nos alimentou do próprio pão? “O Verbo fez-se homem e veio habitar entre nós” (Jo 1, 14).

Vede, pois, a humildade, uma vez que o homem comeu o pão dos anjos, conforme está escrito: “Deu-lhes o pão do Céu. O homem comeu o pão dos anjos”, isto é, nutriu-se o homem daquele Verbo eterno, igual ao Pai e que alimente os anjos. “Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus”. Os anjos dele se saciam, mas Ele “esvaziou-se a si mesmo” e para que o homem comesse pão dos anjos, Ele “tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2, 6-8). Assim, da cruz nos foi entregue o novo sacrifício, a carne e o sangue do Senhor. Pois, o Reino de Deus Pai é antes a Igreja que o povo judaico; mas segundo a carne, Reino do Pai era o povo de Israel.

“O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David” (Lc 1, 32), conforme diz o Evangelho. Pode demonstrar-se que David é pai do Senhor, segundo a carne; segundo a divindade, porém, Cristo não é filho, mas Senhor de David. Os judeus conhecem a Cristo segundo a carne, mas não O conhecem segundo a divindade. Por isso, Cristo lhe fez a pergunta: “«Que pensais vós do Messias? De quem é filho?»” Responderam-lhe: «De David.» Disse-lhes Ele: «Como é, então, que David, sob a influência do Espírito, lhe chama Senhor, dizendo: “Disse o Senhor ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita, até que Eu ponha os teus inimigos por estrado a teus pés”? Ora, se David lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” E ninguém soube responder-lhe palavra”. (Mt 22, 42-46).

Os judeus apegados ao sacrifício segundo a ordem de Araão, não mantiveram o sacrifício segundo a ordem de Melquisedec e perderam a Cristo. Começaram a tê-lo os gentios. Poucos o reconheceram, poucos efectivamente em comparação dos que se perderam, porque o povo era numeroso. Está escrito: “Só o resto se salvará” (Rm 9, 27). Não te prendas à letra pois a letra mata. Aspira pelo espírito que vivifica. O sentido espiritual salva o fiel.

Procurai recordar-vos do Evangelho. Nosso Senhor Jesus Cristo fala a respeito do seu corpo: “Se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós porque a Minha carne é uma verdadeira comida e o Meu sangue, uma verdadeira bebida” (Jo 6, 53. 55). Os discípulos que O seguiam, assustaram-se e ficaram horrorizados com esta palavra. E não puderam suportá-lo, dizendo de certo modo: Como é? Erro, por conseguinte, ignorância, estultice. Não houve compreensão e onde não há compreensão acham-se as trevas da ignorância. Ele alterara a expressão do seu rosto e parecia-lhes furor e loucura que Ele quisesse dar aos homens sua carne para comer e seu sangue para beber. Também David pareceu louco, quando disse o próprio Abimelec: Porque trouxeste este louco à minha presença? Não parece uma loucura dizer: comei a minha carne e bebei o meu sangue?

Disseram pois os discípulos: “Como pode Ele dar a Sua carne a comer” (Jo 6, 52)? Julgavam que o Senhor estava louco, sem saber o que dizia e ter perdido o juízo. Ele, porém, sabia o que dizia.

Imitemos a humildade de Jesus, para ferirmos Golias e, agarrando-nos a Cristo, vencermos o orgulho. Chegaremos a ver a face, segundo está escrito: “Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal qual Ele é” (1 Jo 3, 2). Quando “veremos”. Quando passarem as realidades presentes. Diz o Apóstolo Paulo: “Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois, veremos face a face” (1 Cor 13, 12). Antes de vermos o Verbo, face a face, como vêem os anjos, ainda temos de estar às portas da cidade, junto das quais o Senhor se prostrou humilhando-Se até à morte.



SALMO 34 (33)

Catequese II

Versículo 1: Abimelec significa: reino de meu pai. Abimelec representa o reino dos judeus. De Cristo se pode dizer: reino de meu pai, porque seu pai carnal foi David; o reino de David era o seu povo judaico.

V. 2: “Em todo o tempo bendirei o Senhor; o seu louvor estará sempre nos meus lábios” (2 a b). Fala Cristo, fala igualmente o cristão, porque sendo cristão está no Corpo de Cristo. Cristo se fez homem para ser possível ao cristão fazer-se anjo e dizer: “Bendirei o Senhor”. Quando: “Quando te concede um benefício?” “Quando abundam os bens materiais?” Não. “Em todo o tempo”. Bendiz quando Deus os concede; bendiz quando Deus os retira. Porque Ele dá, Ele retira; mas não se retira daquele que bendiz: Quem é que bendiz o Senhor em todo o tempo, senão o humilde de coração? Nosso Senhor ensinou esta humildade por meio do seu próprio corpo e sangue. Ao entregar seu corpo e sangue, recomenda sua humildade.

“Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca da sabedoria. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus. Portanto, o que é tido como loucura de Deus é mais sábio que os homens, o que é tido como fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1 Cor 1, 22-26).

Sê humilde, se queres bendizer o Senhor em todo o tempo e seu louvor estar sempre na tua boca.

V. 3: Por que alguém pode bendizer o Senhor em todo o tempo? Porque é humilde. O que é ser humilde? Não querer louvor para si mesmo. Querer ser louvado em si mesmo, é ser soberbo. Para poderes ser humilde repete a palavra: “A minha alma gloria-se no Senhor! Que os humildes saibam e se alegrem” (3 a b). O Senhor quer ter um jumento manso. Sê jumento do Senhor, isto é, sê manso. Ele monta em ti, toma as rédeas; não temas tropeçar, ou cair num precipício. Por ti mesmo és fraco, mas olha bem quem te freia. És um potro, mas carregas a Cristo. Pois Ele entrou na cidade de Jerusalém, montado num jumentinho, e era um jumento manso. É possível que o povo não goste de ser comparado ao jumentinho montado pelo Senhor. E alguns, soberbos e orgulhosos podem dizer-me: Ele nos chamou de asnos; não sejas como o cavalo e o jumento sem inteligência, de vez em quando levantam a cabeça e ferozmente sacodem de cima o cavaleiro, até que se submetam e carreguem seu dono. Tu, porém, antes que o freio machuque tua boca sê manso e carrega o teu Senhor. Não, não queiras ser louvado, por causa de ti mesmo, mas louve-te o que te monta.

V. 4: “Enaltecei comigo o Senhor” (4 a). Quem é este que nos convida a engrandecer com ele o Senhor? Todos os que pertencem ao Corpo de Cristo, devem aplicar-se em glorificar com ele ao Senhor. É certo que ama o Senhor, seja ele quem for. E como o ama? Sem invejar a quem o acompanha neste amor.

A sabedoria de Deus, vê-la-emos face a face, e todos a veremos. A todos ela se revela, íntegra e casta. Ela é a verdade. É Deus. Alguma vez ouvistes dizer, irmãos, que possa nosso Deus sofrer mudança?

A verdade é supereminente, é o Verbo de Deus, é a Sabedoria de Deus, pela qual tudo foi feito. Tem quem a ame. Não quero celebrar sozinho o Senhor, não quero amar sozinho, não quero ser o único a abraçá-lo. A Sabedoria é de tal amplidão que todas as almas podem abraçá-la e dela fruir.

Excitai em vós o amor, irmãos e clamai uns aos outros: “Enaltecei comigo o Senhor” (4 a). Tende esse fervor. Se amais a Deus, inflamai no amor de Deus os que vos são unidos, e todos que moram em vossa casa. “Exultemos juntos o seu nome” (4 b). Isto é, juntos, portanto, arrastai, quantos puderdes, exortando, levando, rogando, disputando, argumentando mansamente, suavemente.

Atraí o amor. Se celebram as grandezas do Senhor, façam-no em uníssono. Clamemos, portanto, irmãos, gemamos quando pudermos, dizendo: “Enaltecei comigo o Senhor; exaltemos juntos o seu nome” (4 a b): chama-lhes a Igreja. A voz é da Igreja, clamando por aqueles que se separam. Por que romperam com ela? Por orgulho. Cristo, porém, ensina a humildade, entregando Seu corpo e Seu sangue. Disto se trata no texto deste salmo e se celebra. Nele se recomenda o corpo e sangue de Cristo, recomendando a humildade que Cristo Se dignou aceitar por nós.

V. 5: “Procurei o Senhor e Ele respondeu-me” (5 a). Onde dá? Interiormente. Ali oras, ali és ouvido, ali te tornas feliz. Rezaste, foste ouvido, ficaste feliz; e quem está perto de ti não o percebe. Tudo se faz ocultamente, conforme diz o Senhor, no Evangelho: “Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, que vê o oculto e há-de recompensar-te.” (Mt 6, 6). Entras no teu quarto, entras em teu coração. Purifica teu coração para poderes voltar a ele de boamente; “Felizes os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Retira dali a imundície dos maus desejos, limpa a mácula da avareza, tira a mancha das superstições, arranca os sacrilégios e os maus pensamentos; afasta os ódios, já não digo contra um amigo, mas contra um inimigo. Tira tudo isso. Entra em teu coração, e lá terás alegria. Ao começares a te alegrar ali, a própria pureza de teu coração te deleitará e fará rezar. Entra, limpa tudo, levanta os olhos para Deus, e logo Ele te ouvirá. Clama estas palavras: “Procurei o Senhor e Ele respondeu-me, livrou-me de todos os meus temores” (5). Porque ao seres iluminado, quando começares aí a ter uma boa consciência, restam as tribulações, porque resta sempre alguma fraqueza, até que a morte seja tragada pela vitória, e que este ser mortal se revista de imortalidade. (1 Cor 15, 54). Forçoso é seres flagelado neste mundo; é necessário sofreres tentações e sugestões. Deus purificará tudo, livar-te-à de toda a tribulação. Procura-O. Não busques coisa alguma fora do senhor, mas procura o próprio Senhor, e Ele te ouvirá, e enquanto ainda falares, dirá: “Aqui estou”. O que significa “Aqui estou”? Estou presente. O que queres, que desejas de mim? Seja o que for que te der, vale menos do que eu; possui a mim mesmo, goza da minha presença. Abraça-me. Ainda não podes fazê-lo totalmente,. Toca-me pela fé, e unir-te-ás a mim (diz-te Deus), e tirarei teus fardos, para aderires internamente a mim, quando o que é mortal em ti Eu o converter a imortal, a fim de seres igual aos anjos do Céu (Mt 22, 30), e sempre que contemplares a minha face e te alegrares e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria (Jo 16, 22).

V. 6: “Aqueles que o contemplam ficam radiantes” (6 a). Um cristão espiritual nos convida a contemplarmos nosso Senhor Jesus Cristo. Mas acerquemo-nos dele e seremos iluminados. Não façamos como os judeus. Aproximaram-se para crucificá-lo. Nós, porém, acerquemo-nos para receber o seu corpo e o seu sangue. Eles, perto do crucificado, ficaram nas trevas; nós comendo e bebendo o crucificado, somos iluminados.

“Aqueles que o contemplam ficam radiantes” (6 a). Trata-se dos gentios. Cristo estava crucificado no meio dos judeus e os gentios estavam ausentes. Contemplaram os que estavam nas trevas, e cegos recuperaram a visão. Como se acercaram os gentios? Seguindo pela fé, anelando de coração, correndo por meio da caridade. Deves ter dois pés, não ser coxo. Quais são os dois pés? Os dois preceitos do amor, o de Deus e o do próximo. “Não ficarão de semblante abatido” (6 b). Cobre-se de confusão apenas o rosto do soberbo. Porquê? Porque prefere ser orgulhoso. Mas não temas. Acerca-te dele e não te envergonharás. Seja o que sofras do inimigo, para os homens ele será superior a ti, mas junto de Deus és superior a ele. Como os judeus se consideravam superiores quando esbofeteavam o Senhor, quando Lhe cuspiam no rosto e Ele parecia inferior; mas Ele não se cobria de confusão. Pois, essa luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina (Jo 1, 9). A Luz não pôde ser confundida.

Vs. 7. 8: Pode objectar alguém: como dele me aproximarei? Onerando de tantos males, tantos pecadores, a consciência me acusa de numerosos crimes. Como ousarei aproximar-me de Deus? Como? Humilhando-me pela penitência. Mas, respondes, tenho vergonha de fazer penitência. Acerca-te dele e serás iluminado e teu rosto não se cobrirá de vergonha. Se o medo da vergonha te impede de fazer penitência, será ela, todavia, que te dará acesso a Deus. Atesta o profeta: “Quando um pobre invoca o Senhor, Ele atende-o” (7 a). E como me tornarei pobre para clamar? Mesmo que possuas alguns bens não presumas de tuas forças. Entende que és indigente, compreende que és pobre enquanto não tiveres aquele que te enriquece. Como, porém, o Senhor o atendeu? Responde o salmista: “e liberta-o das suas angústias” (7 b). “O anjo do Senhor protege os que temem e livra-os dos perigos” (8 a b). Quem é este anjo do Senhor que acampará ao redor dos que o temem e os salvará? O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo profeticamente é denominado - anjo do grande conselho.

V. 9: “Saboreai e vede como o Senhor é bom” (9 a). Dizia o Senhor: “Se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6, 53. 54). “ «Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer» ”? (Jo 6, 52). Se ignoras, experimenta, e vê como o Senhor é suave. “Feliz o homem que nele confia”! (9 b). Quem não confia no Senhor é infeliz. Quem é que não confia no Senhor? Quem espera em si mesmo. Algumas vezes, o que é pior, observai, os homens não confiam em si, mas em outros.

Vs. 10. 11: “Temei ao Senhor, vós que lhe estais consagrados, pois nada falta aos que temem” (10). Muitos não querem temer o Senhor, para não padecerem fome. Se alguém lhes diz: “Não deveis cometer fraude”, respondem: “E de onde vou tirar a minha subsistência?” Deus sustentava-te enquanto O desprezavas, e há-de abandonar-te quando o temes? Presta bem atenção e não digas: Aquele homem é rico e eu sou pobre. Eu temo o Senhor e ele não teme. Vede a continuação do salmo: “Os ricos empobrecem e passam fome mas os que procuram o Senhor nenhum bem há-de faltar” (11).

Todos os dias vou à Igreja, todos os dias faço genuflexões, todos os dias procuro o Senhor e nada possuo. Este não procurou o Senhor e morreu no meio de tantos bens! O laço de escândalo sufoca quem pensa deste modo. Procura na terra alimento mortal e não busca a verdadeira recompensa nos céus. Mete a cabeça no laço do diabo, que lhe aperta a garganta. O diabo agarra-o para fazer o mal, e imitar aquele rico que vê morrer em tal fartura. Não entendas deste modo. Então, como devo entender? Trata-se de bens espirituais. Mas, onde estão eles? Não se vêem com os olhos, e sim com o coração. Quem ama vê. Não vejo a justiça. Ela não consiste em ouro, nem em prata. Se fosse ouro verias. Como é do âmbito da fé não vês. Repleto de bens espirituais, serás pobre. Foi rico aquele que tinha um leito de marfim; e tu és pobre, cujo cubículo do coração está cheio de gemas das virtudes, da justiça, da verdade, da caridade, da fé, da paciência, da tolerância! Apresenta as riquezas que tens, e compara-as às dos ricos. Se encontrasses fé à venda quanto darias por ela? E Deus te deu de graça ainda assim és ingrato. Aqueles ricos são necessitados, passam penúria.

V. 12: “Vinde, meus filhos, escutai-me: vou ensinar-vos o temor do Senhor (12 a b), julgai que é o próprio nosso Senhor Jesus Cristo que diz: “Vinde, meus filhos, escutai-me” (12 a). Ouçamo-Lo todos juntos; ouvi-O através da nossa palavra, Ele quer nos ensinar. Ensine-nos, pois, abramos os ouvidos, abramos o coração. Não abramos apenas os ouvidos carnais, fechando os do coração; mas conforme o Senhor disse no Evangelho: “Quem tem ouvidos, oiça” (Mt 11, 15).

V. 13: “Qual é o homem que não ama a vida e não deseja longos dias de prosperidade?” (13 a b). Cada um responderá. Eu? Ou há algum de vós que não ama a vida, isto é, não quer a vida e não deseja ver dias felizes? Não murmurais cada dia; cada dia fica tudo pior; nossos pais tiveram dias mais alegres, dias melhores. Oh! Se interrogares teus pais, de igual modo te hão-de murmurar da sua época. Ó Deus concede-nos dias felizes! Não procure aqui na terra, dias felizes. É bom o que Ele deseja, mas não procura este bem onde ele se encontra. Buscas ter dias felizes. Procuremos juntos, mas não aqui. Contudo, nossos pais os tiveram. Enganais-vos! Todos aqui passaram por trabalhos. Lede as Escrituras. Deus quis que fossem escritas para nossa consolação. Na época de Elias houve fome e os nossos pais a sofreram. Os dias do século são sempre maus, os de Deus, sempre bons. Abraão teve dias bons, mas no íntimo do coração. Teve maus dias quando por causa da fome mudou de região e procurava alimento. Teve Paulo dias bons, quando dizia: “Fome e sede, frio e nudez”? (2 Cor 11, 27). Mas não se aborreçam os servos, o próprio Senhor não teve dias felizes neste mundo: ultrajes, injúrias, cruz e muitos males.

V. 14: Não murmure o cristão. Veja as pegadas que há-de seguir. Mas, se quer ter dias felizes, ouça o Senhor a ensinar e a chamar. Qual é o teu desejo? Vida e dias felizes. Ouve, e pratica: “ «Nesse caso, guarda a tua língua do mal» ” (14 a). Age desta maneira. Não quero, diz o infeliz. Não quero preservar a minha língua do mal, mas quero a vida e dias felizes.

Tais são os homens que querem praticar o mal, jurar falso, blasfemar contra Deus, murmurar, defraudar, embriagar-se, entrar em litígios, cometer adultério, usar amuletos, sortilégios e, no entanto, ter dias felizes. Seja-lhes dito: Não podes, praticando o mal, querer boa paga. Se és injusto também Deus o será? Que farei então? O que queres? Quero a vida e dias felizes. “Nesse caso, guarda a tua língua do mal e os teus lábios das palavras mentirosas” (14 a b).

V. 15: Mas, o que quer dizer: “Desvia-te do mal” (15 a)? Não basta não prejudicar, não matar, não roubar, não cometer adultério, não ser fraudulento, não levantar falso testemunho, mas ainda: “E faz o bem” (15 a). “Procura a paz e segue-a” (15 b). Não te disse terás a paz aqui na terra; procura-a e segue-a. Aonde hei-de segui-la? Onde ela te precedeu. Pois, o Senhor é a nossa paz. Ele ressuscitou e subiu ao Céu. Ficareis cientes de que na terra buscamos a paz, mas só a conseguiremos no fim. Tenhamo-la, contudo, em parte aqui, para merecermos possuí-la totalmente ali. Por aqui em parte? Sejamos concordes aqui, amemos o próximo como a nós mesmos. Ama o irmão como a ti mesmo, tem paz com ele. Mas não é possível que não existam algumas rixas, como houve entre irmãos, entre santos, entre Barnabé e Paulo. Todavia, que não matem a concórdia, não extingam a caridade. Pois até contra ti mesmo, resistes, por vezes e, no entanto, não te odiaste a ti mesmo. Vede como discute consigo mesmo certo justo, dizendo: “Porque estás triste, minha alma e te perturbas? Confia em Deus: ainda o hei-de louvar” (Sl 42, 5). Portanto, procurai a paz, irmãos.

Diz o Senhor: “Anunciei-vos estas coisas para que, em mim, tenhais a paz”. (Jo 16, 33). Não vos prometo a paz nesta terra. Nesta vida não há paz verdadeira, nem tranquilidade. Temos a promessa da alegria da imortalidade e a companhia dos anjos. Mas se alguém não a procura aqui, não a terá quando ela vier.

V. 16: “Os olhos do Senhor estão voltados para os justos” (16 a). Não temas. Trabalha. Os olhos do Senhor estão inclinados para ti. “E os seus ouvidos estão atentos ao teu clamor” (16 b).

O que queres mais? Fica firme apenas no seu caminho, e te ouvirá nas tuas aflições. Mas Ele é médico e ainda tens algo de putrefacto, não sei bem o quê. Gritas. Mas Ele continua cortando. E não tira a mão enquanto não cortar quanto lhe parece necessário. Deus é cheio de caridade; parece não ouvir; para curar e poupar eternamente.

V. 17: “A ira do Senhor volta-se contra os malfeitores, para apagar da terra a sua memória” (17 a b).

V. 18: “Os justos clamaram e o Senhor atendeu-os e livrou-os das suas angústias” (18). Justos eram os três jovens; da fornalha clamaram pelo Senhor e no meio dos seus louvores o fogo perdeu o calor. A chama não pode aproximar-se e queimar os jovens inocentes e justos, que louvavam o Senhor, que os livrou da chama. Dirá alguém: Estes sim, são justos que foram ouvidos. Eu clamei e não me livrou. Ou não sou justo, ou não faço o que me ordena, ou talvez não me vê. Não temas. Apenas faz o que Ele ordena. E se não te livrar corporalmente, livrará espiritualmente. Aquele que retirou da fornalha os três jovens, acaso tirou da chama os Macabeus (2 Mac 7)? O Deus dos três jovens não é o mesmo Deus dos Macabeus? A uns livrou, a outros não. Ou antes livrou a ambos; só que aos Macabeus não livrou do mesmo modo. Libertou Pedro, quando um anjo foi para junto dele na prisão e lhe disse: “ «Ergue-te depressa!» ”. E logo as correntes caíram-lhe das mãos; Pedro saiu e seguiu-o (Act 12, 7. 9). Acaso Pedro perdera a justiça, quando não foi libertado da cruz? Então Deus não o libertou? Libertou também nesta ocasião. Talvez tenha sido melhor ouvido então do que anteriormente, porque verdadeiramente o livrou de todas as tribulações. Pois, foi libertado antes, mas quantos males sofreu depois? Da segunda vez, enviou-o para onde nada mais de mal poderia padecer.

Vs. 19. 20: “O Senhor está perto dos corações contritos e salva os espíritos abatidos” (19 a b). Deus é altíssimo, seja humilde o cristão. Se quiser que o Deus altíssimo se avizinhe dele, seja humilde. Tu te elevas e não O tocas; humilhas-te e Ele desce até onde estás.

“Muitas são as tribulações do justo” (20 a). Se são injustos, têm poucas tribulações; se são justos, passam por muitas. Mas depois de poucas aflições, ou nenhumas, os injustos sofrem tribulação eterna, da qual nunca se livrarão. Os justos, porém, depois de muitas aflições, chegam à paz eterna, onde jamais sofrerão mal algum.

“Muitas são as tribulações do justo, mas o Senhor o livra de todas elas”. (20 a b).

V. 21: “Ele guarda todos os seus ossos nem um só será quebrado” (21 a b).

Como na nossa carne os ossos dão firmeza, assim no coração cristão a fé dá fortaleza. A paciência, proveniente da fé, são os ossos no sentido interior. São ossos que não se quebram. Isso foi realizado no Senhor, porque quando pendia da cruz, expirou antes que os soldados chegassem, e como O encontraram já exânime, não quiseram quebrar-Lhe as pernas, para se cumprirem as Escrituras. Se virmos, irmãos, alguém de vida santa sofrer tribulações, de sorte que seus ossos sejam quebrados, não digamos: Este não é justo, porque o Senhor prometeu aos justos: “Ele guarda todos os seus ossos nem um só será quebrado” (21). Queres ver que há aí uma referência a outra espécie de ossos, por nós denominada fundamento da fé, isto é, a paciência e tolerância em todas as tribulações? Estes são os ossos que não se quebram. Ouvi, e observai na própria paixão do Senhor o que digo. Os soldados que vierem não quebraram os ossos do Senhor, e quebraram os dos ladrões. Foram quebrados os ossos do ladrão que blasfemou e do ladrão que acreditou. O Senhor responder-te-á: Guardei de modo especial, pois o fundamento da sua fé não pôde ser quebrado por aqueles golpes que lhe quebraram as pernas.

V. 22: “O ímpio há-de perecer na sua maldade” (22 a). Interiormente é péssima a morte que te parece boa. Vês, exteriormente, deitado no leito; acaso vês interiormente arrebatado para a geena.

Ouvi, irmãos, e examinai o Evangelho. Não havia dois homens neste mundo, um rico, vestido de linho fino e de púrpura, que fazia todos os dias esplêndidos banquetes; e outro, pobre, que jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do rico; Aconteceu que o pobre morreu (era justo aquele pobre), e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Que espécie de morte teve aquele rico? Como foram as exéquias? E, todavia, achando-se em tormentos no inferno, desejou que o pobre desprezado molhasse a ponta do dedo e refrescasse a língua e não o conseguiu (Lc 16, 19-25). Aprendei, portanto, o que significa: “O ímpio há-de perecer na sua maldade” (22 a), não interrogueis os leitos revestidos de preciosas alfaias, o corpo revestido de ricas vestes, mas interrogai o Evangelho, e mostrará à vossa fé a alma do rico atormentada.

Vs. 22. 23: Mas como muitas são as espécies de pecadores, e é difícil não ser pecador, ou talvez impossível na vida, logo o salmista acrescentou quais os pecadores que têm péssima morte. “Os que odeiam o justo serão castigados” (22 b). Qual o justo a não ser Nosso Senhor Jesus Cristo, que É também a propiciação pelos nossos pecados? Aqueles que O odeiam têm uma morte péssima, porque morrerão em seus pecados e por Ele não se reconciliam com nosso Deus.

“O Senhor resgata a vida dos Seus servos” (23 a). Conforme é a alma assim a morte é péssima ou óptima; e não de acordo com as injúrias ou honras por que passam os corpos e que os homens vêem. “Os que nele confiam não serão condenados” (23 b). A justiça do homem mede-se do seguinte modo: por mais que progrida a vida mortal, uma vez que não se pode passar sem pecado, ao menos não falhe a confiança depositada naquele em quem se acha a remissão dos delitos. Ámen.



SALMO 35 (34)

Catequese I

Versículo 1: Intitula-se o salmo: “De David”. David significa: de mão forte ou desejável. O salmo é dedicado, pois, àquele que tem mão forte e é desejável, que venceu a nossa morte, e nos prometeu a vida. Mão forte, porque venceu a nossa morte. Desejável porque prometeu a vida eterna. A Ele, portanto, cante o salmo; a Ele cante nosso coração, a Ele cante dignamente a nossa língua. Se, contudo, Ele se dignar dar-nos a possibilidade de cantá-lo. Ninguém pode cantar-lhe dignamente, se dele mesmo não receber os cânticos. O cântico foi composto por seu profeta, sob inspiração do Espírito. Este salmo invoca a Deus contra os inimigos, nas tribulações deste mundo. Efectivamente trata-se de Cristo, ora aflito na Cabeça, ora atribulado no Corpo. Pela tribulação, contudo, Ele dá a todos os seus membros a vida eterna, que se tornou desejável por meio da sua promessa.

Vs. 1. 2: “Julga, Senhor aqueles que me acusam, combate os que me combatem” (1 b). Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós” (Rm 8, 31)? Como Deus nos concede isto?

“Torna a armadura e o escudo e vem em meu auxílio” (2 a b). E qual é o escudo? Quais as armas? “Senhor”, disse em outro salmo quem fala aqui; “abençoas o justo e o envolves num escudo de graça” (Sl 5, 13). As suas armas, com as quais fere os inimigos, se progredirmos no bem, seremos também nós.

Como nós, para nos munirmos, recebemos dele, assim Ele se arma connosco. Mas Ele Se arma com aqueles que Ele fez; nós nos armamos com os dons do Nosso Criador.

Em certa passagem diz o Apóstolo que nossas armas são o escudo da fé, o capacete da salvação, e a espada do espírito, isto é, a palavra de Deus. (Ef 6, 16. 17). Ele nos muniu de tais armas, cuja referência ouvistes; são louváveis e invictas, insuperáveis, esplêndidas; espirituais e invisíveis, porque combatemos com inimigos invisíveis. Armamo-nos com a fé naquelas coisas que não vemos e prostramos inimigos que não vemos.

A mesma fé, portanto, pode ser armadura e escudo; escudo, porque apara os dardos do inimigo e os repele; armadura porque impede que sejas trespassado. Estas são as nossas armas. Quais são as de Deus? Lemos em certa passagem: “Livras a minha alma da espada, e das garras dos cães, a minha vida” (Sl 21, 21). Tomas a minha alma, e debelas meus inimigos. E o que é a nossa alma, apesar de esplêndida? O que pode se Deus não a segurar e lutar com ela. Pois por melhor que seja a espada, se não houver um guerreiro!... Afirmei que a alma do justo é espada de Deus; ainda se pode chamar a alma do justo de sede de Deus; a alma do justo é sede de sabedoria (Sb 7, 7). Portanto, o que Deus quer, Ele faz de nossa alma. Como está em suas mãos, Ele usa-a como lhe apraz.

Erga-se, portanto, empunhe as armas, venha em nosso socorro. Diz-se também em outra passagem: “Desperta, Senhor, porque dormes?” (Sl 43, 24). Quando se diz que Ele dorme, somos nós que dormimos, e quando se fala que Ele se levanta somos nós que acordamos. O Senhor dormia no barco. Teu barco é teu coração. Jesus é o barco, é a fé no coração. Se te lembras de tua fé, teu coração não hesita; se te esquecer da tua fé, Cristo dorme; cuidado com o naufrágio. Se está a dormir, acorda-O. Diz-Lhe: “ «Senhor, salva-nos, que perecemos para que Ele fale imperiosamente aos ventos, e faça-se uma grande calma no teu coração» ” (Mt 8, 24). Afastem-se todas as tentações, ou certamente nada poderão, quando Cristo, isto é, a tua fé, estiver vigilante em teu coração.

V. 3: “Empunha a lança e a espada contra os que me perseguem” (3 a). Quais são os teus perseguidores? A respeito deles admoesta-nos o Apóstolo: “Porque não é contra seres humanos que temos de lutar mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6, 12). Ao dizer Ele: “Dominadores do mundo” (referia-se, efectivamente ao diabo e a seus anjos. Não me entendam mal os homens e pensem que este mundo é governado pelo diabo e seus demónios. Mas como se dá o nome de mundo tanto ao universo visível, quanto aos pecadores, e aos que amam o mundo, a respeito dos quais se declarou: “mas o mundo não o reconhece” (Jo 1. 10), e de novo: “O mundo inteiro está sob o poder do maligno” (1 Jo 5, 19). De quais trevas o diabo e seus anjos são dominadores? De todos os infiéis, de todos os iníquos, acerca dos quais foi afirmado: “A luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam” (Jo 1. 5).

Não queres ser súbdito do diabo? Emigra para a Luz. E como emigrarás para a Luz, se o Senhor não desembainha a espada e te livrar dos teus inimigos e perseguidores? Superabundem os justos, e a espada será desembainhada, e o caminho será fechado aos inimigos. O Apóstolo nos adverte a vivermos na justiça e diz em consequência: “Para que os adversários fiquem confundidos por não terem nada de mal a dizer sobre nós” (Tt 2, 8).

E onde estão os justos? Ou o que dizem os inimigos que nos perseguem? Principalmente aqueles inimigos que atacam invisivelmente sugerem ao coração humano que Deus não é nosso auxílio. Isto, pois, é sugerido. Contra essas vozes especialmente temos de vigiar, conforme se demonstra em outro salmo. “Senhor, são tantos os meus adversários! São tantos os que se levantam contra mim! Muitos dizem a meu respeito: “ «Nem Deus o poderá salvar!» (Sl 3, 2. 3). Contra essas palavras o que se diz aqui? “Diz à minha alma: «Eu sou a tua salvação» ” (3 b). Ao dizeres a minha alma: “Eu sou a tua salvação” ela viverá na justiça; e não procurarei outro auxílio senão a ti.

V. 4: Como continua o salmista? “Sejam confundidos e envergonhados os que procuram tirar-me a vida” (4 a). Buscam-na para perdê-la. Oxalá procurem para seu bem. Em outro salmo, o salmista acusa os homens, porque não havia quem procurasse a sua alma: “Olha à minha volta e vê: não há quem se interesse por mim” (Sl 141, 5).

Quem será que declara: “Não há quem se interesse por mim?” Será aquele, de quem foi predito com tanta antecedência: “Trespassaram as minhas mãos e os meus pés; posso contar todos os meus ossos. Repartem entre si as minhas vestes e sorteiam a minha túnica” (Sl 21, 17-19)? Tudo isso já se realizava diante de seus olhos, e não havia quem procurasse sua alma. Invoquemos, portanto, irmão; diga à nossa alma: “Eu sou a tua salvação” (3 b), e abra-lhe os ouvidos para ouvir: “Eu sou a tua salvação”. O Senhor fala mas alguns fazem-se surdos, e ouvem de preferência, na sua tribulação, os inimigos perseguidos. Se falta alguma coisa, se a alma está angustiada, na indigência dos bens temporais, não raro procura auxílio junto dos demónios, quer consultar os possessos, procura os agoureiros. Quero ouvir ao Senhor que me diz: “Sou a tua salvação”. Não hei-de procurar outra salvação, fora do Senhor, que fez o Céu e a Terra. Até mesmo nas dificuldades temporais, Deus socorre por meio dos homens; Ele mesmo é tua salvação. Se é por um anjo que Deus socorre, Ele mesmo é a tua salvação. Tudo lhe está sujeito e ora daqui, ora dali, Ele atende às tuas necessidades da vida temporal; mas a vida eterna, só Ele a dá, de si mesmo. Quando te achas no meio de privações, falta-te o que queres, mas está presente aquele a quem buscas. Procura aquele que nunca pode faltar.

A vida inteira e tudo o que usares nesta vida devem ser para ti como uma hospedaria para um viajante, e não como uma casa para seu morador. Lembra-te de que percorreste uma parte do caminho e resta ainda um pouco. Paraste para refazer as forças, não para perdê-las. A Deus pertencem todas as coisas e que estão em seu poder não somente os bens eternos prometidos para o futuro, mas ainda os temporais que na terra Ele dá a quem quer. Deus, portanto, no intuito de mostrar tudo isso, distribuiu os tempos do Antigo e do Novo Testamento. No Antigo Testamento há promessas de bens temporais; no Novo, do Reino dos Céus. Em ambos existem muitos preceitos de como adorar a Deus e de como viver honestamente. Ouviram nos seus corações a palavra do senhor: “Eu sou a tua salvação”. Se Ele o é relativamente aos bens eternos, porque não o seria para os temporais? Demonstrou-o Deus na causa de Job, aquele santo varão. O próprio diabo não tem o poder de tirá-los, se não o receber da potestade suprema. Pôde acusar, mas pôde condenar? Pôde tirar-lhe algo, mesmo uma unha, arrancar um fio de cabelo, se Deus não lhe tivesse dito: “Estende tua mão” (Job 1, 11)? O que significa: Estende a tua mão? Dá o poder. Recebeu.

“Fujam, humilhados, os que premeditam a minha desgraça” (4 b).

O Senhor diz: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5, 44). Há duas espécies de vencidos, vencidos de duas maneiras: vencidos para se converterem a Cristo, ou vencidos para serem condenados. Aqui vemos explicadas as duas espécies, embora de um modo obscuro, que exibe bom entendedor.

Vs. 5. 6: E os outros? Porquanto nem todos são vencidos e se convertem e crêem. Muitos permanecem pertinazes. A respeito destes como continua o salmo? “Mas os ímpios não são assim. São como a palha que o vento leva” (Sl 1, 4). O vento é a tentação, a poeira é o iníquo. Quando vier a tentação a poeira é carregada; não permanece, não resiste. “Sejam como a palha levada pelo vento, quando o anjo do Senhor os expulsar. Seja tenebroso e escorregadio o seu caminho, quando o anjo do Senhor os perseguir” (5. 6). Caminho horrível! Quem não tem horror das trevas? Quem não se acautela de um chão escorregadio? São estes dois males os maiores castigos dos homens: trevas, ignorância; terreno escorregadio, luxúria. “Seja tenebroso e escorregadio o seu caminho, quando o anjo do Senhor os perseguir” (6).

O salmista lhes diz esses acontecimentos futuros, não desejou que sucedessem. Embora o profeta os tenha predito, sob inspiração do Espírito de Deus, como Deus os realiza, por juízo determinado, bom, justo, santo, tranquilo, sem ira, nem zelo amargo, nem inimizade, mas por justiça a punir os vícios, todavia é profecia.

Vs. 7. 8: De onde provém todos estes males? Qual o motivo? Ouve qual a razão: “Porque, sem motivo, puseram armadilhas contra mim; sem razão cavaram um fosso para eu nele cair” (7). Voltai a atenção para a nossa Cabeça. Assim agiram os judeus; armaram-lhe um laço traiçoeiro para perdê-lo. Para quem armaram o laço traiçoeiro? Para aquele que via os corações dos que o escondiam. “Sem motivo puseram armadilha contra mim” (7 a). Que quer dizer: “Sem motivo”? Nenhum mal lhes fiz, em nada prejudiquei: “Sem razão cavaram um fosso para eu nele cair” (7 b). Qual o sentido de “Sem razão”? Proferindo mentiras sem provas. “Venha sobre eles uma ruína imprevista” (8 a). Magnífica paga, nada de mais justo. “O ímpio é presa das suas próprias iniquidades” (Pr 5, 22). São enganados com aquilo mesmo que empregaram para enganar. Sofrerão dano naquilo mesmo que empregaram para enganar. Sofrerão dano naquilo mesmo com que se empenharam em prejudicar a outrem. Não há malvado que primeiro não se prejudique a si mesmo. Sabei que a malícia é como o fogo. O próprio facho que chegas ao fogo não arde primeiro para poder incendiar alguma coisa? A malícia, portanto, que parte de ti, a quem devasta primeiro senão a ti mesmo? Afirmo que a tua malícia pode não prejudicar a outrem; mas é impossível que não prejudique a ti mesmo. O que fazes àquele a quem queres causar dano? Se perversamente consentir no mal que lhe propões, aquele a quem procuras prejudicar será atingido não pela tua malícia, mas pela sua própria; se, porém, ele não tiver malícia e com o coração puro se submeter àquele que lhe disse: “Eu sou a tua salvação”, atacas externamente, mas não vences o homem interior; tua malícia, contudo, procede do teu íntimo, e primeiro aniquila-te. Estás pútrido interiormente e de lá saiu este verme, que nada deixou inteiro lá dentro. “Sejam apanhados na rede que me prepararam e caiam no fosso que me abriram” (8 b c).

V. 9: Assim sucede aos malvados que me querem prejudicar; E a mim o que advém? “Então, a minha alma exultará no Senhor” (9 a). Que lhe dissera: “Eu sou a tua salvação”. O que me será dado de melhor do que o próprio Deus? Deus me ama; Deus te ama. Eis o que Ele propôs: “Pedi e ser-vos-á dado; procurai, e encontrais; batei e hão-de abrir-vos” (Mt 7, 7). Ao dizer-te Deus: Pede o que queres, o que hás-de pedir? Aguça a mente, põe à mostra a tua avareza, estende e alarga a tua ambição quanto possível. Não foi um qualquer, e sim Deus omnipotente que disse: Pede o que queres. Se és amante de propriedades hás-de desejar a terra inteira. E que farás quando possuíres toda a terra? Hás-de pedir o mar. Vá avante ainda, pede também o ar; amplia a tua ambição até ao céu, e declara teus o Sol, a Lua, as estrelas, porque o Criador de tudo isso disse: Pede o que quiseres. No entanto, nada encontrarás de mais caro, nada acharás de melhor do que o Criador de todas as coisas. Pede aquele que fez, e nele e por meio dele terás tudo o que Ele fez. Todas as coisas são caras, porque todas são belas; mas o que há de mais belo do que Ele? E nada Ele quer dar com tanto empenho como a si mesmo. Amando-O disse uma alma: “A herança que me toca é pôr em prática as tuas ordens” (Sl 118, 57), isto é, tu és a minha herança. Escolham os outros o que querem possuir, façam das coisas a sua herança; minha parte és tu, escolhi-te para minha herança. E ainda: “Senhor, minha herança e meu cálice” (Sl 15, 5). Ele te possua, para que tu possuas; serás sua herdade, a sua casa. Possuirá para ter bem, serás possuído para tua utilidade. Por acaso podes ser-lhe útil em algum ponto? Não; pois “Digo ao Senhor: «Tu és o meu Deus, és o meu bem e nada existe acima de ti»” (Sl 15, 2). “Então, a minha alma exultará no Senhor, e se alegrará com a sua salvação” (9). Cristo é a salvação que vem de Deus. “Porque meus olhos viram a Salvação” (Lc 2, 30).

V. 10: “Com todo o meu ser, eu direi: «Quem pode como Tu, Senhor?» ” (10 a). Os injustos falam-me de prazeres, mas não me esqueci dos teus preceitos. (Sl 118, 83).

Mostram-se-me bens terrenos, mas Tu és o Criador da terra. Há muitos seres invisíveis, melhores ainda. Mas talvez também aqui se me diga: Venera os anjos, adora-os. E responderei. Criaste também os anjos. Nada seriam os anjos, se não te vissem. É melhor possuir-te na companhia deles do que cair, fora de ti adorando-os. Ó Corpo de Cristo, Santa Igreja, digam: “Com todo o meu ser, eu direi: «Quem pode como Tu, Senhor?» ” (10 a).

Dos justos foi dito: “Ele guarda todos os seus ossos, nem um só será quebrado” (Sl 33, 21). Quantos ossos dos justos foram quebrados nas perseguições! Enfim, o justo vive da fé, e Cristo justifica o ímpio. Como, porém, justifica, a não ser que creia e confesse? Porque: “É que acreditar de coração leva a obter a justiça, e confessar com a boca leva a obter a salvação (Rm 10, 10).

Por isso, aquele ladrão, apesar de ter sido levado do roubo ao juiz, do juiz à cruz, foi, contudo na própria cruz justificado: acreditou de coração, e confessou com a boca. “«Quem pode como Tu, Senhor, livrar o desvalido do prepotente, o miserável e o pobre, de quem os explora»” (10 b)? Quem arranca a não ser aquele que tem mão forte? Mais forte fora o diabo para prender-te, porque venceu devido ao teu consentimento. Mas, o que fez o de mão forte? “Como pode alguém entrar em casa de um homem forte e apoderar-se dos seus haveres, sem primeiro o amarrar” (Mt 12, 29). O Senhor, por seu magnífico e sagrado poder amarrou o diabo, desembainhando a espada para fechar-lhe o caminho e libertar o pobre e o indigente, que não tinham quem os ajudasse (Sl 71, 12). Qual o teu auxílio senão o Senhor a quem dizes: “Ó Senhor, meu refúgio e meu libertador” (Sl 18, 15)? Se quiseres presumir de tuas forças, cairás da altura onde te levou a tua presunção. Se contas com as forças de outrem, ele procurará dominar, não ajudar. O único a ser procurado é aquele que redimiu, libertou, e deu seu sangue para comprar os servos, que transformou em irmãos seus.



SALMO 35 (34)

Catequese II

Ao ouvires referência a Cristo não separes o esposo da esposa, e subentende aquele grande sacramento: “Serão os dois uma só carne” (Ef 5, 31). Se são dois numa só carne, porque não numa só voz? A Cabeça não passou por provações que o Corpo também não suporte; ou até, a Cabeça padeceu para servir de exemplo ao Corpo. Pois, o Senhor sofreu voluntariamente e nós coagidos. Sofreu por comiseração e nós, por nossa condição mortal. Daí vem que a sua paixão voluntária é a conclusão de que necessitamos. Quando sofremos tais coisas, olhem para a nossa Cabeça a fim de que advertidos por seu exemplo, digamos a nós mesmos: se para Ele foi assim, porque não para nós. Por mais que o inimigo se tenha enfurecido, pôde ir até à morte corporal; nem mesmo pôde aniquilar o Corpo do Senhor, porque Ele ressuscitou ao terceiro dia. No fim do mundo realizar-se-á em nós o que nele se fez ao terceiro dia.

Faz-se mister distinguir a causa do sofrimento e não a pena em si. Um criminoso pode sofrer castigo semelhante ao do mártir, mas por motivos diferentes. Pregados na cruz estavam três homens (Lc 23, 33): um Salvador, o segundo a salvar, o terceiro a ser condenado; a pena era igual para todos, mas a causa ímpar.

Vs. 11. 12: Profira, portanto, nossa Cabeça: “Levantaram-se contra mim falsos testemunhos e pediram-me contas de coisas que eu ignorava” (11). Digamos nós à nossa Cabeça: Senhor, o que é que ignoravas? Ou que, então, não sabias? Ele ignorava o pecado; não conhecia o pecado, porque não o cometia e não porque não o julgasse: Se não credes que Eu ignorava as iniquidades, está no Evangelho, porque eu ignoro os próprios iníquos, aos quais direi no fim do mundo: “Nunca vos conheci; Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade” (Mt 7, 23). “Nunca vos conheci”. O que mais ignorava Cristo do que blasfemar? Sobre isto era interrogado pelos perseguidores, e como dizia a verdade julgaram que Ele havia blasfemado. (Mt 26, 65). Por quem? Por aqueles dos quais se diz a seguir: “Pagaram-me o bem com o mal. Fiquei desamparado!” (12). Eu trouxe a fecundidade, e eles retribuíam com a desolação.

Trouxe a vida e eles a morte. O Senhor maldisse a esterilidade da árvore, onde não encontrou o fruto que procurava (Mt 21, 19). Havia folhas, mas não frutos; palavras, não acções. Pregas que não se deve roubar e roubas; dizes que não se deve cometer adultério e o cometes. (Rm 2, 21-22).

Tais eram os que interrogavam a Cristo sobre o que Ele ignorava.

V. 13: “Eu, porém, quando eles adoeciam, vestia-me como um penitente, humilhava a minha alma com jejuns e a minha oração era contínua” (13 a b c d). Aprendemos, porque pertencemos ao Corpo de Cristo, somos os membros de Cristo (1 Cor 12, 27). Somos advertidos de que nas nossas tribulações, não devemos cogitar como responder aos nossos inimigos, e sim como tornaremos a Deus propício, pela oração, e principalmente, como não sermos vencidos pela tentação. Não há maior, nem melhor modo de agir durante a tribulação do que afastar-se do ruído exterior e rezar em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te (Mt 6, 6); ali invocar a Deus, humilhar-se na confissão dos pecados, exaltar e louvar a Deus que corrige e consola; é a atitude que convém de todo o modo manter. Efectivamente, isto refere-se ao Corpo, isto é, a nós; mas o que encontramos de semelhante em nosso Senhor Jesus Cristo? Jejuou quando os judeus ainda não o perseguiam, mas o diabo tentava-O (Mt 4, 1). “Deus, ao enviar o seu próprio Filho, em carne idêntica ao do pecado e como sacrifício de expiação pelo pecado, condenou o pecado na carne. (Rm 8, 3). Nem no próprio corpo havia pecado algum. O Senhor tinha apenas a semelhança da carne pecadora, porque a morte entrou pelo pecado de um só homem (Rm 5, 12), e na verdade aquele corpo era mortal. Pois, se não fosse mortal não morreria; se não morresse, não ressurgiria; se não ressurgisse, não nos mostraria um exemplo de vida eterna. A morte foi dominada. O Senhor se fez pecado, pois assumiu a carne da mesma massa que merecera a morte por causa do pecado.

Maria, filha de Adão, morreu por causa do pecado, Adão morreu por causa do pecado, e a carne do Senhor, provinda de Maria, morreu para apagar os pecados. “Eu, porém, quando eles adoeciam, vestia-me como um penitente, humilhava a minha alma com jejuns” (13 a b c). O que será o jejum? Cristo queria comer quando procurava fruto da figueira, e teria comido se encontrasse (Mc 11, 13)? Queria Cristo beber, quando disse à mulher samaritana: “ «Dá-me de beber» ” (Jo 4, 7)? Ao dizer na cruz: “«Tenho sede» ” (Jo 19, 28)? De que tinha Cristo fome, de que tinha sede senão das nossas boas obras? Quanto àqueles que O crucificavam e perseguiam, uma vez que neles não encontrara qualquer obra, Ele jejuava. Desolação para a sua alma. Os apóstolos haviam fugido e escondido no meio da multidão. Finalmente, vendo-O morto, todos haviam perdido a esperança de salvação. Encontrou-os sem esperança, depois da ressurreição, e falou-lhes, encontrando-os pesarosos e chorosos, sem nada mais esperar. Pois, nestas condições estavam alguns que falaram com Ele, quando este lhes perguntou: “Que palavras são essas que trocais”? Falavam a respeito dele. Responderam: “Tu és o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias, o que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras, como os sumos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram, para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse Ele O que viria redimir Israel”. (Lc 24, 18-21). O Senhor teria permanecido em grande jejum se não reconfortasse aqueles que iria ingerir. Pois, Ele os refez, consolou, confirmou, e converteu-os em seu Corpo. Foi, portanto, também este o Jejum de nosso Senhor. “E a minha oração era contínua” (13 d). Ouvimos a oração na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Sl 21, 2). Mas também nós estávamos ali. Pois, quando o Pai O abandonou, se Ele nunca se afastou do Pai? Lemos também que Jesus orou sozinho no monte, que passou a noite em oração (Mt 14, 23, Lc 6, 12); mesmo no tempo da paixão. “Pois foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, em Cristo” (2 Cor 5, 19). Tinha em si mesmo aquele a quem havia de suplicar; não estava longe, porque Ele próprio dissera: “Estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14, 10). Mas como a oração compete mais ao homem, enquanto Verbo não suplica, mas é Ele que atende a oração. Não procura socorro, mas com o Pai ajuda a todos.

V. 14: “Comportava-me como se fosse um amigo ou um irmão, andava triste e deprimido” (14 a b). Quando nos alegramos na oração, quando nossa mente se pacifica, não devido à prosperidade deste mundo, mas por causa da luz da verdade, quem merece tal luz, sabe o que digo, vê, reconhece ser conforme foi dito: “Comportava-me como se fosse um amigo ou um irmão” (14 a). Então a alma agrada a Deus estando junto dele. “É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos” (Act 17, 28). “Como quem chora a morte da mãe” (14 c). Quem chora, senão quem deseja e não tem? E por vezes em um só homem acontece as duas coisas, uma vez aproxima-se e outra afasta-se. Aproxima-se pela luz da verdade, vai para longe pela névoa da carne. Não é localmente que nos aproximamos de Deus que está em toda a parte. Nem localmente dele nos afastamos. Aproximar-se dele é tornar-se-lhe semelhante; afastar-se é fazer-se dissemelhante. Pedro não se acercou do Senhor ao dizer: “ «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo» ” (Mt 16, 16)? Depois, Ele mesmo se distanciou ao dizer: “ «Deus te livre, Senhor! Isso nunca há-de acontecer» ” (Mt 16, 22)! Finalmente, o que disse o Senhor que ficava perto daquele que se acusava? “ «És feliz, Simão, filho de Jonas» ”. Quando estava longe e diferente disse: “ «Afasta-te Satanás, porque os teus pensamentos não são de Deus mas dos homens» ” (Mt 16, 17-23).

V. 15: “Mas eles alegravam-se da minha desgraça” (15 a). Eles estavam alegres e Eu triste. Porém, agora ouvimos o Evangelho: “Bem-aventurados os que choram”. Se são bem-aventurados os que choram, serão infelizes os que se riem”.

V. 16: “Rodeavam-me e escarneciam; rangiam os dentes contra mim” (16), a saber, zombaram de mim, insultaram-me. Trata-se da Cabeça e do Corpo. Pois, como sucedeu ao Senhor na cruz, assim aconteceu ao Corpo em todas as perseguições passadas; nem faltam também agora as perseguições deles. Onde quer que se encontre um cristão, costuma-se atacar, atormentar, zombar, chamá-lo de estúpido. Façam o que quiserem. Cristo está no Céu. Ele honrou seu suplício, já fixou sua cruz em todas as frontes. Permite que o ímpio ataque, mas não permite que fique encarniçado. Contudo, por aquilo que sua língua profere, entende-se o que tem no coração. “Rangeram os dentes contra mim” (16 b).

V. 17: “Senhor, até quando contemplarás tudo isto? Livra-me das feras; resgata a minha vida das garras desses leões” (17). Em nossa opinião Ele tarda. Isto é, quando veremos a vingança contra aqueles que nos insultam? Quando o juiz, vencido pelas importunações daquela viúva atenderá” (Lc 18, 3)? Nosso juiz, contudo, não difere por aborrecimento e sim por amor a nossa salvação, não por lhe ser impossível socorrer já, mas para que o número dos nossos possa completar-se, até ao fim.

V. 18: “Eu Te darei graças na solene assembleia, e te louvarei no meio da multidão” (18). Realiza-se, de facto, a confissão em toda a multidão, mas não em todos é louvado. Toda a multidão ouve a nossa confissão, mas o louvor de Deus não se encontra na multidão inteira. Nesta multidão toda, isto é, na Igreja, espalhada por toda a terra, há palha e trigo; a palha voa, o trigo permanece; por isso: “Te louvarei no meio da multidão” (18 b). No meio da multidão compacta, que o vento da tentação não carrega, Deus é louvado. Pois, no meio da palha é sempre blasfemado. Se alguém observar as palhas o que diz? Eis como vivem os cristãos, eis o que fazem, cumpre-se o que foi escrito: “de facto, o nome de Deus por vossa causa é blasfemado entre os gentios” (Is 52, 5); (Rm 2, 24).

Vs. 19. 20. 21: “Não se riam da minha desgraça os meus inimigos mentirosos” (19 a), “Os que me odeiam sem motivo” (19 c). Isto é, aqueles a quem não danifiquei. “Nem troquem olhares de escárnio” (19 b), maldosamente, os hipócritas, os fingidos. O que significa: “Nem troquem olhares de escárnio” (19 b). Mostram no rosto o que não trazem no coração. “Eles não falam de paz; até contra gente pacífica maquinam calúnias” (20). Aqueles leões procuram arrebatar e devorar; começavam com lisonjas, proferindo palavras de paz, mas com ira planejavam fraudes. Quais as palavras pacíficas? “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus, segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém. É lícito ou não pagar imposto a César” (Mt 22, 16-18)?

Diziam-me palavras de paz. E então? Tu não os conhecias e eles te enganavam? Ao contrário, o Senhor os conhecia e por isso respondeu:” «Porque me tentais hipócritas?» ” Depois escancararam a boca contra mim, clamando “Crucifica-O, crucifica-O!” (Lc 23, 21); e dizem à boca cheia contra mim: “ «Ah! Nós bem vimos o que fizeste» ” (21 b). Aqui, já insultando: «Profetiza, Messias quem te bateu» ” (Mt 26, 68). Como era simulada a paz deles, quando o experimentavam acerca da moeda do tributo, era igualmente injurioso o seu louvor. A saber: os teus feitos, os teus milagres. Se Ele é Cristo “desça da cruz e acreditaremos nele. Salvou outros e não pode salvar-se a si mesmo” (Mt 27, 42). O Senhor, porém, continuava sofrendo na cruz; não havia perdido o seu poder, mas demonstrava a sua sabedoria. Em que seria grandioso descer da cruz, se podia depois ressurgir do sepulcro? Era conveniente que ao ressuscitar aparecesse aos seus e não a eles, como um grande sinal, porque a ressurreição significa vida nova, e a vida nova seria conhecida dos amigos, não dos inimigos.

V. 22: “Tu, Senhor, também viste. Não fiques calado!” (22 a). Que sentido tem a frase: “Não fiques calado?” Julga. A respeito do Juízo, diz certa passagem:”Desde há muito tempo que guardo silêncio”, acaso sempre me calarei (Is 42, 14)?

E sobre as delongas do Juízo diz-se ao pecador: “Tens feito tudo isto. Poderei eu calar-me? Pensavas que Eu era igual a ti?” (Sl 49, 21). Cala-se quanto ao juízo, não relativamente aos mandamentos, à doutrina. De certo modo o profeta deseja este juízo e prediz: “Não fiques calado” (22 a), isto é, não calarás, necessariamente julgarás. “Senhor, não te afastes de mim” (22 b). Enquanto o juízo não chega, não te afastes de mim, conforme prometeste: “Sabei que estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28, 20)?

V. 23: “Desperta e levanta-te para me defenderes” (23 a). A que juízo? Porque estás atribulado, atormentado por trabalhos e dores? Mas muitos malvados não sofrem também estes males? A que juízo? Prossegue o salmista: “Meu Deus e meu Senhor defende a minha causa” (23 b). Ele não atende para meu castigo, mas em prol da minha causa, porque são: “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça” (Mt 5, 10). Esta causa é distinta. Pois a pena é semelhante para bons e maus. Por isso não é a pena que faz os mártires, mas a causa. Se a pena fizesse o mártir todas as cadeias arrastariam mártires. Acrescentou-se como importante a distinção: “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça”. Se a justiça não pudesse ter uma finalidade boa não diria o salmo: “Hei-de reduzir ao silêncio o que às ocultas, calunia o seu próximo” (Sl 100, 5). Enfim, um pai bom e justo não persegue um filho devasso. Persegue os seus vícios, não a ele mesmo.

V. 24: “Senhor, meu Deus, julga-me segundo a tua justiça” (24), isto é, conforme a minha causa. Não segundo a minha pena, julga-me.

Vs. 25. 26: “Que não digam para si mesmos: «estamos satisfeitos»” (25 a). Isto é: fizemos o que pudemos, matamos, afastamos. “Não digam”: Mostra que eles nada fizeram. “Nem possam dizer: «afinal devorámo-lo» ” (25 b). Daí declarem os mártires: “Se o Senhor não estivesse do nosso lado, ter-nos-iam engolido vivos”(Sl 123, 1. 3). O que quer dizer: “engolidos vivos”? Fariam com que passássemos para seu corpo. Absorves o que introduzes em teu corpo. O mundo quer-te absorver. Pedro recebeu tal ordem: “Mata e come” (Act 10, 13). Mata neles o que eles são, fá-los iguais a ti. “Sejam confundidos e envergonhados todos os que se alegram com o meu mal; cubram-se de confusão e de ignomínia os que são arrogantes para comigo” (26), para que os absorvamos, envergonhados e confusos.

Vs. 27. 28: E o que dizes tu Cabeça e membros? “Mas alegrem-se e exultem os que desejam que se me faça justiça” (27 a), que aderirem a meu Corpo, “e digam sem cessar: «O Senhor é grande. Ele quer o bem-estar do seu servo»” (27 b). “Então a minha língua proclamará a tua justiça; todos os dias cantará os teus louvores” (28). Qual a língua que aguenta o dia inteiro cantar o louvor de Deus? Sugiro um remédio para louvares a Deus o dia inteiro, se quiseres. Seja o que for que fizeres, fá-lo bem, e louvaste a Deus. Paraste de cantar um hino e sais para tomar uma refeição? Não te embriagues e louvaste a Deus? Vais embora para dormir? Não te levantes para fazer o mal e louvaste a Deus. Estás negociando. Não defraudes e louvaste a Deus. Preparaste com a inocência nas tuas obras a louvar a Deus o dia inteiro.



SALMO 36 (35)

Catequese

Versículo 2: “O ímpio tem a lei do pecado no coração. Para ele não há temor de Deus” (2). Não é um homem sozinho que fala, mas toda a espécie de homens iníquos, que lutam contra si mesmos, não entendem a fim de viverem bem, e isto, não porque não podem mas porque não querem. Uma coisa é quando alguém se esforça por entender algo, conforme a Escritura: “Porque o corpo corruptível é um peso para a alma, e esta tenda terrena oprime a mente cheia de cuidados” (Sb 9, 15); outra questão é só se o coração age de modo pernicioso contra si mesmo. Acontece isto quando os homens amam os seus pecados, e odeiam os preceitos de Deus. A palavra de Deus é o teu adversário, se és amigo da tua iniquidade, a palavra de Deus mostra-te amizade e opõe-se à tua iniquidade. Por tuas próprias forças nada podes; vem em auxílio aquele que te enviou sua palavra, e a iniquidade é vencida. Se a odiaste tu também, Deus perdoou, e estás livre.

Será necessário esforço para entender o seguinte: “Aquilo que não queres para ti, não o faças aos outros” (Tb 4, 15)? Quer dizer, não faças mal se não queres sofrer por causa de uma iniquidade; se não queres sofrer em consequência de um dolo e de insídias, não armes ciladas a outrem. Não querer entender isto é atribuível à tua vontade.

Acaso quem se propõe pecar, di-lo publicamente e não a si mesmo? Por que a si mesmo? Porque lá outro não vê. Deus vê. Mas como prossegue o salmista? “Para ele não há temor de Deus” (2 b). Tem diante dos olhos o temor de outros homens. Afasta-se das vistas humanas. Vai ao seu interior, e ninguém o vê. Ali planeia dolos e insídias e pecados. Acaso Deus ali não está presente? Mas não há temor de Deus, diante de seus olhos.

V. 3: “Ilude-se a si próprio” (3 a). De quem? Daquele cujo temor não existe diante dos olhos de quem agiu dolorosamente. “Para não descobrir meu odiar a seu pecado.” (3 b). Agiu de modo a não ser descoberta uma iniquidade. Existem homens que parecem esforçar-se na procura da iniquidade, mas têm medo de encontrá-la; porque se a encontrarem, alguém pode dizer-lhes: Renuncia a ela: fizeste isto sem saber, praticaste a iniquidade na ignorância, por isso Deus perdoa.

Agora conhece-la; abandona-a para ser facilmente perdoada a tua ignorância e poderes dizer a Deus livremente: “Não recordes os meus pecados da juventude e os meus delitos” (Sl 24, 7). Procura o mal, mas teme encontrá-lo; é dolo. Quando é que o homem pode dizer: Não sabia que era pecado? Quando, ao ver que é pecado, desistir de fazê-lo, porque o praticava por ignorância. Agora muitos agem dolosamente, não agem sinceramente para encontrar e evitar a iniquidade. Diz-lhe: não faças isto. E aquele que agia dolosamente para encontrar, que já encontrou e não evitou, o que diz? Quantos agem assim? Deus há-de condenar todos esses? Ou responde: Se Deus não quisesse isto, os homens que cometem os pecados continuariam a viver? Vês que agias dolosamente para descobrir a tua iniquidade? Pois, se tivesses agido sinceramente e não dolosamente, já a terias descoberto e detestado. Agora descobriste e defendes: Portanto, agias dolosamente quando procuravas.

V. 4: “As palavras da sua boca são falsas e mentirosas, deixou de ser honesto e de fazer o bem”. (4). Vedes que se trata da vontade. Há homens que querem entender e não podem; existem outros que não querem entender e por isso não entendem.

V. 5: “No seu leito maquina a iniquidade”. (5 a). Por que disse: “no leito”? Leito é o nosso coração; ali sofremos o tumulto de uma consciência pesada, ali repousamos quando a consciência está tranquila. Este é o leito no qual nosso Senhor Jesus Cristo nos ordena rezar: “Entra no teu quarto, e fechada a porta” (Mt 6, 6). O que significa: “fechada a porta”? Não esperes de Deus coisas exteriores, mas interiores, “teu Pai que vê o oculto, há-de recompensar-te”. Quem é que não fecha a porta? Quem suplica a Deus os bens deste mundo como coisa importante? O que quer dizer fechar a porta? Pedir a Deus o que só Deus sabe como há-de conceder-te. Qual o bem que te faz fechar a porta e rezar? “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não pressentiu” (1 Cor 2, 9). Deus sabe o que há-de dar-te. Quando? Quando o Senhor se revelar, quando aparecer o juiz. O que há de mais claro do que a palavra que há-de proferir para os que estão à direita? “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino preparado desde a criação do mundo” (Mt 25, 34). Ouvirão estas palavras os da esquerda, e gemerão com remorsos inúteis, porque enquanto viviam não quiseram praticar uma penitência frutuosa. Como gemerão? Pois, não é mais possível a correcção: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25, 41). Os justos se alegrarão ao ouvirem a boa palavra: “Não tem receio das más notícias; o seu coração está firme e confiante no Senhor; por isso nada teme” (Sl 111, 7. 8). Qual palavra má? A que os maus ouvirão: “Ide para o suplício eterno”. Deus pode fazer imensamente mais do que pedimos ou imaginamos (Ef 3, 20).

“Anda pelo mau caminho” (5 b). Que sentido tem a expressão “anda”? Perseverou no pecado. Daí se dizer acerca de um homem piedoso e bom: “Não segue o conselho dos ímpios” (Sl 1, 1), “e não quer renunciar ao mal” (5 c). O pecado habita, de facto, no corpo mortal. Diz o Apóstolo: “Que o pecado não reine mais no vosso corpo mortal, de tal modo que obedeçais às vossas paixões” (Rm 6, 12). Quando começará a não existir mais? Quando “este corpo corruptível se tiver revestido de incorruptibilidade, e este corpo mortal se tiver revestido de imortalidade” (1 Cor 15, 53). Até que isto se realize, haverá o deleite da iniquidade no corpo; maior, é o deleite aprazível da palavra da sabedoria, do preceito de Deus. Hás-de odiar o pecado e a iniquidade para te unires a Deus, que te ajudará a odiá-lo. Uma coisa é não lutar, e estar na paz verdadeira e eterna, outra lutar e vencer, outra ainda lutar e ser vencido, outra sem lutar, mas ser arrastado. Este é arrastado pela malícia sem luta. Há os que começam a combater, mas presumem das próprias forças, tornam-se soberbos e escorregam. Quem é que luta e não é vencido? É aquele que diz: “Nota que há outra lei nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão” (Rm 7, 23-25). Vê o lutador, mas como ele não presume de suas forças, será vencedor.

V. 6: “Mas a tua bondade, Senhor, chega até aos céus, e a tua fidelidade até às nuvens” (6). Os dons de Deus são parcialmente temporais e terrenos, parcialmente eternos e celestes. Quem adora a Deus por causa disso, a fim de receber estes bens terrestres e temporais, que são acessíveis a todos, é ainda semelhante a um animal. Quais os dons abundantes para todos? “Vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores” (Mt 5, 45). Todos os bens são dons de Deus. Não julgueis que possa dá-los alguém a não ser só Deus. Quem, portanto, não espera senão do Senhor, é bem diferente daquele que O procura junto dos demónios, dos astrólogos. São infelizes duplamente: porque só ambicionam bens terrenos e porque não os pedem ao dador de todos os bens. “Mas a tua bondade, Senhor, chega até aos céus, e a tua fidelidade até às nuvens” (6), a bondade que concedes aos teus santos é celeste, não terrena; eterna, não temporal. E como pudeste anunciá-la aos homens? Porque “ tua fidelidade chega até às nuvens” (6 b). Quem poderia conhecer a celeste misericórdia de Deus se Deus não a anunciasse aos homens? Como a anunciou? Enviando a sua fidelidade até às nuvens. Quais são as nuvens? Os pregadores da palavra de Deus. Daí encontrar-se em certa passagem que Deus se irou contra determinada vinha. O profeta Isaías diz a respeito de certa vinha: “Depois esperou que lhe desse boas uvas, mas ela só produziu agraços”. E concluiu da seguinte maneira, para que ninguém pensasse que Ele se referia a uma vinha visível: “A vinha do Senhor do Universo é a casa se Israel, e os homens de Judá são a sua cepa predilecta” Por conseguinte, censurava a vinha. O que disse? “Mandarei às nuvens que não derramarem chuva sobre ela” (Is 5, 2. 7. 6). De facto, assim se fez. Encontramos nos Actos dos Apóstolos que o apóstolo Paulo queria pregar aos judeus e não encontrou uvas e sim espinhos: começaram a retribuir o bem com o mal e a perseguir. “Era primeiramente a vós que a palavra de Deus devia ser anunciada. Visto que a repelis, voltamo-nos para os pagãos” (Act 13, 46). De facto, nuvens são os pregadores da palavra da verdade.

V. 7: “A tua justiça é como os montes altíssimos, os teus juízos são como o abismo profundo” (7 a). Quais são as montanhas de Deus? As nuvens identificam-se com as montanhas de Deus: grandes pregadores, montanhas de Deus. Ao nascer, o Sol primeiro reveste de luz as montanhas e de lá a luz desce às partes mais baixas da terra; Assim, nosso Senhor Jesus Cristo, na sua vinda, primeiro irradiou luz sobre as alturas dos apóstolos, antes iluminou os montes, e de lá a luz desceu aos vales da terra. “Levanto os olhos para os montes de onde me virá o auxílio” (Sl 120, 1)? Mas, não penses que os próprios montes te darão auxílio; eles recebem para dar; não dão do que é seu. Se permaneceres nos montes, não será firme tua esperança; mas deposita tua esperança e confiança naquele que ilumina as montanhas. Diz o salmo em seguida: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”. Existiam outras montanhas; se alguém dirigisse o navio, orientado por elas naufragaria. Pois, emergiram uns chefes de hereges, e eram montes. Ario era um monte. Muitos fixando os olhos nesses montes, foram lançados contra os rochedos, e naufragaram em terra: Não seduziam tais montes àquele que disse: “No Senhor me refugio; como ousais dizer-me: «Foge para os montes como as aves» ” (Sl 10, 1). Aprendei quanto deveis presumir de Deus, e quanto atribuir aos homens; porque “é maldito todo aquele que confia no homem”. (Jr 17, 5). O santo apóstolo Paulo com modéstia e humildade, zelando bem pela Igreja e tendo horror daqueles que quiseram dizer: “ «Eu sou de Paulo» ”, “ «Eu sou de Apolo» ” (1 Cor 3, 4). Humilhando-se e desprezando-se para glorificar a Cristo?: “Porventura Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes baptizado em nome de Paulo?” (1 Cor 1, 13).

Amigos do esposo são os Apóstolos. Igualmente aquele humilde João – Daí declarar: “Eu não sou o Messias, mas aquele que vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias, e que me passou à frente” (Jo 1, 20. 27). Em consequência diz: “O esposo é aquele a quem pertence a esposa; mas o amigo do esposo que está a seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do esposo” (Jo 3, 29). “Sim, todos nós participamos da sua plenitude” (Jo 1, 16). Que plenitude? Da plenitude daquele que “Era a Luz verdadeira, que ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1, 9). Para ele o apóstolo zelava para a Igreja dizendo: “Considerem-me, pois, servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1). Mas para que novamente a tua esperança não se firme nos montes e sim em Deus, ouve: “Eu plantei. Apolo regou. Mas foi Deus quem deu o crescimento” e “Nem o que planta nem o que rega é alguma coisa” (1 Cor 3, 6). Diz: o meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra, e: “A tua justiça é como os montes altíssimos” (7 a), a saber, os montes estão cheios da tua justiça. “Os teus juízos são como o abismo profundo” (7 b). Chama-se de abismo às profundezas dos pecados. Lá chega quem despreza a Deus, Deus os entregou, segundo o desejo dos seus corações, à impureza. Qual o significado? Havia, portanto, a concupiscência, que eles não quiseram vencer; foram entregues ao juízo de Deus. Vê o que o Apóstolo declara deles: “Tendo conhecido a Deus, não o glorificaram, nem lhe deram graças, como a Deus é devido. Pelo contrário: tornaram-se vazios nos seus pensamentos e obscureceu-se o seu coração”. De onde se originou isto? Da soberba. “Afirmando-se como sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1, 21. 22). Mereceram ser entregues às concupiscências de seus corações e caíram no abismo profundo, de sorte que não só pecaram, mas também agiam como tolos, para não entenderem a própria iniquidade e a detestarem.

A profundeza da malícia consiste em não querer descobrir e detestar. Vê como alguém cai nessas profundezas: “Os teus juízos são como o abismo profundo” (7 b). Por seus juízos caem no abismo, os que submergem nas profundezas do mal. Na Igreja de Cristo encontras o abismo, encontras também os montes: descobres aí menos bons, porque os montes são poucos, e o abismo é dilatado, isto é, são muitos os que vivem mal, sob a ira de Deus. Defendem seus pecados e não os confessam, mas dizem: também ele cometeu aquele pecado; outro fez aquilo. Querem até defender o que a palavra divina condena; eis um abismo. Diz a Escritura (um abismo): “Os lábios do insensato levam a contendas e a sua boca atrai o castigo” (Pr 18, 6). Eis que “os teus juízos são como o abismo profundo” (7 b). Mas ainda não és monte, e nem és abismo, dá atenção aos montes, mas não pares neles, pois o teu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra.

Vs. 7. 8: “Tu, Senhor, salvas os homens e os animais. Ó Deus que maravilhosa é a tua bondade!” (7 c. 8 a). Aquele que fez os homens fez também os animais; quem fez a ambos salva; mas a salvação dos animais é temporal. Existem alguns que pedem a Deus o que Ele deu aos animais, como se fosse um grande bem. “Ó Deus, que maravilhosa é a tua bondade”! (8 a), dando não somente aos homens mas também aos animais, a saber, esta salvação corporal e temporal. Então, os homens não têm reservado junto de Deus algo que os animais não merecem e aonde os animais não chegam? Têm, sem dúvida: “Os humanos refugiam-se debaixo das tuas asas” (8 b). “O que é o homem para te lembrares dele” (Sl 8, 5)? O que significa lembrares-te do homem? “Tu, Senhor, salvas os homens e os animais” (7 c), porque também aos próprios maus dás a salvação, a eles que não desejam o Reino dos Céus. O Senhor protege-os; e não os abandona segundo o seu modo de ser; como a seus animais não os abandona. O povo judaico aspirava aos bens terrenos, no reino de Jerusalém, à sujeição de seus inimigos, à abundância dos frutos, à própria saúde e à dos filhos. De Deus esperavam os bens que Ele dá igualmente aos animais, porque ainda não viera para eles o Filho do homem; já possuíam, contudo, as nuvens a prenunciarem o Filho do homem. Os profetas vieram, anunciaram a Cristo; haviam alguns que entendiam, e tinham a esperança dos bens futuros. Existiam também alguns que só ambicionavam a felicidade terrena e temporal e eles fabricavam ídolos e os adoravam. Quando o Senhor os castigava, sofriam fome, guerras, pestes; mas voltaram-se para os ídolos. Os bens que deviam esperar de Deus, como importantes, procuravam obter dos ídolos e abandonavam a Deus. Percebiam que os bens ambicionados eram concedidos fortemente aos ímpios e malvados, e pensavam que era inútil adorar a Deus, porque Ele não dava recompensa terrena. Ó homem! És o operário de Deus; posteriormente será a ocasião de receber a recompensa; porque já queres receber a recompensa antes de trabalhar? Mas receias que não tenha o que dar? Ele é o omnipotente. Não temas que não existe mais quem dê; Ele é imortal. Não tenhas medo de um sucessor; Ele é perpétuo. Fica tranquilo. Se queres que teu operário confie em ti durante um dia inteiro, acredita também tu em Deus por toda a vida, porque a tua vida é um momento para Deus. E o que serás? “Os humanos refugiam-se debaixo de tuas asas” (8 b).

V. 9: “Podem saciar-se da abundância da tua casa; tu os inebrias no rio das tuas delícias” (9). Não sei bem que coisa grandiosa nos promete. Ele quer dizer e não diz. Não pode ou nós é que não somos capazes de entender? É grandioso e inefável. Também alguns santos viram parcialmente, em figura, como diz o Apóstolo: “Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face” (1 Cor 13, 12).

A mente humana, enchendo-se daquela inefável alegria, perde-se de certo modo e faz-se divina, inebriando-se na abundância da casa de Deus. Daí declarar outro Salmo: “Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos” (Sl 22, 5). Com este cálice inebriaram-se os mártires; tomaram de um cálice que os embriagou. Daí o salmista também dar graças a Deus, dizendo: “Como retribuirei ao Senhor todos os benefícios para comigo? Elevarei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor. (Sl 115, 12-13). Quem agora tem sede espera; quem está sedento, tenha esperança e será inebriado, quando estiver da posse da realidade; antes que venha, sinta sede na esperança. “Felizes os que sentem fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mt 5, 6).

V. 10: “Qual a fonte que te irrigará”. Donde flui tamanha fonte de delícias? “Em ti está a fonte da vida” (10 a). Quem é a fonte da vida senão o Cristo? “Em ti está a fonte da vida e é na tua Luz que veremos a luz” (10). Aqui fonte é uma coisa e luz, outra; lá é diferente. Fonte e luz são idênticas. Efectivamente foi-me dito com razão: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8).

V. 11: “Concede os teus favores aos que te amam e a tua justiça aos que sã rectos de coração” (11). Repetimos frequentemente que são rectos de coração os que seguem nesta vida a vontade de Deus. É vontade de Deus que às vezes estejas com saúde, e outras vezes que fiques doente; se é agradável a vontade de Deus quando estás com saúde, quando adoeces é amarga. Não és então recto de coração. Por quê? Por não quereres submeter tua vontade à vontade de Deus, mas quereres curvá-lo à tua. Se tudo corre bem neste século, seja Deus bendito que consola. Se há dificuldades, seja bendito que emenda e experimenta; e terás o coração dizendo: “Em todo o tempo, bendirei o Senhor; o seu louvor estará sempre nos meus lábios” (Sl 33, 2).

V. 12: “Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos” (12 a). Os filhos dos homens se abrigam à sombra de tuas asas. Enebriar-se-ão na abundância de tua casa. Ela não faltara a Adão, o primeiro homem; mas a soberba dominou-o, a mão do pecador o sacudiu, isto é, a mão soberba do diabo, persuadiu-o com as seguintes palavras: “Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos e sereis como Deus” (Gn 3, 5). Caímos, pela soberba e chegámos a este estado mortal. Como a soberba nos feriu, a humildade nos cura. Veio o Deus humilde para curar o homem de tão grande ferida da soberba. Veio, porque o Verbo se fez homem e veio a habitar connosco (Jo 1, 14). Foi preso, foi insultado. Ouvistes o que eles disseram e a quem o disseram. “Tens demónio” (Jo 8, 48). Ele não respondeu: Vós é que tendes um demónio, porque o diabo tomou posse de vossos corações. Não o disse, mas se o dissesse, diria a verdade: mas não era tempo de dizê-lo, para que não parecesse estar a retribuir a injúria e não a pregar a verdade. O Senhor desprezou tudo o que ouviu, tudo o que sofreu, ensinando-nos com isso a humildade, para que instruídos pela humildade fossemos curados da soberba. Desta o salmista pede para ser libertado: “Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos nem me afugente a mão do ímpio” (12). Quais são as mãos do pecador? É a obra do que sugere o mal. Firma-te humildemente em Deus e não cuides muito do que te pode ser dito. Por esta razão é que se pede em outro salmo: “Mas, quem poderá discernir os próprios erros? Perdoa-me os que me são desconhecidos” (Sl 18, 13).

Mantém o que és interiormente e não temerás externamente.

V. 13: Porque, então, temes tanto? Seria como se alguém dissesse: “Eis como caem por terra os malfeitores” (13 a), naquele abismo, do qual se disse: “os teus juízes são como o abismo profundo”. “Caíram”. Onde caíram em primeiro lugar? Sob os pés da soberba; de lá caíram nas profundezas: “Deus, de acordo com os apetites dos seus corações, os entregou à impureza” (Rm 1, 24).

“Eis como caem por terra os malfeitores, abatidos para não mais se levantarem” (13). Primeiro, aquele que não permaneceu na verdade, em seguida, por meio dele, os que Deus expulsou do paraíso. Por isso, aquele, o humilde que não se julga digno de desatar as correias das sandálias, não é expulso, mas o esposo é aquele a quem pertence a esposa, o amigo sente muita alegria com a voz do esposo (Jo 1, 27; 3, 29), e não por causa de sua própria voz.

SALMO 37 (36)

Catequese I

É sabido que o último dia é terrível para aqueles que não querem estar seguros, vivendo honestamente. Foi com utilidade que Deus deixou escondido aquele dia, para que os corações estejam sempre preparados. Nosso Senhor Jesus Cristo foi-nos enviado como mestre. Declarou Ele que o Filho do homem ignorava qual seria esse dia (Mc 13, 32), porque não competia ao seu magistério torná-lo conhecido de nós. O Pai não sabe algo que o Filho ignore, uma vez que a ciência do Pai identifica-se com a sua Sabedoria. Seu Filho, seu Verbo é a sua sabedoria.

Como não era do nosso proveito vir a conhecer o que sabia o mestre que viera nos ensinar (Não viera, porém, ensinar aquilo que não nos era útil saber), não só enquanto mestre, ensinou certas coisas, mas nesta mesma qualidade deixou de transmitir outras. Como um mestre, sabia bem tanto ensinar o que convinha, como calar o que prejudicaria. Assim, por certo modo de expressão foi dito que o Filho não sabia o que não ensinou.

Também, ao invés, o Senhor declara: Agora sei. Foi dito a Abraão: “Sei agora que, na verdade, temes a Deus” (Gn 22, 12). Deus o sabia antes de experimentá-lo. Aquela provação realizou-se para que nós soubéssemos o que Deus já sabia. Por nossa causa foi escrito o que Ele conhecia antes da prova. Cada qual, de facto, de certa maneira, interrogado pela tentação, passa a conhecer-se a si mesmo. Pedro ignorava de que forças dispunha a sua fé, quando disse ao Senhor: “Estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte” (Lc 22, 33). O Senhor, que o conhecia, predisse uma deserção, anunciando-lhe a sua fraqueza. Em consequência, Pedro, que antes da tentação presumira de si mesmo, na tentação aprendeu a conhecer-se. Também o nosso pai Abraão veio a conhecer o vigor da sua fé, ao receber a ordem de imolar o filho único. Como não sabia como o Senhor o daria, antes do seu nascimento, assim acreditou que poderia vivificá-lo, depois de imolado: “Deus vos põe à prova para verificar se realmente O amais com todo o vosso coração, e com toda a vossa alma” (Dt 13, 4). Mas o que significa “põe à prova para verificar”? Experimenta-vos para vos fazer conhecer. O que significa nos deixa sem saber? Oculta para não sabermos o que não nos convém transmitir. O bom mestre sabe o que deve transmitir, o que há-de ocultar. Daí compreendemos que tudo não há-de ser revelado, quando não são capazes de aprender aqueles aos quais devíamos comunicar alguma coisa. O Senhor declarou em outra parte: “Tenho ainda muito a dizer-vos, mas não sois capazes de compreender por agora” (Jo 16, 12). Disse também o Apóstolo: “Não pude falar-vos como a simples homens espirituais, mas como a homens carnais, como criancinhas em Cristo. Foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. Nem mesmo agora podeis” (1 Cor 3, 1. 2). Como sabemos que há-de vir o último dia, é para nosso proveito sabermos que virá, e também nos é útil ignorarmos quando será. Efectivamente, aquele dia aumenta o sofrimento dos infiéis, mas acaba com o dos fiéis. Escolhe, portanto, enquanto é tempo.

Verifica-se que em qualquer espécie de vida, em qualquer profissão, nem todos são honestos, nem todos condenáveis, porque em certas parábolas, a respeito das várias espécies de homens, assim se conclui: “Um será levado e o outro deixado” (Mt 24, 40). É tomado o bom e deixado o mau. Os homens vêem a profissão, Deus conhece o coração. Em qualquer estado de vida a que te dedicares, prepara-te para encontrares fingidos; se, ao invés, não te prevenires, encontrarás o que não esperavas, e desanimarás ou te perturbarás. O Senhor, que te fala, prepara-te para tudo, enquanto é tempo para Ele de expor e não é ainda ocasião de julgar e para ti oportunidade de ouvir, e ainda não de inútil arrependimento. Agora a penitência não é vã; então será frustrada. É justo, para Deus, que Ele agora conceda a misericórdia; então exercerá o juízo.

Versículos 1. 2: De facto, perturba-te, ó cristão, veres os que vivem mal serem felizes, nadar em abundância, estarem sadios, ver a alegria dos seus, nada de triste atacar suas vidas; propriedades abundantes e teu coração diz que não há juízo divino. Declaras: Se Deus olhasse as coisas humanas, a maldade daquela estaria florescente, e minha inocência labutaria?

Toda a doença do espírito encontra nas Escrituras medicamento adequado. Quem está doente a tal ponto que diz isto em seu coração, beba a poção deste salmo. Apenas não recuses a bebida salutar. Acomoda a boca do coração. Bebe o que ouves: “Não te irrites por causa dos malfeitores, nem invejes os que praticam a injustiça. Eles vão secar depressa como o feno e murchar como a erva verde (1. 2). É breve para Deus o que te parece longo. Identificam-se feno e ervas do campo. São insignificantes, superficiais e não têm raízes profundas. Por este motivo, reverdescem ao Inverno; apenas o Sol do Verão começa a arder, murcham. Agora é Inverno, e tua glória ainda não aparece; mas se for profunda a raiz da tua caridade, passará o frio, virá o Verão, isto é, o dia do juízo e aparecerá a glória. Onde está nossa raiz, lá se encontra nossa vida, lá se encontra a nossa caridade. “E a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3, 3). Quando murcha a árvore que tem essa raiz? Quando será o nosso Verão? Quando nos reveste a beleza das folhas e nos enriquece a fartura dos frutos? “Quando Cristo, vossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória” (Cl 3, 4).

Vs. 3. 4: E tu? Que farás? “Confia no Senhor” (3 a). Há os que esperam, porém não no Senhor; a esperança deles é mortal, frágil, volátil, transitória. O que fazer? “E faz o bem” (3 a). “Confia no Senhor e faz o bem; habitarás a terra e viverás tranquilo” (3). A terra do Senhor é a sua Igreja; o Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que não dá fruto em mim” (Jo 15, 1. 2). Pois são muitos os que praticam boas obras e não habitam a terra, não pertencem ao agricultor. Quais são as riquezas desta terra? A sua riqueza é o Senhor, sua riqueza é o seu Deus. É aquele ao qual diz o salmista: “A herança que me toca é pôr em prática as tuas ordens” (Sl 118, 57). A Ele se refere o Salmo: “Senhor, minha herança e meu cálice, a minha sorte está nas tuas mãos” (Sl 15, 5). A riqueza desta terra é Ele mesmo; vê como prossegue: “Procura no Senhor a tua felicidade” (4 a). Acolhe como um sinal a expressão: “E Ele satisfará os desejos de teu coração” (4 b). Distingue entre pedidos do coração e pedidos da carne. Não é ociosa a expressão de certo salmo: “Deus será sempre a minha herança” (Sl 72, 26). Por exemplo: um cego corporalmente suplica a visão. É um pedido carnal. Qual a súplica do coração? O pedido do coração é relativo a outra luz. Pois, “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8).

Vs. 5. 6: “Confia no Senhor o teu destino, confia nele e Ele há-de ajudar-te” (5). Manifesta-lhe o teu sofrimento, manifesta-lhe a tua vontade. Qual o teu sofrimento? “Porque a carne deseja o que é contrário ao Espírito, e o Espírito o que é contrário à carne” (Gl 5, 17). Qual a tua vontade? “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte?” (Rm 7, 24. 25). Por conseguinte, o que fará Ele, uma vez que foi dito: “Confia ao Senhor o teu destino, confia nele e Ele há-de ajudar-te” (5); O que há-de fazer? “Fará brilhar, como luz, a tua justiça” (6 a). Agora tua justiça está oculta: existe na fé, não ainda na realidade. Crês para agir, mas ainda não vês o que acreditas. Ao começares a ver o que crestes, tua justiça, surgirá como a luz, porque a tua justiça era a tua fé. Pois, “o justo viverá da fé” (Rm 1, 17). “Fará brilhar, como luz, a tua justiça e, como o sol do meio-dia, os teus direitos” (6), isto é, como luz brilhante. Não apenas, fará surgir como a luz a tua justiça, mas o teu direito será como o Sol do meio-dia. Agora julgas que segues a Cristo. Decidiste fazê-lo. Tal foi a tua escolha, teu juízo. Julgas melhor seguir a Cristo que te promete o que não vês do que ao ímpio que te censura por acreditares no que não vês ainda. Quando, então, surgirá o teu direito como o Sol do meio-dia? Quando se manifestar Cristo, a vossa vida, então também vós vos manifestareis com Ele em glória (Cl 3, 4). No entanto, o que acontece agora? Angústias, tribulações e tentações. E feliz o que perseverar, porque aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo (Mt 24, 13). Não ceda aos injuriadores, nem opte por florescer aqui, de sorte que de árvore se torne feno.

V. 7: Escuta o que hás-de fazer: “Confia no Senhor, e põe nele a tua esperança (7 a). Consista a tua vida em obedecer aos seus preceitos, e suplicar até que Ele conceda o que prometeu. Persevera nas boas obras, persevera nas orações. Importa “orar sempre sem desfalecer” (Lc 18, 1). Em que te hás-de mostrar submisso? Fazendo o que Ele ordenou. Mas ainda não recebes a recompensa; talvez porque ainda não és capaz de recebê-la. Trabalha na vinha; no fim do dia pede o pagamento. É fiel aquele que te contratou para trabalhar na vinha (Mt 20, 8).

Vs. 7. 8. 9: Aquele vizinho malvado age perversamente e prospera. Como suportarei isto por muito tempo? Ele está doente. Imuniza-te. “Não invejes os que prosperam” (7 b). Prospera ele, mas no seu caminho, tu labutas, mas no caminho de Deus. Ele encontra a prosperidade enquanto está a caminho; ao chegar, achará a infelicidade. Tu labutas no caminho, na chegada terás a felicidade, porque “o caminho dos ímpios conduz à perdição” (Sl 1, 6). O caminho dos ímpios é a felicidade transitória. Porquê? Porque aquele caminho é espaçoso, mas termina no profundo do inferno. Teu caminho é apertado e poucos os que o encontram; mas deves pensar em que amplidão termina (Mt 7, 13. 14).

“Não invejes os que prosperam, nem os que vivem de intrigas. Foge da ira e deixa a indignação” (7 b. 7 c. 8 a). Por que te encolerizas? Porque, devido à ira e à indignação blasfemas ou quase? Não sabes até onde te conduz esta cólera? Ao dizer que Deus é iníquo. Abafa este mau conceito. “Foge da ira e deixa a indignação” (8 a), de sorte que já arrependido digas: “os meus olhos vão-se consumindo de tristeza” (Sl 6, 8). Que olhos a não ser os da fé? Interroga os olhos da tua fé. Acreditaste em Cristo; porquê? O que Ele te prometeu? Se Cristo te prometeu a felicidade neste mundo, murmura contra Ele, ao verificares que um infeliz é feliz. Qual a felicidade que te prometeu? Qual senão a que se recebe na ressurreição dos mortos? E nesta vida, então? Direi: terás o mesmo que Ele, igual a Ele. Acaso não ouves a Sua palavra: “Não é o servo mais do que o seu Senhor, nem o enviado mais do que aquele que o envia” (Jo 13, 16)? Ele sofreu por ti dores, flagelos, opróbrios, cruz, morte. “Não te impacientes, pois isso conduz ao mal. Pois os maus serão exterminados” (8 b. 9 a). Mas, eu vejo a felicidade deles. Acredita naquele que afirma: “Serão exterminados”. “Pois os maus serão exterminados, mas os que esperam no Senhor, possuirão a terra” (9), não num homem falaz, mas de facto na própria Verdade; não em algum que tem pequeno poder, mas efectivamente naquele que é Omnipotente.

“Mas, os que esperam no Senhor, possuirão a terra” (9 b). Que terra, senão aquela Jerusalém? Quem arde de amor por ela chegará à paz. Mas, por quanto tempo o pecador prosperará? Que pressa! Logo virá o que te parece longo. Tua fraqueza faz parecer longo o que é breve. Para quando será? “Ainda um pouco, e já não verás o ímpio” (10 a). Espera um pouco e receberás sempre o que esperas. Lembra-te dos anos decorridos de Adão até hoje. Foi apenas ontem que Ele caiu e foi expulso do paraíso. Tantos séculos decorreram. Se tivesses vivido durante todo aquele tempo, desde que Adão foi expulso do paraíso até hoje, certamente acharias que a tua vida não foi longa, voou. O que é isto? Não será uma brisa matutina? Seja, portanto, distante o dia do Juízo, quando haverá a retribuição dos injustos e justos, com toda a certeza o teu último dia não pode estar muito longínquo. Na posse daquele repouso, certamente esperarás em segurança o dia do Juízo, quando recuperarás também o corpo, quando serás transformado para te igualares aos anjos. Por isso, quanto nos apressamos, dizendo: Quando será? Ó homem fraco! “Ainda um pouco, e já não verás o ímpio” (10 a). “Mesmo que o procures, não vais encontrá-lo” (10 b). Não quer dizer que absolutamente já não existirá, mas que para nada servirá: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para seus anjos” (Mt 25, 41).

“Onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8, 12). O pecador tem alguma utilidade? Tem. Aqui Deus o emprega para experimentar o justo, como se utilizou do diabo para provar Job, como empregou Judas para entregar a Cristo. Aqui, portanto, está o seu lugar, como no crisol a palha tem lugar. A palha arde para purificar o ouro. Assim o ímpio se encarniça para experimentar o justo. Dá ao pecador poder; são castigadas as acções humanas, e com isso os bons se emendam.

V. 11: “Porém, os pobres possuirão a terra” (10 a). Terra representa a Jerusalém santa, que será libertada da necessidade de peregrinar, e viverá eternamente com Deus e de Deus. Quais serão as suas delícias? “E terão felicidade e grande paz” (11 b). Deleite-se aqui o ímpio na multidão de ouro. De banquetes lautos e pomposos. É este o poder que invejas? Quais serão as tuas delícias? “E terão grande felicidade e grande paz” (11 b). A paz será o teu ouro. A paz estará no teu Deus. No entanto, o teu Deus será tudo para ti. Tu O comerás para não teres fome; bebê-Lo-ás para não teres sede; serás iluminado por Ele, para não seres cego; e nele te apoiarás para não desfaleceres; terás tudo e Ele te dará tudo, porque tu e Ele sereis um, e aquele que vos possui será totalmente unidade. Deus te dirigirá de sorte que queiras, também tu, aquilo que Ele quer. Isto é rectidão. Pois, se não queres o que Deus quer, serás torto, e tua maldade não te permitirá adaptar-te ao que é recto.



SALMO 37 (36)

Catequese II

Versículos 12. 13: “Os ímpios conspiram contra o justo e rangem os dentes contra ele. Mas o Senhor ri-se deles” (12. 13 a). “Mas o Senhor ri-se deles pois sabe que os seus dias estão contados” (13).

O pecador mostra-se cruel ao ameaçar o justo, que ignora o dia de amanhã. O Senhor, porém, vê e prevê o seu dia. Qual? Quando retribuirá a cada um conforme o seu procedimento” (Mt 16, 27). O pecador está acumulando ira, para o dia da ira e do justo julgamento de Deus (Rm 2, 5). Crê naquilo que Deus vê. Virá o dia das contas do injusto. Deus o prevê. Qual o dia? O do castigo de cada um. É necessário que seja castigado o ímpio, que seja castigado o injusto, quer se converta quer não. Se ele se converter, a justificação contra ele será terminar a iniquidade. Não se riu de Deus, prevendo o dia de dois iníquos, o de Judas traidor e do perseguidor Saulo? Viu o dia do castigo de um e o da justificação do outro. Um foi destinado ao fogo da geena, outro foi prostrado pela voz celeste. Tu, que sofres da parte do iníquo, com os olhas da fé, contempla com Deus o dia deles; e ao perceberes que se enfurece contra ti diz a ti mesmo. Ou se corrigirá, e estará comigo, ou perseverá no mal e não estará comigo.

Vs. 14. 15. 16: Como será então? A injustiça do injusto te prejudica e não o prejudica? A adversidade oprime o teu corpo, a iniquidade dissolve-lhe a alma. A perseguição dele purifica-te e faz dele um réu. Uma vez que todos os que perseguem os justos sofrem maior dano, e são afligidos por moléstia mais grave, porque é a alma que é arruinada, o salmo continua e mostra: “Os maus desembainham a espada e retesam o arco, para abaterem o pobre e o desvalido, para matar os que seguem o bom caminho. Mas a sua espada vai trespassar-lhes o coração” (14 e 15). É fácil que sua espada chegue ao teu corpo, como o gládio dos perseguidores atingiu os corpos dos mártires; mas, ferido o corpo, o coração permaneceu ileso. O coração daquele, porém, que atravessou o corpo do justo com o gládio, de modo algum se manteve ileso: “Mas a sua espada vai trespassar-lhes o coração” (15 a). Quiseram matar o corpo, morreram quanto à alma. O Senhor pôs em segurança aqueles cujos corpos eles quiseram matar, dizendo-lhes: “Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma (Mt 10, 28). Qual a vantagem de ser cruel com a espada, só poder matar o corpo do inimigo e, no entanto, matar a própria alma? “Mas, a sua espada vai trespassar-lhes o coração” (15 a). É a sentença do senhor. O que quer dizer: “e o seu arco será quebrado” (15 b)? Suas insídias serão frustradas. Mais acima dissera: “Os maus desembainham a espada e retesam o arco” (14 a). Desembainhar a espada significa um ataque aberto; o arco, porém, representa as insídias às ocultas. Eis que a espada o matou, e a trama de suas ciladas é frustrada. O que significa é frustrada? Em nada prejudicam o justo. Como, então, o ímpio em nada o lesou, se, por exemplo ele o espoliou, se o angustiou tirando-lhe os bens? O justo tem o que contar. “Vale mais o pouco para o homem justo, do que toda a fortuna do ímpio” (16).

V. 17: Mas os iníquos são poderosos e têm bom êxito. Será sempre assim? “Porque os braços do ímpio serão quebrados” (17 a). Braços representam o poder deles. Por conseguinte, os “braços serão quebrados, mas o Senhor sustenta os que praticam o bem” (17 b). Como os fortifica? “Confia no Senhor! Sê forte e corajoso, e confia no Senhor” (Sl 26, 14). Qual o sentido de: “Confia no Senhor”? Durante certo tempo trabalhas, mas não trabalhas eternamente. Tuas dificuldades são breves, enquanto eterna será tua felicidade. Mas começas a resvalar no meio das dificuldades? O exemplo da paixão de Cristo é proposto. Vê quanto sofreu por ti aquele que não tinha motivo para sofrer. Por mais que padeças, não chegarás àqueles insultos, àquela coroa de espinhos, por fim àquela cruz. Sejam os pecadores cruéis quanto quiserem, e quanto lhes for permitido: “mas o Senhor sustenta os que praticam o bem” (17 b). Tudo o que acontecer ao justo, o atribua ele à vontade divina, não ao poder do inimigo. Este pode enfurecer-se; mas ferir, se Deus não quiser, não pode. E se Deus quiser que o inimigo fira, sabe Ele como acolherá o que é seu: “Porque o Senhor corrige os que ama, e castiga todo o que reconhece como filho” (Hb 12, 6). O iníquo aplaude-se a si mesmo, porque o Pai o utilizou qual açoite? Não devemos atender o quanto Ele permite aos injustos, mas a quanto reserva para os justos. Mas cabe-nos desejar, mesmo àqueles que nos servem de flagelo, que se convertam e sejam flagelados. Foi deste modo que o Senhor instruiu os seus fiéis, quando se serviu de Saulo par castigá-los; mas depois o converteu igualmente. E quando o Senhor disse a santo Ananias, por quem Saulo foi baptizado, que devia acolhê-lo, Ananias respondeu: “Senhor, tenho ouvido muita gente falar desse homem e a contar todo o mal que ele tem feito aos teus santos, em Jerusalém. Agora está com plenos poderes dos sumos sacerdotes para prender quantos invocarem o teu nome” (Act 9, 13-16). Replicou-lhe o Senhor: “Vai, Eu mesmo lhe hei-de mostrar quanto ele tem de sofrer por causa do meu nome” (Act 9, 13-16). Mas vê se nele se verificou o que o Salmo agora diz: “Mas o Senhor sustenta os que praticam o bem (17 b). O mesmo Paulo, diante de muitos sofrimentos, diz: “gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança. Ora, a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 3-5). Ouve outras palavras do justo já justificado: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, angústia, a fome, a nudez?” (Rm 8, 35) “mas o Senhor sustenta os que praticam o bem” (17 b).

Haviam descido alguns profetas de Jerusalém e cheios de Espírito Santo profetizaram ao mesmo Paulo que haveria de sofrer muito em Jerusalém. Os irmãos, ouvindo o aviso dado a Paulo, começaram a dissuadi-lo de não se expor a tantos perigos. Ele, porém, disse: Não dou grande valor a minha vida. Já dissera àqueles que gerara para o Evangelho: “Quanto a mim, de bom grado darei o que tenho e dar-me-ei totalmente em vosso favor. Estou pronto, não só a ser amarrado, mas também a morrer pelo nome do Senhor Jesus” (2 Cor 12, 15); (Act 21, 13).

V. 18: “Mas o Senhor sustenta os que praticam o bem” (17 b). Como os fortifica? “O Senhor conhece os dias do homem honesto” (18 a) “Guia os humildes na justiça e dá-lhes a conhecer o seu caminho” (Sl 24, 9). Imaginai como não devem ter detestado os transeuntes aquele pobre, coberto de chagas, a jazer diante do portão do rico (Lc 16, 20)? Mas, o Senhor sabia reservar-lhe o Paraíso. Não desejariam para si a vida daquele que se vestia de púrpura e linho fino e se banqueteava diariamente? O Senhor, porém, que vira de antemão o seu dia, conhecia os futuros tormentos, tormentos sem fim. “E a herança dele será para sempre” (18 b). Temos isto na fé. Não nos serão tão evidentes as coisas reveladas quanto são manifestas àquele que não podem nem mesmo mudar. No entanto, a nosso respeito o que foi dito? “Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1 Jo 3, 2), de forma nenhuma se pode exprimir a beleza daquela bondade que Deus reserva para os que lhe são fiéis e concede àqueles que em ti confiam” (Sl 30, 20).

Para isto nossos corações são preparados no meio de todas as tribulações e tentações desta vida. Não te admires de ser preparado pelos trabalhos; é para algo de muito grande que te preparas. Daí se originarem aquelas palavras do justo já fortificado. “Os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há-de revelar-se em nós” (Rm 8, 18). Qual será a nossa futura glória senão igualar-nos aos anjos e ver a Deus? E o que daremos, então, nós “àquele médico que nos cura os olhos interiores, a fim de vermos a luz eterna, que é Ele mesmo? O que lhe daremos? Procuraremos, encontremos, se pudermos; e nas aflições da nossa procura, exclamemos: “Como retribuir ao Senhor por todos os benefícios para comigo?” E o que encontra? “Elevarei o Cálice da Salvação invocando o nome do Senhor” (Sl 115, 12. 13). Disse o Senhor: “Podeis beber o Cálice que Eu estou para beber”? (Mt 20, 22). Daí também a Pedro: “Tu és deveras meu amigo? Apascenta as minha ovelhas”, em favor das quais haveria de beber o cálice do Senhor (Jo 21, 27).

V. 19: Que sentido tem a frase: “Não se envergonhará no tempo da adversidade?” (19 a). No dia da tribulação, nos dias das angústias não serão confundidos. Quem é que se confunde? Aquele que afirma: não encontrei aquilo que esperava. E com razão! Esperavas de ti mesmo, ou esperavas de um amigo, que é apenas um homem; maldito, porém, que deposita a sua confiança num homem (Jr 17, 5). Decepcionou a esperança depositada na mentira, pois todo o homem é mentiroso (Sl 115, 11). Mas se é em Deus que depositas tua esperança, não serás confundido; porque não falha aquele em quem confiaste. Por que a esperança não engana? Porque depositada em Deus. Daí prosseguir: “Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 3-5). Já nos foi dado o Espírito Santo. Como nos enganaria se temos tal penhor? “Não se envergonhará no tempo da adversidade e nos dias de fome será saciado” (19). Pois, dias de fome são desta vida; alguns famintos, outros saciados. Como se gloriaria o Apóstolo afirmando: “Nós nos gloriamos nas tribulações” se interiormente sofresse penúria? Exteriormente parecia angustiado, mas interiormente achava-se dilatado.

V. 20: Como age o malvado quando começa a tribulação? Não tem como escapar, porque as coisas são duras. Não pode entrar, porque dentro só existem males. De direito acontece-lhe o que segue: “Os ímpios, porém, hão-de perecer” (20 a). Como não haverão de perecer se não acham consolo interiormente. As coisas exteriores não nos trazem consolo algum. Todos aqueles que não possuem a Deus não podem consolar-se interiormente. Como se consolava aquele que estava cheio de bens interiores, e desta saciedade brotava a palavra: “O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21). Não se sentem bem consigo mesmos, porque ninguém se sente bem em companhia de um mau. Foge-se de um inimigo para onde se puder. Como poderá fugir de si mesmo? Quando a vida decorre tranquila, então o homem deve recolher a palavra de Deus, e escondê-la no íntimo do coração, como a formiga esconde nos formigueiros o fruto do seu trabalho no Verão. Vem, porém o Inverno, isto é, advém a tribulação. Quem não encontra interiormente com que se alimentar morrerá de fome. De nenhum ser vivo devemos perder a esperança de melhora. Nada devemos julgar a respeito de alguém, pendendo para o bem ou para o mal. Enquanto se vive na terra sempre se ignora como será o amanhã. “E os inimigos do Senhor irão definhar como a erva dos campos e dissipar-se como o fumo” (20 b c). Descobri nesta comparação, o que o salmista insinuou. A fumaça, irrompendo do fogo, vai para o alto, elevando-se abre-se num grande globo; mas quanto maior for o globo, tanto mais se desvanece. Quanto mais se ergue, mais se espalha, mais se difunde por toda a pare, mais ténue se torna, mais se esvai e desaparece. Como resistem à verdade, a não ser pelo inchaço de seu temor, segundo os ventos, orgulhando-se como se fossem justos e grandes? Como são qualificados? Como fumaça: “Mas não irão longe, pois a sua insensatez tornar-se-á patente a todos como aconteceu com os primeiros” (2 Tm 3, 9).

V. 21: “O ímpio pede emprestado e não paga” (20 a). Recebe e não devolve. Quanta coisa não recebeu o pecador e não paga? Recebeu o ser, recebeu a existência humana. Grande é a diferença entre ele e o animal. Recebeu a forma de corpo, recebeu os vários sentidos. Recebeu muito mais, isto é, a mente para entender o que é justo e injusto, para indagar, desejar o criador, louvá-Lo e a Ele aderir. Também o pecador recebe tudo isso, mas não vivendo bem, não paga o que deve. Ao contrário, paga o bem contra o mal, blasfémias, murmurações contra Deus, indignação. Portanto, ele “pede emprestado e não paga, enquanto o justo se compadece e empresta” (21). Aquele nada tem, este tem alguma coisa. Este tem em abundância. E se for pobre? Ainda assim é rico. Tu apenas fita com olhos benevolentes as suas riquezas. Vês a sua caixa vazia, e não vês a sua consciência cheia de Deus. Não tem riquezas exteriormente, mas tem interiormente a caridade. Com a caridade, quanto distribui, e ela não se esgota. Se não encontra exteriormente o que dar, dá benevolência, dá conselho, um donativo, ajuda com o desejo, ou reza pelo aflito. Talvez ele seja mais atendido do que aquele que dá o pão. Quem possui um coração cheio de caridade tem sempre o que dar. A caridade também se chama boa vontade. A boa vontade não pode ficar inactiva. Neste tesouro há um suave repouso e verdadeira segurança. Não se receia perdê-lo; nem o ladrão junto dele tem acesso.

V. 22: “Os que o Senhor abençoar possuirão a terra” (22 a) como aquele justo (Cristo), verdadeiramente o único justo, e que justifica. Ele na terra foi pobre, mas trouxe grandes riquezas, para tornar ricos aqueles que aqui achou sendo pobres. Foi Ele que, pelo Espírito Santo, enriqueceu os corações pobres. Ele pôde tornar rico o pescador, que abandonou as suas redes, desprezou o que tinha e ganhou o que não possuía. Pois Deus escolheu o que é fraco neste mundo para confundir os fortes (1 Cor 1, 27). E não foi por meio do orador que Ele ganhou o pescador, mas através do pescador lucrou o orador, com o pecador obteve o senador, com o pescador alcançou o imperador. “Os que o Senhor abençoar possuirá a terra” (22 a). Serão co-herdeiros, naquela terra dos vivos, da qual se diz em outro salmo: “Tu és o meu refúgio e a minha herança na terra dos vivos” (Sl 141, 6). Tu és o meu refúgio, diz o salmista a Deus, e não hesita em fazer de Deus a sua herança. “Mas os que Ele amaldiçoar serão exterminados” (22 b). É um dom que bendigam os que bendizem. O Senhor Se aproximou dos que maldiziam e eles tornaram-se bendizentes.

V. 23: “O Senhor assegura os passos do homem e compraz-se nos seus caminhos” (23). Os passos do homem são encaminhados pelo Senhor para que ele opte pelo caminho do Senhor. Pois, se o senhor não dirigisse, os passos do homem seriam tão maus que iriam sempre elas sendas do mal. Veio, porém, o Senhor, chamou, redimiu, derramou o Seu sangue, prestou tal benefício e sofreu os males. Observa o que fez; e é Deus. Pondera o que sofreu; Ele é homem. É Ele, pois, quem dirige os nossos passos para que optemos por Seus caminhos. Se já segues o caminho de Cristo, não prometas a ti mesmo a prosperidade neste mundo. Cristo andou por caminhos duros, mas prometeu grande recompensa. Segue-O. Não olhes por onde passarás, mas aonde hás-de chegar. Haverás de tolerar duros trabalhos temporais, mas alcançarás alegrias eternas. Se queres suportar o trabalho olha a recompensa. Atendendo ao que haverás de receber, todos os teus padecimentos te parecerão insignificantes, e não terão proporção com o que receberás por eles. Ficarás admirado de que tanto seja dado em paga de tão minúsculo trabalho. Para receber a eterna felicidade, deverias sofrer eternas dores. Por exemplo, como nossa felicidade não terá fim, nossa miséria, nosso labor e nossas tribulações deviam ser muito longas. Deus não somente quis que fosse temporário o teu labor, mas ainda que fosse breve. Toda a vida do homem consta de poucos dias, e aos dias difíceis misturam-se os alegres, que são em maior número, para que possamos suportá-los. Passado o trabalho, virá o reino eterno, virá a felicidade sem fim, virá a igualdade com os anjos, virá a herança de Cristo, virá Cristo, o co-herdeiro. Se queres o caminho de Cristo e és verdadeiro cristão, não procures trilhar outra via senão aquela por onde Ele passou. Parece dura, mas é o caminho seguro.

V. 24: “Se cair, não ficará por terra, porque o Senhor há-de estender-lhe a mão” (24). Eis o que significa escolher o caminho de Cristo. Pode acontecer que alguém sofra tribulações, desonra, injúria; tudo isto abunda nesta vida para o género humano. Lembre-se do seu Senhor quantas provações sofreu. Ele sofreu primeiro. Por que temes? Dores? Cristo foi flagelado. Injúrias? Ele ouviu, embora expulsasse os demónios: “Tens demónio”. Contra Ele proferiram falsas testemunhas, a fim de que fosse condenado pelos juízes (Mt 26, 60); apresentaram-se os guardas do sepulcro como testemunhas falsas. Ele ressuscitou, com um grande milagre. A terra tremeu revelando que o Senhor ressurgia. Aqueles guardas disseram aos judeus o que viram e o que se realizara; aceitaram dinheiro e foi-lhes dito: “ «Dizei isto: De noite, enquanto dormíamos, os seus discípulos vieram e roubaram-no» ” (Mt 28, 13). Eu não acreditaria neles se me contassem tais eventos, nem se me descrevessem os seus sonhos. Loucura absurda. Se estavas desperto, por que permitiste? Se dormias, como sabes?

Estará sujeito a grave crime quem poupar um réu, ou tentar matar um inocente. Principalmente porque está escrito: “Não matarás o inocente e o justo, porque eu não declaro justo um culpado” (Ex 23, 7). “Se um homem pecar contra outro, Deus o defende; mas se ele pecar contra o Senhor, quem intercederá por ele (1 Sm 2, 25)? E o Apóstolo João disse: “Temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo, O Justo, pois Ele é a vítima que expia os nossos pecados” (1 Jo 2, 1. 2). Por conseguinte, ó povo, escolhe um sacerdote que não necessite de tuas orações, mas de cuja oração por ti possas estar seguro. Este é o Nosso Senhor Jesus Cristo, “Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus” (1 Tm 2, 5).



SALMO 37 (36)

Catequese III



Versículo 25: Quem é que diz: “Fui jovem e agora sou velho, mas nunca vê o justo abandonado nem os seus filhos mendigar pão” (25)? Se falo como se fosse um só homem, não é muito tempo a vida de um homem. Ouvi o que faz pensar: olhando para trás e reflectindo sobre os seus conhecidos, é possível que não encontre um justo a mendigar pão, ou o filho de um justo sem meios de vida; contudo, ou o filho de um justo sem meios de vida; contudo, se examinas as Escrituras divinas verás o justo Abraão passando dificuldades, sofrendo fome em sua terra e transferindo-se para o Egipto; encontrará também que seu filho Isaac, igualmente por causa da fome, mudou-se para outras regiões, à procura do pão (Gn 12, 10; 26, 1). E como será verdadeira a palavra: “Nunca vi o justo abandonado, nem os seus filhos a mendigar pão” (25 b). O que faremos, então? Auxilie-nos vossa piedosa aplicação, para examinarmos nestes versículos do salmo qual a vontade de Deus, o que Ele quis dar-nos a entender. É de entender que algum fraco, que não consiga entender espiritualmente as Escrituras, procure exemplos humanos e veja uma ou outra vez bons servos de Deus passando necessidade e forçados a mendigar pão; principalmente se lembre do Apóstolo Paulo que diz: “Mais ainda: fome e sede, frio e nudez” (2 Cor 11, 27). As Escrituras enganam-nos dirá consigo mesmo. E interiormente desanimado, desista da boa obra e diga: Para que pratico boas obras? Vedes que é uma passagem obscura. E se é obscuro está encoberto. E vejo certo paralítico. Vejo também um telhado, e debaixo dele vejo que Cristo está oculto. Uma vez que foram elogiados os que abriram o telhado e desceram o paralítico para junto de Cristo, farei o que puder para que este diga ao paralítico: Tem confiança filho, “Teus pecados estão perdoados”. Assim curou-o interiormente da paralisia perdoando-lhe pecados e fortificando-lhe a fé. Mas ali haviam homens que não tinham olhos para ver que o paralítico por dentro já fora curado e julgaram que o médico, ao curar, estava blasfemando. Disseram: “Quem é este que profere blasfémias? Quem pode perdoar pecados, a não ser Deus? (Lc 5, 18, 24). Mas, como era Deus, ouvia os que cogitavam tais coisas. Pensavam o que é correcto a respeito de Deus, mas não viam a Deus, presente ali. Aquele médico, fez, então, algo no corpo do paralítico, para curar a paralisia interior daqueles que proferiram tais palavras. Fez alguma coisa que eles poderiam ver, dando-lhes motivos de crer.

Era, pois, quem quer que sejas, tão fraco e doente de coração que, dando atenção a exemplos humanos, queres desistir das boas obras; anima-te, para ver se podemos, abrindo este telhado, descer-te para junto do Senhor. O próprio Senhor, em seu Corpo, é a Igreja. Acreditas que Cristo é a nossa Cabeça. “Vós sois o corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro”. (1 Cor 12, 27) e (Ef 4, 15). Todos os justos que existiram desde o começo do mundo têm Cristo por Cabeça. Eles acreditaram que Cristo haveria de vir; nós acreditamos naquele que já veio. Foram curados através da mesma fé. Deste modo Ele é a Cabeça de toda a cidade de Jerusalém, que congrega todos os fiéis do início até ao fim, acrescentando-se ainda as legiões e exércitos de anjos, a fim de se constituir uma só cidade, sob o governo de um só rei, um só império sob um só imperador, feliz em perpétua paz e bem-estar a louvar a Deus externamente, numa bem-aventurança sem fim. O corpo de Cristo, porém, isto é, a Igreja (Cl1, 18. 24), como se fosse um ser humano, primeiro foi jovem e já se encontra numa velhice fecunda, porque dela foi dito: “Até na velhice continuarão a dar frutos” (Sl 91, 15). Multiplicou-se por todos os povos, a sua voz é como a de um homem que olha para a sua primeira idade, e passando por todas as outras, contempla esta última, porque conhece todas as idades, através das Escrituras; e diz exultando e exortando: “Fui jovem”, nos primeiros tempos do século e “agora já sou velho”, estou nos últimos tempos; e “nunca vi o justo abandonado, nem os seus filhos a mendigar pão” (25).

Reconhecemos o homem jovem e velho, e de certa maneira, através da abertura do telhado, alcançamos a Cristo. Mas, quem é o justo que não foi visto desamparado, nem sua descendência mendigar pão? Se entenderes que pão é esse, hás-de saber quem é ele. Pois, o pão é o Verbo de Deus, que nunca se afasta da boca do justo, porquanto este justo, tentado em sua Cabeça responde isso mesmo. Pois, quando ao próprio Senhor, faminto e sedento, disse o diabo: “Ordena que estas pedras se convertam em pães”, Ele responde: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 3. 4). Além disso, notai quando é que o justo não faz a vontade de Deus. Ele sempre a faz e vive, e vive segundo sua vontade. A vontade de Deus é a própria lei de Deus. E o que se diz de tal lei? “E nela medita dia e noite” (Sl 1, 2). Comes o pão material por uma hora e páras; comes o pão da palavra dia e noite. Se ouves, se lês, se comes; se nele pensas, ruminas, para seres um animal e não impuro (Lv 11, 3). È isto também o que a Sabedoria diz por meio de Salomão: “Na casa do sábio há tesouros preciosos, mas o insensato esbanja tudo” (Pr 21, 20). Aquele que engole para que se veja o que devorou é quem esquece aquilo que ouviu. Quem não esquece, porém, reflecte, e reflectindo rumina e ruminando, se deleita. Daí se dizer: “A reflexão te guardará e o entendimento amparar-te-á” (Pr 2, 11). Eis se te conserva na ruminação deste pão o Santo pensamento seguinte: “mas nunca vi o justo abandonado, nem seus filhos mendigar pão” (25 b c).

V. 26: “Sempre o vi compassivo e generoso” (26 a). Mas não se alegrem os usuários. Vemos aqui certo usurário. Como encontrámos uma espécie de pão, para que sempre, abrindo o telhado, cheguemos junto de Cristo. Não quero que sejais usurários; e não quero porque Deus não quer. Como se sabe que Deus não quer? Foi dito em outra passagem: “Aquele que não empresta o seu dinheiro com usura “ (Sl 14, 5). Deus te proíbe ser usurário, ordena-te dar de empréstimo; e diz-te: Empresta a Deus. Se emprestas a um homem, esperas alguma coisa; e se emprestas a Deus não esperarás? Se esperas receber mais do que deste és usurário; e isto é reprovável, não louvável. O que farei então, dizes, para emprestar com vantagem? Examina o que faz o usurário. Certamente quer dar menos e receber mais. Faz isto também tu. Dá coisas pequenas e recebe grandes. Vê como cresce largamente o teu empréstimo. Dá bens temporais, e recebe eternos; dá terra e recebe céu. E a quem darei, talvez me digas? Ouve a Escritura dizer-te com hás-de emprestar ao Senhor: “Quem dá ao pobre empresta ao senhor” (Pr 19, 17). O Senhor não necessita de ti, mas tens outro que necessita de ti. Dás a este e é Ele quem recebe. O pobre não tem com que retribuir: no entanto, quer retribuir, mas não tem com que pagar; só lhe resta a boa vontade de rezar por ti. Eis que Deus te diz na Sua Escritura: Dá tranquilo: Eu pago. Efectivamente, Cristo é Deus, e disto não se duvida e Ele disse: “Tive fome e me destes de comer”. E quando os justos lhe perguntaram: “Quando foi que te vimos com fome?” Para mostrar que é fiador do pobre, disse: “Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 34. 36). Escuta qual a propriedade que te dará aquele a quem emprestaste: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei”, O quê? O que destes? De modo nenhum. Vós destes bens terrenos que, se não tivésseis dado, apodreceriam na terra. O que se havia de perder na terra foi conservado no céu. Pois vê o que vais receber: “Em herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo”. Ao contrário, aqueles que não quiseram emprestar, o que ouvirão? “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado, para o diabo e para os seus anjos”. Como se chama o reino que havemos de receber? Atenção ao que se segue: “Estes irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna” (Mt 25, 34-46). Ambicionai esta recompensa, emprestai por causa dela. Tendes a Cristo, assentado nos Céus, e pedinte na terra.

“Por isso, a Sua descendência será abençoada” (26 b). Não se pense de modo carnal. Vemos muitos filhos de justos a morrer de fome; como então, “Por isso a Sua descendência será abençoada” (26 b)? Pois, diz o Apóstolo: “Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos” (Gl 6, 9. 10). Vê como o Apóstolo se refere expressamente à semente, ao falar de esmolas: “Ficai sabendo: Quem pouco semeia, também pouco há-de colher; mas quem semeia com generosidade, com generosidade também colherá” (2 Cor 9, 6). Será muito melhor no futuro quando não tivermos a quem dar. Quando todos se tornarem incorruptíveis, não haverá pranto para dares pão, nem sedento ao qual ofereças bebida, nenhum nu para vestires, nenhum peregrino para receberes. Aqui lançamos a semente no meio de tribulações, tentações, dores, gemidos. Mas olha para outro salmo: “À ida vão chorar, carregando e lançando as sementes”. Vê que “por isso, a sua descendência será abençoada” (26 b): “No regresso cantam de alegria transportando os feixes de espigas” (Sl 125, 6).

V. 27: “Afasta-te do mal e pratica o bem” (27 a). Não julgues que basta não espoliar o que está vestido; igualmente veste o nu; isto é apartar-se do mal e fazer o bem. E o que ganho com isto, dizes? Já te expliquei a quem deves emprestar, o que te dará. Ele dar-te à a vida eterna. Ouve como continua o salmo: “e então viverás para sempre” (27 b). Não penses que quando dás, que ninguém te vê; nem que Deus te abandone, se deres ao pobre e em seguida te acontecer algum prejuízo ou sentires tristeza por causa do que perdeste, dizendo a ti mesmo: De que serviu esta boa obra? Acho que Deus não ama os homens que fazem o bem. Donde procede esta vossa murmuração? Deus as elimine, e extirpe os espinhos de seu campo; plante bons frutos, árvores frutíferas. Presta atenção ao que disse o próprio Senhor, ao te exortar a tais boas obras: “Arranjai bolsas que não envelheçam, um tesouro inesgotável no Céu, onde o ladrão não chega” (Lc 12, 33). Lembra-te disso, quando te lamentas do prejuízo. Quem te roubou? Responderás: o ladrão. Eu não te avisei que não depositasse lá onde o ladrão pode alcançar? Se se lamenta quem perdeu, condoa-se por não ter colocado lá onde não poderia perder.

V. 28: “Porque o Senhor ama a rectidão e não abandona os seus fiéis” (28 a). Quando os santos passam por trabalhos, não penses que Deus julga, ou julga mal. Mas o santo passa fome? Deus não abandona; e castiga todo o que reconhece como filho (H 12, 6). Como é castigado? Com angústias temporais. Quando será enriquecido? Quando ouvir: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebe em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (Mt 25, 34).

Não receies o castigo, para estares entre aqueles que merecerão ser recebidos. E como castiga todo o filho que acolhe, nem o Unigénito Deus poupou, apesar de não se encontrar nele pecado. Visto que não os abandonará, acaso lhes dará o que amas aqui, viver muitos anos, envelhecer? Não dás atenção ao facto de que, apesar de desejares a velhice, estás desejando alguma coisa de que te queixarás quando vier.

“Os ímpios serão dizimados e a sua descendência será destruída” (28 b). A prole dos ímpios representa as suas obras. Pois, às vezes verifica-se que o filho de um ímpio progride no mundo, e torna-se justo, e também progride no mundo, e torna-se justo, e também progride em Cristo. Vê como tomarás o facto para abrires o telhado e alcançar a Cristo; não o faças carnalmente senão enganar-te-á. Mas todas as obras dos ímpios perecerão sem fruto. Durante algum tempo têm certo valor: depois eles procuram e não encontram o fruto do seu trabalho: “Que proveito tirámos do nosso orgulho? De que nos serviu a riqueza e a arrogância? Tudo isso desapareceu como a sombra” (Sb 5, 8).

V. 29: “Os justos possuirão a terra” (29 a). Há uma terra dos vivos, o reino dos santos. Daí a palavra: “Tu és o meu refúgio, a minha herança na terra dos vivos” (Sl 141, 6); aqui é, contudo, a terra dos que morrem, pronta a receber aqueles que ela nutriu enquanto vivos. Qual é aquela terra, tal é a própria vida. Se a vida é eterna, também a terra é eterna. E como é eterna a terra? “E nela viverão para sempre” (29 b). Será outra, pois, a terra onde habitarem pelos séculos dos séculos. Porque a respeito desta foi dito: “O céu e a terra passarão” (Mt 24, 35).

Vs. 30. 31. 32: “A obra do justo profere a sabedoria (30 a). Aqui está aquele pão; vede com que gosto o come este justo como saboreia a sabedoria. “E a sua língua fala sempre com rectidão. Ele trás no coração a lei do seu Deus” (30 b e 31 a). Não penses que o justo tem na boca o que não possui no coração. Não o contes entre aqueles dos quais foi dito: “Este povo honra-me só com os lábios, pois o seu coração está longe de mim (Is 29, 13). De que lhe serve? “Pois seus passos não vacilam (31 b). A palavra de Deus no seu coração livra-o da queda. Que mal pode sofrer quem é guardado por Deus? Colocas um guarda na vinha e ficas tranquilo a respeito dos ladrões. E, no entanto, aquele guarda pode dormir, cair e permitir a entrada do ladrão. “Pois não há-de dormir aquele que guarda Israel” (Sl 120. 4).

“Ele traz no coração a lei do seu Deus; por isso os seus passos não vacilam” (31). Viva em segurança, mesmo no meio dos maus viva em segurança, mesmo entre ímpios? Vê como continua: “O ímpio espia o homem justo e procura a maneira de o matar” (32). No livro da sabedoria foi predito que o injusto diria: “Só o facto de o vermos nos incomoda, pois a sua vida não é semelhante à dos outros” (Sb 2, 14. 15). Procura, por isso, dar a morte. E então? Como se realiza o que foi dito acima: “Porque o Senhor ama a rectidão e não abandona os Seus fiéis” (28 a)?

V. 33: “Mas o Senhor não há-de abandoná-lo nas mãos dos maus, nem deixará que o condenem em tribunal” (33). Por que então, entregou os mártires às mãos dos ímpios? A uns feriram com a espada, a outros crucificaram, a outros lançaram às feras, a outros queimaram. Afinal, por que entregou o seu Filho às mãos dos judeus? Aqui também, abre o telhado (Lc 5, 19), se queres atingir o íntimo; chega até ao Senhor. Ouve o que diz a outra Escritura: “Deixa a terra entregue às mãos do ímpio” (Job 9, 24). Que sentido tem a palavra: “Deixa a terra entregue ao ímpio?” A carne foi entregue às mãos dos perseguidores. Mas Deus ali não abandonou o justo; da carne aprisionada tirou a alma invencível. Deus teria abandonado o justo nas mãos do ímpio, se o deixasse consentir no querer do ímpio. Contra este mal, reza outro salmo: “Não escutes, Senhor, os desejos do ímpio; não permitas que se realizem os seus planos” (Sl 139, 9). Não aconteça que, desejando a vida presente, caias em poder dele, e percas a vida eterna. Por causa de que desejo, não deve ser entregue ao pecador? Daquele do qual se diz: “Eu, porém, jamais te incitei a enviar-lhes a desgraça” (Jr 17, 16). Aquele que deseja e ambiciona a vida terrena quando o adversário o ameaçar de lhe tirar o dia humano, porque o matará e ele perderá esta vida se ele não espera outra vida, desfalece e consente no que quer o inimigo. Ouve o que diz o Senhor: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma” (Mt 10, 28), embora a terra seja entregue às mãos do ímpio, a terra é apanhada mas o espírito escapa; e escapando o espírito, também a terra ressurgirá.

O espírito muda, junto do Senhor, a terra se mudará em Céu. Nada da terra se perde, apesar de ser entregue por certo tempo às mãos do ímpio. “Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” (Mt 10, 30). Há, portanto, segurança mas se Deus está no interior. Se o diabo é expulso Deus é recebido. Mas o Senhor não o entregará às mãos dele, nem o condenará quando for julgado. Ao começar Deus a ouvir a causa de Seu justo, “Com efeito, todos havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba conforme aquilo que fez de bem ou mal, enquanto estava no corpo” (2 Cor 5, 10).~

Quando o justo chegar ao juízo, Deus não o condenará embora temporariamente pareça condenado pelos homens.

Vs. 34. 35. 36: Mas quando será? Não penses que é agora tempo de semear, tempo de frio; apesar das chuvas, semeia. Virá o Verão que te alegrará de teres semeado. Mas, o que faço agora? “Confia no Senhor e segue os Seus caminhos” (34 a). E a seguir o que recebo? “Ele te honrará com a posse da terra” (34 b). Que terra? De novo não te ocorra à mente alguma propriedade. Trata-se daquela: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (Mt 25, 34). E o que será daqueles que nos afligiram, pelos quais em vão oramos; e o que será deles? “E então verás o extermínio do ímpio” (34 c). E verás de perto. Tu estarás à direita e eles à esquerda. Isto compete aos olhos da fé. Os que não possuem os olhos da fé, pensam que é inútil ser justos, porque vêem os ímpios prosperarem na terra. Mas quem possui os olhos da fé que o diz? “Vi um ímpio encher-se de soberba, expandir-se como uma árvore frondosa” (35). Imagina qual a consequência? “Tornei a passar e já não existia; procurei e não consegui encontrá-lo” (36). Por que já não existia, nem achei o seu lugar? Porque passaste.

Se ainda pensas carnalmente e esta felicidade terrena é a verdadeira felicidade, ainda não passaste. Ou és igual a ele ou inferior. Isto foi dito também mais acima neste salmo: “Os ímpios, porém, hão-de perecer, e os inimigos do senhor irão definhar como a erva dos campos e dissipar-se como fumo” (Sl 36, 20); a fumaça fica para trás se Deus está à tua frente. Não olhes desejoso para trás, como olhou a mulher de Lot, e ficou no caminho (Gn 19, 26); mas olha com desprezo, e verás que o ímpio já não existe. Qual é o seu lugar? Como tem poder, tem riquezas, tem certa posição nas coisas humanas, muitos lhe obedecem. Este lugar não existirá mais mas passará, de sorte que poderás dizer: “Passei, e já não existia”. Qual o significado de: “tornei a passar” (36 a)? Adiantei-me, cheguei aos bens espirituais, entrei no santuário de Deus.

V. 37: “Observa o homem errado, repara no homem justo” (37 a). Deves ter olhos correctos, para veres a direcção: não olhos malvados para veres os maus e distorcidos, de maneira que Deus te pareça torto e mau, por favorecer os ímpios e perseguir os fiéis. Corrige teus olhos. Não prestes atenção às coisas presentes. E o que verás? “Porque o homem de paz terá descendência” (37 b). Ao morrer não morrerás interiormente. Depois desta vida haverá para ele ainda alguma coisa; isto é aquela raça que será abençoada. Daí dizer o Senhor: “Quem crê em Mim, mesmo que tenha morrido, viverá” (Jo 11, 25).

V. 38: “Mas os pecadores serão todos exterminados” (38 a). “A descendência dos maus será destruída” (38 b). Restam alguns bens ao homem pacífico; portanto, os que não são pacíficos são ímpios. “Felizes os pacificadores porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 9).

Vs. 39. 40: “A salvação dos justos vem do Senhor; Ele é seu refúgio na hora da angústia. O Senhor os ajuda e liberta, defende-os dos ímpios e salva-os, porque nele se refugiam” (39, 40). Os justos toleram agora os pecadores, porque virá o tempo da separação, e a semente boa será retirada do meio daquela que há-de ser consumida pelo fogo. Uma será guardada no celeiro, e a outra será largada no incêndio eterno. Pois, estiveram juntos, anteriormente, o justo e o injusto, para que este suplantasse e o outro fosse experimentado; depois, no entanto, um será condenado e o outro coroado.



SALMO 38 (37)

Catequese


Versículo 1: “Salmo de David. Em memorial” (1). Investiguemos o que foi escrito para nós a respeito do santo profeta David, do qual descende segundo a carne nosso Senhor Jesus Cristo. O que significa esta memória? Pois é lembrado com gemidos. Ouvireis quanta tristeza há nele, quantos gemidos, quantos prantos, que miséria. Mas é feliz quem sofre essa miséria. Por isso, também o Senhor no Evangelho denominou felizes a alguns que choram (Mt 5, 4). Como pode ser feliz quem chora? Como pode ser feliz, se infeliz? Ao contrário, seria infeliz se não chorasse.

V. 2: Ele narra e recomenda a Deus a inquietação de que sofria receoso de qualquer coisa mais pesada do que a situação em que estava. Pois, diz claramente que estava no meio de males. Não há dúvidas, segundo suas palavras de que mal sofre. Se não temesse algo de pior do que o mal que o tomava, não começaria assim: “Senhor, não me repreendas com a tua ira, nem me castigues com a tua indignação” (2). Haveriam alguns de ser corrigidos com a ira de Deus, e serem corrigidos com o seu furor. E talvez nem todos os que serão corrigidos se emendarão; mas alguns que serão salvos, estarão entre os que serão corrigidos: Alguns serão corrigidos e não se emendarão. Pois são arguidos aqueles aos quais se dirá: “Tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, etc.”; O Senhor repreende certa desumanidade e esterilidade nos maus, colocados à esquerda, aos quais diz: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25, 41. 42).
O salmista, receando estes males, piores do que os desta vida, que o faz chorar e gemer, reage com estas palavras: “Senhor não me repreendas com a tua ira” (2 a). Não sejas do número daqueles aos quais dirás: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos” (2 b). Purifica-me nesta vida. Pois foi dito também: “Ele manifesta-se pelo fogo e o fogo provará o que vale a obra de cada um” (1 Cor 3, 12. 15).

V. 3: Por que suplica o salmista que não seja repreendido com furor, nem corrigido com ira? Parece dizer a Deus: Uma vez que já sofro tanto, e grandes males, peço que estes bastem. E começa a enumerá-los, dando satisfação a Deus, oferecendo-lhe seus padecimentos, para não sofrer piores males: “Em mim penetraram as tuas setas, caiu sobre mim a Tua mão” (3).

V. 4: “No meu corpo nada ficou são, por causa da tua ira” (4 a b). Já dizia o que sofria aqui na terra; porque era castigo do Senhor. Qual o castigo? O de Adão. Ele fora castigado, e não fora inutilmente que o Senhor lhe dissera: Morrerás (Gn 2, 17). Tudo o que sofremos nesta vida é devido àquela morte que merecemos pelo primeiro pecado. Efectivamente, temos um corpo mortal (que, de facto, não seria mortal), cheio de tentações, cheio de solicitudes, sujeito às dores corporais, enfermiço mesmo quando está são, porque na realidade ainda não está plenamente sadio. Pois, se não comerdes, a fome incomoda. Esta é uma espécie de doença natural, porque a natureza nos castiga, devido à pena do pecado. O que seria castigo para o primeiro homem constitui a nossa natureza. Daí, dizer o Apóstolo: “Nós, que estávamos mortos pelas nossas faltas, deu-nos a vida com Cristo” (Ef 2, 5). Isto é, portadores do castigo. Por que motivo diz: “Estávamos mortos?” Porque em esperança já não o estamos: na realidade, ainda somos. Diz o Apóstolo: “Bem sabemos como toda a criação geme e sofre. Também nós próprios gememos, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo” (Rm 8, 22. 23).

“De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora, uma esperança naquilo que se vê, não é esperança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que temos de aguardar” (Rm 8, 24-25). O que aguarda na perseverança? A salvação. De quê? Do próprio corpo, porque o disse: “A redenção do nosso corpo”. Disse: “No meu corpo nada ficou são por causa da tua ira” (4 a b). E quais são as setas que me atingiram? A pena, o castigo, e talvez as dores que necessariamente se sofrem na terra. O Santo Job refere-se a estas setas. Sofrendo aquelas dores. Disse ter sido atingido pelas setas do Todo-Poderoso (Job 6, 4). Costumamos igualmente tomar as setas na acepção da palavra de Deus. As palavras de Deus como setas, excitam o amor, não a dor. Ou seria porque o próprio amor não poderia existir sem a dor? Necessariamente nos condoemos quando não temos o que amamos. Quem, porém ama, e ainda não possui o que ama, forçoso é gemer. Daí a palavra no Cântico dos Cânticos. “Porque eu desfaleço de amor” (Ct 2, 5 e 5, 8).

“Nada há de são nos meus ossos, por causa do meu pecado” (4 c d). Costuma-se perguntar de quem é a voz. Alguns tomaram-na aqui como sendo de Cristo, por causa de certas expressões no salmo referentes à paixão de Cristo. Mas como se diria: “Nada há de são nos meus ossos, por causa do meu pecado” (4 c d), aquele que nenhum pecado cometeu (1 Pd 2, 22)? Portanto, trata-se de Cristo pleno e total, isto é, Cabeça e Corpo. Quando Cristo fala, às vezes fala somente em lugar da Cabeça, que é o próprio Salvador, nascido de Maria Virgem; por vezes, em lugar de seu Corpo, que é a Santa Igreja, espalhada por toda a terra. Também nós estamos no seu Corpo, se for sincera a nossa fé nele, firme a esperança, ardente a caridade, conforme a palavra do Apóstolo: “Porque nós somos os membros do seu Corpo” (Ef 5, 30). Pois se dissermos que não são palavras de Cristo, não serão também suas aquelas palavras: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” Mt 27, 46)? E se Cristo não tem pecado nem delito começamos a julgar que não são dele as palavras daquele salmo. Seria dureza e contradição dizer que aquele salmo não se refere a Cristo, quando conhecemos tão claramente a paixão, conforme se lê do Evangelho. Lá, de facto, temos: “Repartem entre si a minhas vestes e sorteiam a minha túnica” (Sl 21, 19). Por que motivo o próprio Senhor crucificado: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” O quis dar a entender senão que todo aquele salmo se refere a si mesmo, uma vez que repetiu o começo dele? O versículo continua: “Por causa do meu pecado” (4 d); não há dúvida que se trata da voz de Cristo. De onde vêm, então os pecados, a não ser do Corpo que é a Igreja? Pois aqui falam o Corpo de Cristo e a Cabeça. Porque falam como se fosse um só homem? Porque, diz o Apóstolo: “Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. E grande é este mistério; mas eu interpreto em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5, 31. 32). Igualmente, ao falar de Cristo no Evangelho, respondendo aos que lhe apresentaram a questão do divórcio declarou: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher, e disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e serão os dois um só? Portanto, já não são dois mas um só” (Mt 19, 4-6). Se, pois, Ele disse: “Já não sois dois mas um só”, não é de admirar que como uma carne, cabeça e corpo, imanem também uma carne, uma língua e as mesmas palavras. Portanto, ouçamos somente um, porém, sendo a cabeça cabeça e o corpo corpo. Porque a Cabeça salva e o Corpo é salvo. A Cabeça demonstra misericórdia, o corpo chora a sua miséria. A Cabeça purifica, o corpo confessa os pecados. A voz, contudo, é uma só, quando não está escrito o que diz o Corpo, o que diz a Cabeça. Nós, ao ouvirmos, distinguiremos; ele, porém, fala como se fosse um só.

“Nada há de são nos meus ossos” (4 c). Expõe a justiça da ira de Deus. Anuncia a causa da ira de Deus: “Não há nada de são nos meus ossos por causa do meu pecado” (4 c d).

V. 5: “Os meus pecados pesam sobre a minha cabeça e como um fardo excessivo me oprimem” (5). Primeiro enunciou a causa, depois acrescentou o efeito. Soberbo é o iníquo, cuja cabeça é levantada. Ergue-se para o alto aquele que levanta a cabeça contra Deus. Ouvistes a leitura do Livro do Eclesiástico: “O princípio do orgulho do homem é afastar-se do Senhor” (Eclo 10, 12). Como é leve o que pode ser erguido, ele recebe um peso, que o oprime: “A sua malícia recairá sobre a cabeça, e a sua violência sobre a sua fronte” (Sl 7, 17).

V. 6: As minhas chagas são fétidas e purulentas, por causa da minha loucura” (6). Não é sadio o que tem feridas. Ainda mais se as feridas estão infectadas e purulentas. Tenha alguém apurado o olfacto da alma e sentirá como os pecados são fétidos. Contrário a este cheiro dos pecados é aquele odor do qual diz o Apóstolo: “Porque somos para Deus o bom odor de Cristo; para aqueles que se salvam” (2 Cor 2, 15). Uma coisa é o que deploramos nesta vida, outra o que presumimos na outra. O que se deplora é fétido, o que se presume é odorífero. Mas, como temos pelo Espírito este odor, de sorte a dizermos ao Esposo: “Ao olfacto são agradáveis os teus perfumes” (Ct 1, 3), preservamos nosso olfacto de nossos maus cheiros, e voltando-nos para o bom odor, respiramos aliviados. Mas se não sentíssemos como são fétidos nossos males, nunca confessaríamos com estes gemidos: “As minhas chagas são fétidas e purulentas” (6 a). Donde se originam? “Por causa da minha loucura” (6 b).

V. 7: “Ando cabisbaixo e profundamente abatido” (7 a). Porque era orgulhoso. Se fores humilde, serás exaltado. A Deus não faltará um peso para te curvar. “O corpo corruptível é um peso para a alma e oprime a mente cheia de cuidados” (Sb 9, 15). “Caminho todo o dia na tristeza” (7 b). Todo o dia quer dizer toda a vida.

V. 8: “As minhas entranhas ardem de febre; nada de são há no meu corpo” (8). O homem todo consta de alma e corpo. A alma está cheia de ilusão, o corpo não tem saúde; o que lhe resta para alegrar-se? Teremos tristeza até que nossa alma se livre de ilusões, e nosso corpo recupere a saúde. Esta é a verdadeira saúde, a imortalidade. Lembro rapidamente como nossa alma está repleta de ilusões. Diante delas algumas vezes mal conseguimos rezar. Não podemos pensar nos corpos, senão por imagens. Como a ilusão é o castigo da alma, a verdade é o seu prémio. Cristo é a verdade, a nós prometida; ao aparecer sua carne, começou a fé, cujo prémio é a verdade. Cristo não se mostrou na terra tal qual Ele é em si mesmo, mas mostrou a sua carne. Pois, se Ele se revelasse a si mesmo, os judeus o reconheceriam ao vê-lo; pois se o tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória (1 Cor 2, 8). Talvez o tenham visto os discípulos, quando lhe diziam: “Mostra-nos o Pai e isto nos basta”. Ele, porém, mostrando que os discípulos não O haviam visto, acrescentou: “Há tanto tempo estou convosco e não me conheceis? Filipe, quem me vê, vê o Pai”. Se eles viam a Cristo, como ainda procuravam o Pai? Em outro lugar, Cristo prometeu que o veriam, como prémio: “Quem recebe os meus mandamentos e os observa esse é que me tem amor; e quem me tiver amor será amado por meu Pai e Eu o amarei”. Como se lhe fosse perguntado: o que darás a quem te ama? “E hei-de me manifestar a Ele” (Jo 14, 8. 9. 21).

V. 9: “Estou fraco e muito alquebrado” (9 a). Por isto, diz outro Salmo: “Na minha ansiedade, eu dizia: «Fui banido da tua presença» ” (Sl 30, 23).

Arrebatada, a mente viu algo de sublime, e que ele não se achava totalmente ali. Vi em êxtase, mais ou menos, a realidade, sinto que estou distante e que ali ainda não estou. Lá já estava aquele que disse ter sido arrebatado ao terceiro céu, e ouvido palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir. Mas voltou novamente para junto de nós, a fim de que em gemidos, se aperfeiçoasse primeiramente, no meio de fraquezas, e depois se revestisse de força. No entanto, animado por ter visto um pouco daquelas realidades, em vista do seu ministério, acrescentou: “Ouvi palavras inefáveis que não é permitido a um homem referir” (2 Cor 12, 4). Se não lhe foi lícito falar, seria lícito ouvir?

Choremos, contudo, e gemamos em confissão, reconheçamos onde nos encontramos, e com paciência esperemos o que o Senhor prometeu, Ele que em si nos deu o exemplo de paciência: “Estou fraco e muito alquebrado” (9 a).

“Elevam-se bem alto os gemidos do meu coração” (9 b). Observais que muitas vezes os servos de Deus suplicam com gemidos, e procurais qual o motivo. Mas quem pode entender, senão aquele diante de cujos olhos e ouvidos este homem geme? Uma vez que os homens se acaso ouvem os gemidos de alguém, em geral ouvem o gemido da carne, mas não ouvem os gemidos do coração. Alguém tirou os bens deste homem; arrancou-lhe gemidos, mas não gemidos do coração. Outro ruge porque perdeu o filho; outro porque a cuba fermentou, outro porque tem medo do inimigo. Todos esses rugem, com gemidos da carne. O servo de Deus a quem arranca rugidos a lembrança do Sábado, onde se acha o Reino de Deus, que o homem terreno não possuirá (1 Cor 15, 50). Diz: “Elevem-se bem alto os gemidos do meu coração” (9 b).

V. 10: E quem sabia porque ele gemia? O salmista acrescentou: “Senhor, diante de ti estão os meus desejos” (10 a). Não diante dos homens, que não podem ver o coração. Esteja diante dele o teu desejo; e o Pai que vê o oculto, há-de recompensar-te” (Mt 6, 6). Teu desejo é tua oração; e se o desejo é contínuo, contínua é a oração.

Com razão disse o Apóstolo: “Orai sem cessar” (1 Ts 5, 17). Acaso sem interrupção dobramos os joelhos, ou levantamos as mãos, para que Ele diga: “Orai sem cessar”? Existe outra oração sem interrupção, que é o desejo. Seja o que for que faças não interrompas a oração. Se não queres interromper a oração, não cesses de desejar. Calarás se desistires de amar. Quais são os que calaram? Aqueles dos quais foi dito: “E porque se multiplicará a iniquidade, vais resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12). Esfriamento da caridade é o silêncio do coração. Se a caridade sempre permanece, sempre clamas; sempre clamas, sempre desejas; e se desejas lembras-te do repouso. Considera qual o desejo que se deve apresentar aos olhos de Deus. Será para que morra nosso inimigo? Pois, algumas vezes, pedimos o que não devemos. Mas também aqueles que rezam para que morram os inimigos, ouçam o Senhor dizer: “Orai pelos que vos perseguem” (Mt 5, 44). Não rezem para que morram, mas rezem para que se corrijam, pois depois de se corrigirem, já não serão inimigos. Se o desejo está na presença do Senhor, o gemido não estará? Como pode ser isto, se a voz do desejo é o gemido? Daí a sequência: “E não desconheces o meu lamento” (10 b). De ti não estão escondidos, mas de muitos homens sim.

V. 11: “O meu coração palpita, faltam-me as forças” (11 a). Surge, por vezes, um imprevisto. O coração se perturba. A terra treme, vem um trovão do céu. O coração se perturba. Sente pavor. Cuidados aparecem de todos os lados. Por quê? Porque “faltam-me as forças”. Mas, donde vem aquela perturbação? “E até já me falta a luz dos olhos” (11 b). Abandonou Adão a claridade de seus olhos. Pois, a claridade de seus olhos era o próprio Deus. Tendo-O ofendido, Adão fugiu para a sombra, e escondera-se entre o arvoredo do jardim (Gn 3, 8). Se ele a perdeu originalmente, e nós, enquanto somos sua descendência, voltamo-nos para o segundo ou novo Adão, como seus membros, porque o novo Adão é espírito vivificante. E clamamos no seu Corpo confessando: “O meu coração palpita, faltam-me as forças, até já me falta a luz dos olhos” (11). E este que confessa já reunido, já no Corpo de Cristo, abandona-o a claridade de seus olhos? Abandona-o certamente; está, porém, com ele, enquanto é um daqueles que vêem na esperança. Todavia, ainda não é a verdadeira claridade, da qual se fala: “Hei-de manifestar-me a ele” (Jo 14, 21). Há certa luz, porque somos filhos de Deus, e de facto nós a conservamos na fé; mas ainda não se trata da luz que veremos. “Mas o que nós seremos ainda não se manifestou”. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1 Jo 3, 2). Agora há a luz da fé e a luz da esperança. “Permanecendo neste corpo, vivemos exilados, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão” (2 Cor 5, 6. 7). “Se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que temos de aguardar” (Rm 8, 25). Essas palavras são próprias de peregrinos, ainda fora da pátria. E ele diz com razão, confessará verdadeiramente: “E até já me falta a luz dos olhos” (11 b). Todas essas coisas sofre o homem interiormente, onde se encontra consigo mesmo, em si e para si. Ele próprio mereceu as penas acima enumeradas.

V. 12: Mas, seriam apenas estes os sofrimentos humanos? Interiormente os padecimentos vêm de si mesmo, exteriormente, porém, são provenientes daqueles entre os quais se vive. Padece de Deus males, e é obrigado a sofrer também os dos outros. Daí as duas palavras: “Quem poderá discernir os próprios erros? Perdoa-me os que são desconhecidos” (Sl 18, 13). Já confessou os pecados ocultos, dos quais quer ser purificado; diga também os alheios dos quais quer ser poupado. “Os meus amigos e companheiros afastam-se da minha desgraça” (12 a b). Já aprendemos as vozes da Cabeça, começa a brilhar nossa Cabeça na paixão. Mas ainda, ao começar a Cabeça a falar, não separes dela o Corpo. Se a Cabeça não quis separar-se da voz do Corpo, ousará o Corpo separar-se da paixão da Cabeça? Sofre em Cristo, porque Cristo pareceu pecar em tua fraqueza. Pois agora aludia aos teus pecados com sua boca e os dizia seus. Não aconteceu a Ele ter de suportar amigos que se fizeram inimigos, e, a nós, não. Ao contrário, também nós nos preparemos a participar do mesmo sofrimento; não recusemos beber de tal cálice, de sorte que, pela humildade encontremos o desejo de sua exaltação. Cristo respondeu aos apóstolos que ambicionavam obter a sua glória e ainda não cogitavam da humildade: “Podeis beber o cálice que Eu estou para beber” (Mt 20, 22)? Em consequência, a paixão do Senhor é a nossa paixão.

“Os meus parentes ficam ao longe” (12 c). Quais os próximos que se aproximam e quais se mantiveram à distância? Próximos eram os judeus, porque eram da mesma nação. Aproximaram-se também quando o crucificaram. Próximos eram igualmente os apóstolos; e, no entanto, ficaram de longe para não sofrerem com Ele. Os judeus fizeram-se de amigos ao dizerem: “Sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus” (Mt 22, 16); quando quiseram pô-lo à prova, perguntando se convinha pagar o tributo a César, quando eles os convenceu pela sua própria boca, eles queriam parecer amigos. Mas Ele não precisava de testemunho a respeito de homem algum, porque os conhecia a todos (Jo 2, 25). Por isso, tendo eles proferido palavras amigáveis, respondeu-lhes: “Hipócritas! Porque me tentais hipócritas” (Mt 22, 18)? Aproximaram-se corporalmente, mas mantiveram-se à distância pelo coração. Quais estavam mais próximos corporalmente do que os que ergueram a cruz? Quais se achavam mais distantes pelo coração do que os que blasfemaram? Ouvi o profeta Isaías falar desta distância; vede esta proximidade e esta distância: “Este povo aproxima-se de mim só com palavras e honra-me só com os lábios, pois o coração está longe de mim” (Is 29, 13). Todavia, como os apóstolos se detiveram, distantes, receosos, de maneira mais directa e clara a eles aplicamos estas palavras, entendendo que uns se achegaram e outros ficaram longe. De facto, até Pedro, que O havia seguido com certa audácia, de tal modo ainda se achava longe, que por três vezes O negou. Posteriormente, para se tornar mais próximo, ele, que estava distante, ouvia, após a ressurreição, a pergunta: “Tu és deveras meu amigo” (Mt 26, 70; Jo 21, 17)? Respondeu: “Eu sou deveras teu amigo”. Assim falando se aproximava, ele que negando se tornara distante, até que pela tríplice palavra de amor fosse absolvido da tríplice negação.

V. 13: “Preparam ciladas os que atentam contra a minha Vida” (13 a). Evidencia-se que tramavam contra a sua vida, os que não a possuíam, por não serem de seu Corpo. Em outra passagem censura outros: “Não se interesse por mim” (Sl 141, 5). Quem é que procura com rectidão a sua vida? Os que imitam a sua paixão. Quais os que procuram com má intenção a sua vida? Os que agiam com violência e os que O crucificavam.

“Insultaram-me os que me querem mal” (13 b). Qual o sentido? Talvez queira dizer: Procuravam crimes em mim. Procuravam um depoimento falso contra Jesus. Mas não o encontraram (Mt 26, 59. 60). Quando encontrariam algo naquele que nenhum pecado cometera? Por isso: “Passam o dia a magicar traições (13 c), não a verdade. Isto é, sem cessar planeavam mentiras. Sabeis quantos falsos testemunhos foram levantados contra o Senhor, antes da paixão. Sabeis quantos falsos testemunhos, mesmo depois da ressurreição. Disse Isaías: “Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios” (Is 53, 9). Foram também eles interrogados, e disseram: “De noite, enquanto dormíamos, os seus discípulos vieram e roubaram-no” (Mt 28, 13).

Vs 14. 15: Por isso, diz o salmista: “Eu, porém, sou como um surdo, que não dá ouvidos; ou como um mudo, que não abre a boca” (14). E repete: “Tornei-me como um homem que não ouve e não tem réplica em sua boca” (15). Como se Ele não tivesse o que lhes dizer. Anteriormente, já não censurava muitas coisas, não declarava: “Ai de vós, doutores da lei e fariseus hipócritas!” etc. (Mt 23, 13)? No entanto, quando sofria, nada disso proferia. Não quer dizer que não tivesse o que dizer, mas esperava que se cumprisse nele todas as coisas, que se realizassem todas as profecias a seu respeito, conforme fora dito: “Como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador, não abriu a boca” (Is 53, 7).

Viera pois para ser julgado, mas, posteriormente, virá para julgar. Há-de julgar com grande poder, porque foi julgado em grande humildade.

V. 16: “Pois confio em ti, Senhor, e Tu me respondes, Senhor, meu Deus” (16). Prossegue com se alguém lhe dissesse: Porque não abriste a boca? Admoestei-te a respeito do que hás-de fazer, se ocorrer uma tribulação. Procuras defender-te, e talvez ninguém aceite tua defesa. Conserva interiormente tua inocência se prevaleceu contra ti o falso testemunho, foi diante dos homens; acaso isto valerá diante de Deus, onde tua causa será julgada? Quando Deus for juiz, não haverá outra testemunha do que a tua consciência.

V. 17: “Eu disse: «não se riam à minha custa, nem se alegrem se o meu pé resvalar” (17). Novamente volta à fraqueza do seu Corpo, e a Cabeça mais uma vez atende a seus pés. Ela não se acha no Céu de tal modo que abandone o que possui na terra.

De facto, dá atenção, ela vê-nos. Às vezes nossos pés resvalam e caem em algum pecado; logo aparecem as línguas malignas dos inimigos. Talvez para minha emenda permitiste que falassem com arrogância a meu respeito, “nem se alegrem se meu pé resvalar” (17 b), isto é, orgulharam-se, disseram muito mal, quando eu estava abalado. Deviam ter-se compadecido dos fracos e não se alegrar, conforme exprime o Apóstolo: “Irmãos, se porventura um homem for apanhado nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão”. E completa: “E tu, olha para ti próprio, não estejas também a ser tentado” (Gl 6, 1). Eram como foram descritos em outra passagem: “Nem meus adversários se alegrem com a minha queda” (Sl 12, 5).

V. 18: “Sim, estou prestes a cair” (18 a). Como se dissesse: nasci par suportar castigos. Mas algumas vezes os pecadores nesta vida são pouco ou nada castigados, porque a sua meta já não dá esperanças. Ao invés, aqueles para os quais está preparada a vida eterna, forçoso é que sejam castigados, porque é verdadeira a sentença: “Meu filho, não rejeites a correcção do Senhor, nem te irrites quando Ele te responder, pois o Senhor castiga aquele a quem ama, como um pai a um filho querido” (Pr 3, 11. 12). Se não queres o castigo não te é dada a herança. É necessário castigar os filhos. Todo o filho é castigado, a tal ponto que Deus não poupou aquele que não cometeu pecado (1 Pd 2, 22).

Vs. 18. 19: “A minha dor está sempre presente” (18 b). Qual? Talvez a do castigo. Dir-vos-ei a verdade, os homens lastimam os castigos mas não lastimam o motivo deles. Qualquer que sofra prejuízo, sente-se inclinado a dizer: Sofro sem merecer, em vez de ponderar porque razão sofreu. Se o coração está cheio daquele que é seu bem, o teu Deus, por que não dizes: “O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Job 1, 21)?

“A minha dor está sempre presente” (18 b). Que dor? De onde vem? Porque diz ele: “Por isso confesso a minha culpa, estou inquieto por causa do meu pecado” (19). Eis a proveniência da dor. Não se originou do flagelo. Procede da ferida. Pois o flagelo é o medicamento contra os pecados. Não te sintas seguro, quando houveres confessado o teu pecado; mas sempre estás pronto a confessar e acometer pecados. Confessa tua iniquidade, mas preocupa-te com o teu pecado. O que significa: preocupa-te com o teu pecado? Preocupar-se com o teu pecado quer dizer esforçar-se sempre, empenhar-se, sempre agir diligentemente, com aplicação para curar o pecado. Choras o teu pecado, talvez corram as lágrimas, e as mãos fiquem ociosas. Dêem-se esmolas, para a remissão dos pecados. Alegre-se o necessitado com a tua dádiva e tu alegras-te com o dom de Deus. Ele necessita, mas também tu estás necessitado; ele precisa de ti, e tu precisas de Deus. Portanto, socorre o pobre, o indigente, a fim de que Deus encha o teu íntimo.

V. 20: “Os meus inimigos são poderosos” (20 b). Estão bem, gozam de felicidade no mundo, enquanto eu labuto, e arranca-me rugidos o gemido do meu coração. Como vivem os inimigos daqueles que já disse a respeito de seus inimigos que eles preferem coisas vãs? “Seus celeiros estão repletos de abundantes e variados frutos; multiplicam-se por milhares os rebanhos. Vêm bem carregados os animais. Não há brechas nem fugas, nem gritos de alarme nas ruas” (Sl 143, 13-15). É vida para sua perdição. Qual o significado de “multiplicam-se os que me odeiam sem razão” (20 b). Eles odiaram a alguém que lhes desejava o bem. Estes, porém, que odiaram injustamente pagam o bem com o mal. Tais foram os judeus. Cristo veio par eles, trazendo bens, e eles lhe retribuíram o bem com o mal.

V. 21: “Os que me pagam o bem com o mal perseguem-me, porque procuro fazer o bem” (21). Por conseguinte, o mal em paga do bem. Ouve a nossa Cabeça a gemer na paixão: E rejeitaram a mim, o bem-amado, qual morto abominável. Era pouco estar morto? Por que ainda abominável? Porque crucificado. De facto a morte da cruz era para os judeus a maior abominação, porque não entendiam a profecia: “Pois o que for enforcado é um maldito” (Dt 21, 23).

Não foi o crucificado que introduziu a morte no mundo, mas a encontrou difundida aqui, pela maldição do primeiro homem; mas Ele aceitou a nossa mesma morte, proveniente do pecado e a suspendeu no madeiro. Aquela morte não era falsa, mas provinha da propagação do género humano, maldito na origem, segundo dissera Deus: “Morrerás” (Gn 2, 17). Como a Ele chegou a verdadeira morte, para que chegássemos à verdadeira vida, também caiu sobre Ele a maldição da morte para que alcançássemos a benção da vida.

V. 22: “Senhor, não me desampares! Meu Deus, não te afastes de mim” (22). Ele é quem intercede por nós (Rm 8, 34). E no entanto, Ele dissera: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” (Mt 27, 46 e Sl 21, 2)? Aqui, profere: “Meu Deus, não te afastes de mim” (22 b). Se Deus não se retira do Corpo, há-de retirar-se da Cabeça? De quem era essa voz senão do primeiro homem? Cristo, para mostrar que possuía verdadeira carne, oriunda daquele diz: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste”? Deus não O abandonou. O Deus único, Pai, Filho e Espírito Santo, não te abandonam, a ti que nele crês; haveria de abandonar a Cristo? Mas Ele tomara o lugar do primeiro homem. Sabemos, segundo o dito do Apóstolo, que o “homem velho que havia em nós foi crucificado com Ele” (Rm 6, 6). Estaríamos no estado antigo, se Ele não tivesse sido crucificado, no estado da nossa fraqueza. Renovamo-nos, desejando-O e imitando a sua paixão.

V. 23: “Vem depressa socorrer-me, Senhor, minha salvação”(23). Esta é a salvação procurada pelos profetas, conforme diz o apóstolo Pedro, mas não a receberam os que a procuravam. Viemos nós e encontrámos o que eles procuraram, porém, ainda O recebemos; nascerão outros depois de nós e encontrarão o que nem eles haverão de receber e passarão, para que todos nós juntos, no fim do dia, recebamos o denário (Mt 20, 9) da salvação, com os patriarcas, os profetas e os apóstolos. Efectivamente, sabeis que os operários, contratados em diferentes épocas para a vinha, receberam, no entanto, igual recompensa. Tanto os profetas, como os apóstolos e mártires, e também nós, e os que virão depois de nós até ao fim dos séculos, no fim haveremos de receber a salvação eterna. Contemplando a glória de Deus, e vendo a sua face, havemos de louvá-Lo eternamente, sem desfalecer, sem qualquer pena da iniquidade, nem perversidade do pecado, mas aderindo a Ele. Estaremos naquela cidade, onde nosso bem é Deus, nossa luz é Deus, nosso pão é Deus, nossa vida é Deus. Encontraremos nele todo o nosso bem, em vista do qual habitamos em nossa peregrinação. Nele estará o repouso.



SALMO 39 (38)

Catequese

Versículo 1: Ao director do coro. Para Jedutum, salmo de David.

V. 2: “Eu disse a mim próprio: «Vigiarei sobre a minha conduta, para não pecar com a língua» ” (2). E como é difícil que alguém não deslize e peque, pois está escrito: “Se alguém não pecar pela palavra, esse é um homem perfeito” (Tg 3, 2). Não é inutilmente que a língua é húmida; por isso facilmente escorrega. Vendo, quanto é difícil, uma vez que o homem necessita falar, que não profira algumas palavras que preferia não ter dito, aborrecido por causa destes pecados, procura evitá-los. Por conseguinte, como lhe aconteceu tal coisa, decidira não falar, para não proferir algo de que se arrepender. É isto que indicam a suas primeiras palavras: “Eu disse a mim próprio: «Vigiarei sobre a minha conduta, para não pecar com a língua» ” (2). Pondera o que hás-de dizer, examina, consulta interiormente a Verdade, e assim fala ao ouvinte de fora. A alma, por vezes perturbada, pelo esforço de se expressar, falha por falta de reflexão; então fala alguma coisa que não deveria dizer. Contra esse mal o melhor remédio é o silêncio. Acha-se, então, presente um pecador, com peculiar conotação: orgulhoso e invejoso. Ouve aquele que atravessa a falar, capta as palavras, arma ciladas. É difícil que não se encontre algo que tenha sido proferido como não se devia. Mas ele, ao ouvir, não perdoa e, por inveja, calunia.

Contra esses tais Jedutum decidira calar. Por causa de quem, então, queres vigiar sobre tua conduta, a fim de não pecar com a língua, e pões guarda à tua boca?

“Refrearei a minha boca, enquanto o ímpio estiver diante de mim” (2 b). O que direi, finalmente, como darei satisfação? Falo de coisas espirituais a um homem carnal; por fora vê e ouve, interiormente é um homem carnal; por fora vê e ouve, interiormente é surdo e cego. “O homem terreno não aceita o que vem do Espírito de Deus” (1 Cor 2, 14). Se não houvesse homem carnal, quando haveria calúnia? “Feliz o que encontrou a prudência, e o que a expõe aos ouvidos que a escutam” (Eclo 25, 10) e não os ouvidos de um pecador que toma posição contra ele.

Eram destes últimos os numerosos judeus que cercavam Cristo e a seu redor estavam enfurecidos, quando Ele “como cordeiro que é levado para o matadouro ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador” (Is 53, 7). O que dirás aos orgulhosos, turbulentos, caluniadores, litigiosos, loquazes? Se mesmo o Senhor disse aos que O ouviam de bom grado, desejosos de aprender, famintos do alimento da verdade: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora” (Jo 16, 12)? E o Apóstolo: “Quanto a mim, não pude falar-vos como a simples homens espirituais, mas como a homens carnais, como a criancinhas em Cristo. Foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. Nem mesmo agora podeis, visto que sois ainda carnais” (1 Cor 3, 12). Não te apresses para ouvir o que não compreendes, mas cresce para compreenderes. Assim dirigimos a palavra ao pequenino, que deve ser alimentado no seio da mãe Igreja com piedoso leite, para torná-lo idóneo a se aproximar da mesa do Senhor. O que falar de semelhante ao pecador que toma posição contra mim, e julga-se capaz ou finge sê-lo, daquilo que não entende? Por isso, diante do pecador que toma posição contra mim, “Refrearei a minha boca, enquanto o ímpio estiver diante de mim” (2 b).

V. 3: E como prossegue? Receoso de falar para não pecar, “Fiquei calado e em silêncio, mas sem proveito” (3 a). Enquanto receava demais falar palavras más, calei as boas. “Porque se agravou a minha dor” (3 b). Com o silêncio, de certo modo descansara da dor que caluniadores e críticos me haviam infligido. Cessara a dor causada pelos caluniadores; mas ao abster-me de palavras boas, recrudesceu a minha dor. Tu te esqueceste de que és servo, estabelecido pelo Senhor à frente da sua família, para os alimentar a seu tempo (Mt 24, 45)? Como queres receber se és preguiçoso para dar? Comecei a sentir mais por ter calado o que devia falar do que sentira por ter dito o que não devia “agravou-se a minha dor”.

Vs. 4, 5: “O coração ardia-me no peito; de tanto pensar nisto, esse fogo avivava-se” (4 a). Meu coração começou a ficar inquieto. Via os insensatos, e definhava sem censurá-los; e assim calado o zelo de tua casa me consome (Sl 68, 10).

Considerei meu Senhor, a dizer: “Servo mau e preguiçoso! Devias ter levado o meu dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, teria levantado o meu dinheiro com juros” (Mt 25, 26-27). Livre Deus os seus ministros do que se segue: “Lançai-o nas trevas exteriores” (Mt 25, 30). O salmista, nesta hesitação entre falar e calar; periclitando para não lançar as pérolas aos porcos, periclitando para dar o alimento aos companheiros de serviço; nesta tribulação, procurou outro lugar melhor, longe deste ministério, no qual o homem tanto labuta e corre perigo. Suspirando por certo fim, quando não sofrerá mais estes males, quando o Senhor dirá ao bom despenseiro: “Entra no gozo do teu Senhor” (Mt 25, 21), disse: “e deixei a minha língua dizer” (4 b). A quem? Não a um ouvinte a quem procuro ensinar, mas àquele que me atenderá e por quem desejo ser esclarecido, àquele a quem ouço interiormente, que ouço o que é bom, o que é verdade. O que falou? “«Senhor, dá-me a conhecer o meu fim»” (5 a).

Ultrapassei algumas metas e cheguei a outras; mas ainda resta o que ultrapassar. Pois não permaneceremos aqui, onde sofremos tentações, escândalos, ouvintes e caluniadores. Refere-se ao fim que o Apóstolo visava ao correr; confessava sua imperfeição, por ver em si uma coisa e procurar em outro lugar coisa diferente. Pois, diz:”Não que já o tenha alcançado ou que seja perfeito”. Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado. Se o Apóstolo não é perfeito eu é que sou perfeito? O que me propões imitar a seguir? Diz ele: “uma coisa faço: esquecendo-me daquilo que está para trás, e lançando-me para o que vem à frente, corro em direcção à meta para o prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus” (Fl 3, 12-14). Não recaiamos naquilo que já ultrapassámos, nem nos detenhamos no poste onde chegámos. Corramos, empenhemo-nos, estamos a caminho. Um só, porém; Ele é aquela única coisa. “ «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta» ” (Jo 14, 9). Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei. Habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida. Para quê? “Para saborear o encanto do Senhor” (Sl 26, 4).

Ali me alegrarei por causa dos companheiros, não temerei os adversários; ali, o que contempla comigo é amigo e não inimigo caluniador. Naquela luz visse a luz, e “ao abrigo da tua face, Tu os guardas das intrigas dos homens” (Sl 30, 21), onde diria: Aqui estou bem, nada mais quero, amo a todos, e não temo a ninguém. O Apóstolo se recomenda a seus ouvintes, aos quais pregava a palavra de Deus (Cl 4, 3). Portanto, rezai por nós, irmãos, para que vejamos claramente o que devemos ver, e digamos com exactidão o que nos cabe dizer. “E o número dos meus dias” (5 b). No entanto: “Mas Tu permaneces sempre o mesmo, os teus anos não têm fim” (Sl 101, 28). Faz-me conhecer o número de meus dias. Pois, deficiente como sou, quase não existo; esqueço-me daquele que disse: “Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14). Existe, portanto, algum número de dias? Existe e é sem fim. Procuro aquele simples é, aquele é genuíno, aquele é verdadeiro, aquele é da Jerusalém esposa de meu Senhor, onde não haverá morte, nem falha, onde haverá um dia que não passa, mas que permanece, que não é precedido por um ontem, nem avança para um amanhã.

“Para que veja como sou efémero” (5 c). Nos meus trabalhos, falta-me isto, e enquanto me faltar, não me digo perfeito; enquanto não o recebo, digo: “Não que já o tenha alcançado, ou já seja perfeito. Mas corro para ver se o alcanço, o prémio a que Deus lá do alto, nos chama, em Cristo Jesus” (Fl 3. 12. 14). O fim da corrida será a própria morada da pátria, sem peregrinação, sem sedição, sem tentação: Uma vez que ali não me acho, que não me ensoberbeça pelo que já sou, parece-me ser mais o que falta do que aquilo que já tenho; tornar-me-ei mais humilde pelo que me falta do que orgulhoso pelo que já possuo. Pois, aqueles que julgam ter alguma coisa enquanto vivem, na terra, por causa do orgulho não recebem o que falta. “Se alguém julga ser alguma coisa, quando nada sendo, engana-se a si mesmo” (Gl 6, 3).

V. 6: O que dizes destes dias? Deste conhecimento conclui outra coisa e diz: “De poucos palmos fizeste os meus dias” (6 a). Envelhecem aqueles que eu queria fazer novos, que nunca envelhecem, para poder dizer: “O que era antigo passou; eis que surgiram novas coisas” (2 Cor 5, 17), agora em esperança, então na realidade. Mas, renovados pela fé e esperança, quantas coisas antigas ainda fazemos? Não fomos revestidos de Cristo a tal ponto que nada mais tenhamos de Adão. Vede Adão a envelhecer em nós, e Cristo a se renovar. “Embora o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior renova-se dia após dia” (2 Cor 4, 16). Se atendemos, pois, ao pecado, à mortalidade, ao tempo passageiro, ao gemido, ao labor, ao suor, às idades que se sucedem, sem parar, indo insensivelmente da infância à velhice, vemos nisto o homem velho, o dia velho, o antigo cântico, o Antigo Testamento. Se nos voltamos para o interior, ao que há-de ser renovado, às coisas imutáveis, encontramos o homem novo, o dia novo, o cântico novo, o Novo Testamento. Não temamos o que é velho. Neste curso passamos da antigo ao novo. Esta passagem se realiza com a corrupção das coisas exteriores e a renovação das interiores, até isto mesmo que exteriormente se corrompe, pague o débito da natureza, morra, renova-se, e isto na ressurreição. Então, na realidade, todas as coisas se farão novas, as restantes que agora existem em esperança. Ele ainda traz consigo o Adão mas apressa-se em direcção a Cristo.

“De poucos palmos fizeste os meus dias” (6 a). Dias antigos oriundos de Adão, fizeste-os velhos; envelhecem cada dia, de tal modo que uma vez serão consumidos. “Diante de Ti a minha existência é como um nada” (6 b). Diante de ti, Senhor, como nada é minha vida.

Diante de ti que o vês. “O homem não é mais que um sopro”! (6 c).

“Enquanto eu estou, assim como eu sou, enquanto estou neste mundo, enquanto me acho com esta carne mortal, enquanto a vida do homem sobre a terra é uma luta” (Job 7, 1), enquanto suspiro no meio dos escândalos, enquanto eu que estou de pé receio cair, enquanto forem incertos para mim os males e os bens. “O homem não é mais que um sopro” (6 c). “Que proveito pode tirar o homem de todo o esforço que faz debaixo do Sol” (Ecl 1, 2. 3)?

“Senhor, dá-me a conhecer o meu fim” (5 a). Este desejo é acima do Sol, não debaixo do Sol. Debaixo do Sol estão todas as coisas visíveis; tudo o que não é visível não está debaixo do Sol. A fé não é visível, a esperança não é visível, a benignidade não é visível, finalmente não é visível aquele temor puro que permanece para sempre (Sl 18, 10). Em tudo isso encontra, Jedutum, suavidade e consolo, e vivendo acima do Sol, porque tem a cidade nos Céus (Ef 3, 20), geme por causa daquilo que ainda tem debaixo do Sol. Despreza e lastima essas últimas coisas, enquanto deseja ardentemente as outras.

V. 7: “Ele passa como simples sombra”! (7 a). “É em vão que se agita” (7 b). Ouve qual é a perturbação e vê se não é vã, para que a calques, a ultrapasses, e habites no alto, onde não existe tal vaidade. Qual? “Amontoa riquezas e não sabe para quem ficam” (7 c). Tola vaidade. “Feliz o homem que confia no Senhor e não se volta para os idólatras, para os que seguem a mentira” (Sl 39, 5).

Ao falar assim, ó avaro, parece-te que eu deliro. Parecem-te palavras senis. Tu, que és um homem de grandes conselhos e grande prudência, e cogitas cada dia acerca do modo de ganhar dinheiro, de negócios, talvez também de eloquência, de jurisprudência. Nenhuma ocasião perdes de acumular dinheiro, de ocultá-lo cuidadosamente.

Exploras o próximo, mas acautelas-te de quem pode te explorar. Não te corriges ao sofreres alguma coisa. Interrogo teu coração. Diga-me para quem guardas? Não trato contigo do mal que há em tua avareza vã, apenas proponho, discuto aquilo que o presente salmo me dá oportunidade de discutir. Mas, responde-me: Para quem reservas o que entesouras? Hás-de responder-me: Guardo para meus filhos. Mas vou examinar-te e a teus filhos. Hoje mesmo, e desde que começámos a falar até ao momento actual, percebes que envelhecemos. Pois, nem sentes o crescimento de teus cabelos. O tempo voa, tanto para os que entendem como para os que não percebem, ou estão entregues a alguma ocupação má. Tu passas, e guardas para teu filho que também passa. Economizas, para teus filhos, e é incerto se os terás, ou se hão-de possuir; nem colocas o teu tesouro no lugar certo. Teu Senhor não daria a seu servo um conselho para que perdesse os seus bens. Deu-te o que amas, o que tens, e não quer que percas seu dom aquele que se dará a si mesmo a ti. Mas, diria que nem mesmo o que te deu por certo tempo, Ele quer que percas. É muito, superabundante, ultrapassa as tuas necessidades, já é certamente supérfluo. Nem isto quero que percas. Diz o teu Senhor. Mas, o que hei-de fazer? Queres possuir o que tens, e não perder; mostro o lugar onde deves colocá-lo. Não entesoures na terra, sem saberes para quem guardas teus bens. Dou um conselho: “Acumulai tesouros no Céu” (Mt 6, 20). Aqui na terra, se queres conservar riquezas, procuras um depósito; entregas, então, a um banco; ali é difícil uma perda. O ladrão não tem fácil acesso. E se eu te apresentar um melhor? Há alguém mais idóneo, confia nele. Possui grandes depósitos, onde as riquezas não se podem perder. Ele é grande e mais rico do que todos. Talvez logo respondas: como ousarei confiar nele? Mas, se Ele mesmo te convida? Reconhece-O. Não é só pai de família, mas é também o teu Senhor. Ele diz-te: Não quero, meu servo, que percas o teu pecúlio. Descobre onde deves colocá-lo. Há um lugar para onde hei-de te transferir. Teus bens preceder-te-ão lá; não receies perdê-los. Fui o doador, serei o guarda. Isto é o que te diz o teu Senhor. Interroga a tua fé e vê se queres dar-lhe crédito. Responderás: Considero perdido o que não vejo, quero ver meus bens aqui. Estás a ouvir esta catequese para acumulares riquezas interiores e ficas pensando nas exteriores. Acaso as trouxeste contigo para cá? Creio em Deus que encontrarei na íntegra o que guardei. Crês em Deus e não confias Nele? Creio em Cristo que estará são e salvo o que guardei. Acreditando em Cristo queres estar certo de que nada perderás dos bens de tua casa; ficarás mais seguro, acreditando em Cristo, se colocares teus bens lá onde Ele aconselhou que pusesses. Acaso tens confiança em teu empregado, e desconfias do teu Senhor? Sentes segurança na tua casa e desconfias do Céu? Não quero que saibas como chegará ao Céu. Põe na mão dos pobres, dá aos necessitados. Ou esqueceste a palavra: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes”? (Mt 25, 40). Quando guardas teus bens na terra, diz-me para quem os acumulas? Teus filhos; acrescenta mais um e dá alguma coisa a Cristo.

V. 8: “E agora, Senhor, que posso eu esperar?” (8 a). Quando ultrapassei alguma coisa, quando muitos calquei, quando já não estou preso aos bens temporais, ainda não sou perfeito, ainda não recebi”. Pois fomos salvos na esperança; e ver o que se espera já não é esperar. “Quem vai esperar aquilo que já está a ver? Mas se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar” (Rm 8, 24. 25). E agora o que posso esperar? Não é o Senhor? Ele é minha esperança e deu-me tudo isto que é desprezível. Ninguém, portanto, se diga perfeito aqui; engana-se, ilude-se, erra se o diz. Não é possível conseguir a perfeição aqui na terra. E o que adiantaria se perdesses a humildade? “E agora, Senhor, que posso eu esperar?” (8 a). Não é o Senhor? Quando vier, então será a perfeição. “A minha esperança está em ti” (8 b). Os bens da terra, porém, estão igualmente diante dos homens. Tens ouro, tens prata, propriedades; estes bens são visíveis também aos homens; mas há um tesouro que sempre está diante de Deus. “A minha esperança está em ti” (8 b).

V. 9: “Livra-me de todas as minhas faltas” (9 a). Atravessei muitas coisas, “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1 Jo 1, 8). Ultrapassei muitas coisas, mas ainda bato no peito e digo: “Perdoa as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6, 12) e: “O fim da Lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja concedida a todo o que tem fé” (Rm 10, 4). “De todas” não somente daquelas que já atravessei, para que não recaia; mas de todas absolutamente. O Apóstolo, tendo declarado que ainda não era perfeito, logo em seguida diz: “Todos nós, os perfeitos, tenhamos, pois, estes sentimentos!” (Fl 3, 15). O que significa: “Todos nós que somos perfeitos”? Segue a ordem das palavras: “Mas uma coisa faço: esquecendo-me daquilo que está para trás, e lançando-me para o que vem à frente, corro em direcção à meta, para o prémio a que Deus, lá do alto nos chama, em Cristo Jesus” (Fl 3, 12-15). Ele, por conseguinte, não é ainda perfeito, porque prossegue para o prémio da vocação do alto, que vem de Deus. Ainda não chegou lá, ainda não o encontrou. Todavia prossegue: “Todos nós, os perfeitos, tenhamos este sentimento”. Tu não és perfeito, ó Apóstolo, e nós seríamos? Pois, não disse: Todos vós, que sois perfeitos, tenhais este sentimento, mas: “Todos nós, os perfeitos, tenhamos estes sentimentos”. Portanto, aqui não podes ser perfeito, a não ser que saibas que aqui não podes ser perfeito. Tua perfeição consiste em teres ultrapassado algumas coisas, de tal sorte que te apresses para outras. Esta é a fé segura. Pois, quem pensar que já chegou, sobe bem alto para cair. Por estas razões me declaro imperfeito e perfeito; imperfeito, de facto, porque ainda não recebi algo que desejo; perfeito, porém, porque sei exactamente o que me falta. Uma vez que assim penso, que desprezo as coisas humanas, que não quero alegrar-me com as coisas transitórias, que me rio do avaro que se gaba de prudente e zomba de mim, dizendo que estou louco, uma vez que assim me porto, que lastimo este proceder, digo: “Não deixeis que o insensato se ria de mim” (9 b). Quiseste que eu vivesse no meio deles, que entre eles pregasse a verdade, apesar de amarem a vaidade. Só posso ser escarnecido por eles. “Porque nós nos tornámos espectáculo para o mundo, para os anjos e para os homens” (1 Cor 4, 9). Aos anjos que louvam e aos homens que injuriam. Temos armas ofensivas e defensivas, e militamos na “honra e na desonra, na má e na boa fama; tidos por impostores, e no entanto, verdadeiros” (2 Cor 6, 7. 8).

Vs. 10. 11: Contra o insensato: “Fiquei calado, sem abrir a boca” (10 a). A quem direi o que se passa em mim? Pois, “prestai atenção ao que diz o Senhor Deus; Ele promete paz para o seu povo e para os seus amigos” (Sl 84, 9); mas, “Não há paz para os maus, diz o Senhor” (Is 48, 22).

“Fiquei calado sem abrir a boca, porque és Tu quem intervém” (10). É estranho. Deus não te deu uma boca para falar? “Quem fez o ouvido não ouvirá? Aquele que fez os olhos não há-de ver (Sl 93, 9)? Deus deu-te boca para falar; e dizes: “Fiquei calado sem abrir a boca, porque és Tu quem intervém” (10). Pertence ao versículo seguinte: “Afasta de mim teus castigos; desfaleço ao peso da tua mão” (11). Não me extermines, porque és Tu que me fizeste; somente fere para que progrida, e não para que pereça. Bate-me apenas para me plasmar, não para me enganar.

V. 12: “Tu corriges o homem, castigando a sua culpa” (12 a). E qual o significado da tua arguição, senão o que segue? “E, como traça, destróis o que Ele mais estima” (12 b). Mais claramente diz outro salmo: “Foi bom para mim ter sido castigado, pois assim aprendi os teus decretos” (Sl 118, 71). Fui castigado e isso é bom para mim; é castigo e simultaneamente graça. Dele foi dito igualmente: “Eu estava sem forças e Ele salvou-me” (Sl 114, 6).

“E, como traça, destróis o que Ele mais estima” (12 b). Esta é a instrução. O vício era uma espécie de força. O homem desagradou a Deus por esta força, para ser instruído na humildade. Todos os soberbos se dizem fortes. Muitos que vieram do Oriente e do Ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos Céus com Abraão, Isaac, Jacob, porque venceram? Porque não quiseram ser fortes. O que quer dizer: Não quiseram ser fortes? Tiveram medo de presumir de si mesmos; não estabeleceram a própria justiça, mas submeteram-se à justiça de Deus. Declarou o Senhor: “Digo-vos que do Oriente e do Ocidente muitos virão sentar-se à mesa do banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino do Céu, ao passo que os filhos do reino”, isto é, os judeus que ignoravam a justiça de Deus, e queriam estabelecer a sua própria, “serão lançados nas trevas exteriores” (Mt 8, 11-12). Lembrai-vos da fé do centurião, único entre os gentios, de tal forma fraco, a tal ponto débil que disse: “Não sou digno de que entres debaixo do meu tecto”. Não era digno de receber o Cristo em sua casa e já O recebera no coração. Efectivamente, aquele mestre da humildade, o Filho do homem já encontrara em seu peito onde reclinar a cabeça. O Senhor, considerando esta palavra do centurião disse aos que O seguiam: “Em verdade vos digo: Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé” (Mt 8, 8-10). A ele o Senhor achou-o fraco, e aos israelitas fortes, de sorte que disse: “Não são os que têm saúde que precisam de médico e sim os doentes. Eis que sois mortais, carregais uma carga corruptível” e “Morrereis como qualquer mortal; caireis como qualquer príncipe” (Sl 81, 17), e caireis como o diabo. De que vos serve a medicina dos mortais? O diabo é soberbo; é um anjo que não tem carne mortal. A principal graça, portanto, dom de Deus, é reduzirmos à confissão da nossa fraqueza. Tudo o que temos de bens, de poder, temos nele, de sorte que “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Cor 1, 31).

“Pois, quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 10).

“Na verdade, o homem é apenas um sopro” (12 c). Vive, de facto, na incerteza. “Confia ao Senhor os teus cuidados, e Ele será o teu sustentáculo” (Sl 54, 23). O que há de certo nesta terra senão a morte? Considerai todas as coisas, tanto boas quanto más nesta vida, mesmo na justiça ou na iniquidade; o que há de certo senão a morte? Progrediste no bem. Sabes o que és hoje, mas desconheces o que serás amanhã. És pecador. Para qualquer lado que te voltes, tudo é incerto. Somente a morte é certa. Mesmo nesta certeza sobre a morte, é incerto o dia da morte.

V. 13: “O salmista entre estas incertezas, já ultrapassa, e achando-se entre algumas coisas elevadas, despreza as inferiores e diz: “Senhor ouve a minha oração, escuta o meu lamento, não fiques insensível às minhas lágrimas” (13 a b c). Acaso, porque já atravessei tantas coisas, tantas ultrapassei, já não chora? Ou choro muito mais? Quem aumenta o saber aumenta o sofrer (Ecl 1, 18). “E, porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12).

“Oh! Tivesse eu na minha cabeça um manancial e nos meus olhos uma fonte de lágrimas” (Jr 8, 23). “Senhor, ouve a minha oração, escuta o meu lamento, não fiques insensível às minhas lágrimas” (13 a b c). Que eu não ensurdeça eternamente. Não te cales; Eu te ouvirei. Deus fala ocultamente, fala muito ao coração quando diz em alta voz: “Eu sou a tua salvação” (Sl 34, 3).

“Diante de ti sou como um estrangeiro” (13 d). Forasteiro junto de quem? Quando estava perto do diabo era forasteiro, mas tinha um mau proprietário da casa. Agora já estou perto de ti, mas ainda forasteiro. O que significa “forasteiro”? Daqui hei-de emigrar. Não ficarei aqui eternamente. Contudo, junto de meu Deus sou forasteiro. Junto dele hei-de permanecer quando receber a minha casa. Mas qual é esta casa, para onde hei-de emigrar desta terra estrangeira? “Temos uma habitação no Céu, obra de Deus, uma casa eterna, não construída por mãos humanas” (2 Cor 5, 1).

Aqui, sem saber onde e quando te há-de dizer o dono da casa: Parte, deves preparar-te. Estás preparado se desejas a casa eterna. Não te irrites contra Ele, porque diz quando quer: Parte. Não fez contrato contigo. Não alugaste a casa por determinado aluguer e por certo tempo. No entanto, habitas nela gratuitamente. Lá, portanto, está a pátria, lá está a casa: “Diante de ti sou como um estrangeiro, um hóspede como os meus antepassados” (13 d e).

Pois muitos são peregrinos como o diabo. Os que acreditaram e são fiéis são efectivamente peregrinos, porque ainda não chegaram à sua pátria e sua casa, contudo estão junto de Deus. “Permanecendo neste corpo, vivemos exilados longe do Senhor; esforçamo-nos por lhe agradar” (2 Cor 5, 6-9). “Um hóspede, como os meus antepassados” (13 e).

V. 14: “Desvio os olhos para que possa respirar” (14 a). Antes da partida, livra-me dos pecados, para não os levar comigo. Perdoa-me para que a minha consciência se tranquilize, libertada de uma solicitude ardente; por isso, confesso a minha culpa” (Sl 37, 19). “Antes que tenha de partir, e acabe a minha existência” (14 b). Se não me perdoares para ter alívio, irei e cessarei de existir. O que significa então: cesse de existir? Se aquele rico, não existia, quem é que ardia nas chamas? Quem é que desejava que Lázaro molhasse a ponta do dedo para refrescar a língua? Quem é que dizia: “Pai Abraão, envia Lázaro” (Lc 16, 24)? Em verdade, quem falava existia, quem ardia existia, e existirá quem ressurgirá no fim e será condenado com o diabo ao fogo eterno. O que significa então: Cesse de existir? A própria dor eterna cheia de corrupção, não se acaba para que se consuma interminavelmente. Ele olhou, portanto, para aquela feliz região, feliz pátria, casa feliz, onde os santos são participantes da vida e da verdade imutável; e receou ir para fora, onde cessaria de existir; desejava estar onde há o ser supremo. Por conseguinte, se não me perdoares os pecados, irei eternamente para longe de ti. E longe de quem estarei eternamente? Daquele que declarou: “Dirás aos filhos de Israel:” “Eu sou, envia-me a vós” (Ex 3, 14). Quem caminha em direcção contrária àquele que é verdadeiramente, avança para o nada.


SALMO 40 (39)

Catequese

Tudo aquilo que Nosso Senhor predisse, parcialmente já foi cumprido, e parcialmente ainda esperamos. Tudo, no entanto, se cumprirá. Quem crê, alegrar-se-á quando vierem; quem não crê, será confundido diante dos eventos. Eles virão, conforme declara o Apóstolo: “Se nos mantivermos firmes, reinaremos com Ele. Se o negarmos, também nos negará. Se formos infiéis, Ele permanecerá fiel, porque não pode negar-se a si mesmo” (2 Tm 2, 12. 13). Guardai na memória: “Aquele que se mantiver firme se salvará” (Mt 10, 22; 24, 13). O sangue justo foi derramado, e daquele sangue, como uma semeadura feita por todo o mundo, brotou a messe da Igreja. Seguiu-se o tempo dos escândalos, das provas, da parte daqueles que dizem: “Aqui está o Messias”, ou “Ali está Ele” (Mt 24, 23). Aquele nosso inimigo é dragão quando ocultamente arma ciladas. O Apóstolo nos acautela contra esse dragão com as seguintes palavras: “pois vos desposei com um único esposo, Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura. Receio que, com a sua astúcia, os vossos pensamentos se deixem corromper, desviando-se da simplicidade devida a Cristo” (2 Cor 11, 2. 3).

Esta serpente procura corromper a virgindade, não da carne mas do coração. Como o adúltero se alegra com a sua malícia ao corromper a carne, assim o diabo se regozija ao corromper a mente. No entanto, a perseguição do dragão contra a Igreja nunca cessa; e é mais temível quando engana do que quando se enfurece. Então introduziu violência, agora insídias. Aparecia então furioso, agora mostra-se insinuante e dificilmente aparenta erro. Enfim, pergunto, esqueceste-te de que Cristo é a pedra, e “a pedra que os construtores registarem tornou-se pedra angular” (Sl 117, 22); Mt 21, 42; 1 Pd 2, 4. 7)?

No meio das angústias multiformes e incessantes tentações, de que abunda a vida presente o que havemos de fazer? Por causa da abundância da iniquidade, há certo torpor, na caridade: “E, porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12). E o que havemos de fazer senão o que se segue, se o pudermos com o auxílio de Deus: “Aquele que se mantiver firme até ao fim, esse será salvo” (Mt 24, 13).

Versículo 2: Portanto, digamos com o salmo: “Invoquei o Senhor com toda a confiança” (2). Nada devemos recear da fidelidade de Deus, embora ainda não tenha cumprido. Pensemos assim. Tudo prometeu, ainda não deu tudo; é idóneo para prometer, fiel para cumprir; tu apenas sejas um piedoso cobrador, embora pequenino, embora fraco. Exige a misericórdia. “Invoquei o Senhor com toda a confiança” (2 a). E o que fez Ele? Afasta-se de ti, despreza aquele que confia, ou Ele não vê? Absolutamente não. Mas, então? “Ele inclinou-se para mim e ouviu o meu clamor” (2 b). Atendeu e ouviu. Não foi em vão que esperaste. Os seus olhos repousam em ti, seus ouvidos estão atentos. “Os olhos do Senhor estão voltados para os justos, e os ouvidos estão atentos ao seu clamor” (Sl 33, 16). Então, Ele não via quando fazias o mal, quando blasfemavas contra Ele? Não ouvia? Portanto, quando eras mau Ele ouvia-te, mas não te atendia. Por conseguinte, para este que no Senhor pôs toda a esperança foi pouco dizer: Ouviu-me, mas acrescentou: “Ele inclinou-se para mim e ouviu o meu clamor” (2 b).

Vs. 3. 4: E o que te fez? “Tirou-me dum poço fatal, dum charco de lodo; assentou os meus pés sobre a rocha e deu firmeza aos meus passos. Ele pôs nos meus lábios um cântico novo, um hino de louvor ao nosso Deus” (3. 4 a b). Os factos convencem-nos de que nosso Senhor é fiel, prometedor e generoso doador. O que fez agora? “Tirou-me de um poço fatal, dum charco de lodo” (3 a). Das profundezas da iniquidade, oriunda das concupiscências carnais. Por isso clamavas em outro salmo: “Do fundo do abismo clamo a ti, Senhor” (Sl 129, 1). Aqueles que já clamavam das profundezas, não estão inteiramente no fundo; o clamor já os levanta. Há alguns tão mergulhados nas profundezas que não sentem que estão nas profundezas.

Tais são os soberbos desprezadores, que não suplicam com piedade, nem clamam com lágrimas: São tais quais as Escrituras os designam em outra passagem: “Com a impiedade vem a desonra; com o desprezo, a vergonha” (Pr 18, 3). Aquele a quem não basta ser pecador, mas em vez de confessar seus pecados os defende, mergulha mais fundo ainda. Aquele que clamou das profundezas, para clamar já levantou a cabeça do lugar mais fundo; foi ouvido, retirado da fossa da miséria e do atoleiro. Já possui a fé que não tinha; recupera a esperança, anda com Cristo quem errava na companhia do diabo.

Por isso, disse: Firmou-me os pés sobre a rocha e dirigiu-me os passos. “Esse rochedo era Cristo” (1 Cor 10, 4).

Estejamos sobre a rocha, e sejam dirigidos os nossos passos; ainda precisamos caminhar. Pois, o que dizia o Apóstolo Paulo? “Não que o já tenha alcançado, ou que já seja perfeito. Irmãos, não me julgo como se o tivesse alcançado” (Fl 3, 12. 13). O que te foi dado, se não alcançaste? Porque dás graças ao dizeres “justamente alcancei misericórdia” (1 Tm 1, 16)?

Porque os seus passos já têm uma direcção, porque já caminha sobre a rocha. E o que diz? “Uma coisa faço: esquecendo-me daquilo que está para trás”. O que está para trás? O atoleiro, as concupiscências carnais, as trevas da iniquidade. “Esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que vem à frente”. O ânimo avança pelo desejo do bem cobiçado e não pela alegria do que já conseguiu. “Corro em direcção à meta, para o prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus” (Fl 3, 13. 14). E declara em outra mensagem, já próximo de obter a palma: “Terminei a corrida” (2 Tm 4. 7).

Por conseguinte, quando dizia: “Corro em direcção à meta para o prémio, lá do alto” (Fl 3, 14), os seus passos já estavam na direcção certa, já estava no bom caminho; tinha de que dar graças, tinha o que pedir. Dava graças pelos dons recebidos, e pedia o que lhe era devido. Quais os dons recebidos? O perdão dos pecados, a iluminação da fé, o vigor da esperança, a chama da caridade. O que lhe era devido? “A merecida coroa, que me entregará naquele dia o Senhor, justo juiz” (2 Tm 4. 8). Retribuirá, portanto, o juiz justo, mas a quem? “Aquele que se mantiver firme até ao fim, será salvo” (Mt 10, 22 e 24, 13).

“Ele pôs nos meus lábios um cântico novo” (4 a). Qual o cântico novo? “Um hino de louvor ao nosso Deus” (4 b). Cantavas talvez hinos aos deuses estrangeiros, velhos hinos, porque era o velho homem quem cantava, não o novo. Faça-se homem vivo, cante o cântico novo. Renovado. Ame as coisas novas, que o renovam. Pois, o que há de mais antigo do que Deus, que existe antes de todas as coisas e é sem fim e sem início? Faz-se novo para ti, porque ao te afastares te havias feito velho, e dizias: “Envelheci por causa dos meus adversários” (Sl 6, 8). Cantamos, pois, um hino a nosso Deus, e Ele nos liberta. “Invoquei o Senhor, que é digno de louvor e fui salvo dos meus inimigos” (Sl 17, 4). Hino é cântico de louvor. Invoca com louvores e não com censuras. Quando queres te alegrar por causa do mal alheio, e invocas a Deus em vista deste mal, queres que seja participante da tua malícia. Se o fazes participante da malícia não O invocas com louvores, mas com censuras. Pensas que Deus é igual a ti. Por isso te é dito em outra passagem: “Tens feito tudo isto. Poderei Eu calar-me? Pensavas que Eu era igual a ti” (Sl 49, 21). Por conseguinte, invoca o Senhor com louvores; “Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste. Pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores” (Mt 5, 48. 45).

Louva pois, o Senhor, se queres mal a teus inimigos. E quantos bens hei-de desejar a eles? Quantos desejas para ti mesmo.

Invoca, pois, com louvores, canta um hino a teu Deus: “Honra-Me quem oferece um sacrifício de louvor” (Sl 49, 23). Como? Será maior a glória de Deus se a glorificas? Ou acrescentamos algo à glória de Deus quando lhe dizemos: Eu te glorifico meu Deus? Ele, ao nos bendizer, torna-nos mais santos, faz-nos mais felizes; ao nos glorificar, torna-nos mais gloriosos, mais cobertos de honras; ao invés, quando O glorificamos, nós é que lucramos, não Ele. Como, então, O glorificamos? Declarando-O glorioso, mas não fazendo-O. Por conseguinte, o que acontece ao dizer o salmista: “Honra-me quem oferece um sacrifício de louvor” (Sl 49, 23)? Ele te diz para não pensares que prestas benefícios a Deus, ao lhe ofereceres um sacrifício de louvor: “A quem anda por este caminho farei participar da salvação de Deus” (Sl 49, 23). Vês como é a ti que é proveitoso louvar a Deus, não a Ele. Louvas a Deus? Andas pelo caminho. Censuras a Deus? Perdeste o caminho. “Ele pôs nos meus lábios um cântico novo, um hino de louvor ao nosso Deus” (4 a b). Talvez pergunte alguém quem fala neste salmo. É Cristo. Mas, como sabes, e devemos repetir muitas vezes, fala por si, isto é, enquanto nossa Cabeça. Ele é o Salvador do corpo, nossa Cabeça, Filho de Deus, nascido da Virgem, que sofreu por nós, ressuscitou para nos justificar, está sentado à direita de Deus para interceder por nós, e que há-de retribuir no juízo a todos os nossos actos, concedendo bens aos bons, males aos maus. Nossa Cabeça dignou-se fazer-se Cabeça do Corpo, assumindo a carne da nossa natureza, segundo a qual morreria em nosso favor; Ele também ressuscitou por nossa causa, para naquela carne nos oferecer um exemplo de ressurreição. Assim, aprenderíamos a esperar aquilo de que já havíamos perdido a esperança, e teríamos os pés firmados na rocha andando em Cristo. Este fala algumas vezes enquanto Cabeça, fala por outros também em nosso lugar, isto é, em vez dos seus membros. Quando disse: “Tive fome e deste-me de comer” (Mt 25, 35) falava em lugar de seus membros. E quando disse: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” (Act 9, 4)? A Cabeça clamava em lugar dos membros; contudo, não perguntou: Porque persegues os meus membros? Mas: “Porque me persegues?”

“Muitos, ao verem isto, hão-de comover-se, hão-de pôr a sua confiança no Senhor” (4 b c). Quais? Os fiéis, “porque o justo viverá da fé” (Rm 1, 17). Por isso, na Igreja existe esta ordem: uns precedem, outros seguem. Os que precedem dão exemplo aos que seguem. Mas aqueles que dão exemplo aos seguintes, não seguem a ninguém? Seguem, pois, alguém, o próprio Cristo. Aos melhores na Igreja, que já não têm a quem imitar porque superaram em todos a perfeição, resta-lhes Cristo, a Quem devem seguir até ao fim. Vedes a ordem nas palavras do Apóstolo Paulo: “Rogo-vos, pois, que sejais meus imitadores, como eu sou de Cristo” (1 Cor 4, 16). Aqueles que já têm os passos firmes sobre a rocha, sejam o modelo dos fiéis. “Sê o modelo dos fiéis” (1 Tm 4, 12). Os fiéis são os justos que, atentos àqueles que os precedem no bem, seguem-nos, imitando-os.

Poucos, porém, os que vão pelo caminho estreito. Digo: Trás uma balança, pesa: contra uns poucos grãos vê quanta palha. Assim procedem os justos fiéis que seguem. E os que precedem? Não se ensoberbeçam, não se exaltem, não enganem os que os seguem. Como podem enganar os que os seguem? Prometendo-lhes por si mesmos a salvação. Como devem agir os que seguem? Verão os justos e hão-de temer e esperar no Senhor, conforme se encontra naquele salmo: “Levanto os olhos para os montes” (Sl 120, 1). Entendemos por montes aqueles que na Igreja são espiritualmente grandes e ilustres, mas a sua grandeza é sólida não estremecida. Por eles a Escritura nos foi concedida; são profetas, são evangelistas, são doutores excelentes. “Levanto os olhos para os montes: de onde me virá o auxílio” (Sl 120, 1)? E a fim de não pensares em auxílio humano acrescenta: “O meu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra” (Sl 120, 2).

V. 5: Avante os que querem esperar no Senhor, os que vêem e temem. Receiam andar por caminhos errados, estradas largas; escolham o caminho estreito, onde os seus passos já estejam firmes sobre a rocha. Ouçam agora o que têm a fazer: “Feliz o homem que confia no Senhor e não se volta para os idólatras, para os que seguem a mentira” (5 a b c). O caminho largo é mortífero; a amplidão que possui deleita de modo transitório, mas o fim de angústia é eterno. Seja o Senhor teu Deus a tua esperança; não esperes outra coisa do Senhor teu Deus, mas o próprio Senhor seja a tua esperança. Pois muitos de Deus esperam dinheiro, muitos esperam de Deus honras caducas e passageiras. Mas tu pede o próprio Deus. Desprezando as demais coisas, lembra-te dele. Deixando os outros para trás, avança para Ele. Seja Ele a tua esperança; Ele que conduz e leva até ao fim. Abandona todos os amores; o mais belo é aquele que fez o céu e a terra.

Diz o Apóstolo: “Crucificai os vossos membros de coisas da terra” (Cl 3, 5). Seja nosso Deus a nossa esperança. Ele que fez todas as coisas é melhor do que todas; que criou as coisas mais belas é o mais belo de todas; que criou as coisas fortes, é o mais forte; que fez as coisas grandes é o maior de todos; será para ti tudo o que há de amável. Aprende a amar na criatura o Criador, na obra o que a fez, para que não te prenda a criatura e percas aquele que te criou.

V. 6: Talvez nos diga aquele que tocado por este versículo, quiser corrigir-se e tomado pelo temor da justiça da fé, começar a caminhar pelo caminho estreito. Talvez nos diga: Não aguentarei andar se não vejo. O que faremos? E que espectáculo apresentamos ao cristão que queremos afastar de outros espectáculos? Ouve a continuação do salmo: “Grandes coisas fizeste por nós, Senhor, meu Deus” (6 a). Muitas são as maravilhas de Deus; contempla-as. Domine a luxúria, domine a preguiça, domine a injustiça, domine a imprudência, estes movimentos que muito livres geram tais vícios. Domine e submeta a si, segure as rédeas e não será arrastado. Conduza para onde quiser, ao invés de ser arrastado para onde não quer. Deus proporciona estes dons, este espectáculo. Clama do Céu. Eu vos observo; lutai, Eu vos ajudarei; vencei Eu coroarei. “Grandes coisas fizeste por nós, Senhor meu Deus; não há ninguém igual a ti!” (6 a b). Agora olha o pantomimo. Aprendeu com muitos exercícios a andar na corda e ficas admirado ao vê-lo equilibrando-se. Esquece o teatro, e presta atenção ao nosso Pedro, não equilibrista sobre a corda, mas por assim dizer, sobre o mar. Anda também tu, não sobre aquelas águas, sobre as quais andou Pedro, com o determinado sinal, mas sobre outras águas, as do mar deste século. Este mar encerra um amargor prejudicial, possui as ondas das tribulações, as tempestades das tentações; contém homens, quais peixes, contentes no meio de seus males e devorando-se mutuamente. Não desanimes, vê como o Apóstolo te precede e diz: “Porque nos tornámos espectáculo para o mundo, para os anjos e para os homens” (1 Cor 4, 9).

Pisa o mar, não mergulhes. Não irás, não calcarás, se não to ordenar aquele que antes de ti andou sobre o mar. Disse-Lhe Pedro: “Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas” (Mt 14, 28). E como era o Senhor, chamou-o para andar e reergueu-o quando afundava. O Senhor fez tais maravilhas. Olha-as.

A fé te sirva de olho para contemplar. E faz tu também coisas semelhantes. Embora os ventos perturbem, os vagalhões se levantem enfurecidos, e a fragilidade humana te levar a dúvidas acerca da tua salvação, podes clamar: Senhor, estou perdido. Aquele que te mandou avançar não te deixa perecer, porque devemos andar sobre uma rocha que não esteja imersa no mar.

Vede as maravilhas de Deus. “Quantas maravilhas e desígnios em nosso favor! Quisera anunciá-los e proclamá-los, mas são tantos que não se podem contar” (6 c. d. e). Há número e supernúmero. O número certo pertence à Jerusalém celeste. “O Senhor conhece os que são seus” (2 Tm 2, 19), os cristãos tementes a Deus, os cristãos fiéis, os cristãos que observam os preceitos, que andam nos caminhos de Deus, abstêm-se de pecados e caso caiam, confessam-se; estes pertencem ao número. Existem também os supernumerários. Pois, quantos são os que enchem as igrejas, no entanto, alguns deles, se há espectáculo, correm para o anfiteatro, estes são os supernumerários. Quantos fiéis se aglomeram, quantas turbas correm! Muitos verdadeiramente convertidos; e muito menos são os verdadeiros que os falsos, porque “mas são tantos que não se podem contar” (6 d).

Diz o apóstolo Paulo: “Correm todos”, naquele estádio, durante o espectáculo, “mas só um ganha o prémio” (1 Cor 9, 24); os demais se afastam vencidos. No entanto, perseveraram na corrida. Connosco não acontece assim. Todos os que correm, corram com perseverança, porque todos recebem; o que chegou primeiro espera para ser coroado com os que vêm depois. Não é a ambição, mas a caridade que realiza este combate, todos os corredores se amam, e este amor é que constitui a corrida.

V. 7: “Não quiseste sacrifícios nem oblações” (7 a), diz o salmo a Deus. Os antigos, quando ainda era pronunciado em figuras o verdadeiro sacrifício, que os fiéis conhecem, celebravam as figuras da futura realidade; muitos estavam cientes, mas a maioria o ignorava. Pois, os profetas e os santos patriarcas sabiam o que celebravam; os restantes, porém, a multidão iníqua era de tal modo carnal que dela se faria um figura do que viria no futuro; e veio a realidade, tendo sido abolidos os sacrifícios primitivos, abolidos os holocaustos de carneiros, bodes, novilhos e demais vítimas; Deus não as quis mais. E por que razão não as quis mais? Por que as quis anteriormente? Porque todas elas eram como que palavras de uma promessa. Alguém é prometedor até que dê; quando tiver dado, muda o vocábulo. Não diz mais: Darei, aquilo que havia de dar; mas fala: Dei. E porque motivo a mudou? Porque era a palavra oportuna, e em seu tempo era aprazível. Aqueles sacrifícios, portanto, enquanto palavras promissórias, foram abolidos. O que foi dado no cumprimento da promessa? O corpo que conheceis, e que nem todos conhecem. E oxalá que alguns de vós que o conheceis, não o conheçam para a própria condenação. Vede quando foi dito; pois Cristo é nosso Senhor, que ora fala em voz de seus membros, ora fala em próprio nome. Ele diz: “Não quiseste sacrifícios nem oblações” (7 a). E então? Nós agora ficamos na carência de um sacrifício? De modo nenhum. Mas preparaste-me um corpo. Por conseguinte, não quiseste os primeiros sacrifícios para realizares este; quiseste aqueles antes de cumprires este; foram abolidos os sinais promissórios porque apresentou-se a realidade prometida. Estamos neste Corpo, sabemos o que recebemos; somos membros deste Corpo; oxalá não o recebais para vossa condenação. “Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será réu, come e bebe a própria condenação, (1 Cor 11, 27. 29).

Vs. 7. 8: “Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas abriste-me os ouvidos para escutar; não pediste holocaustos nem vítimas. Então eu disse: «Aqui estou»!” (7. 8 a).

Chegou o tempo da realização das promessas, e da abolição das figuras que a anunciavam. De facto, meus irmãos, verificais como as figuras foram abolidas e as promessas cumpridas. Apresente-me agora o povo hebraico um sacerdote seu. Onde estão os seus sacrifícios? Certamente terminaram. Porque se os quiseres fazer agora, estão fora de tempo, não são oportunos, não convêm. Restou ao povo judaico alguma coisa que pode celebrar, para não ficar inteiramente sem sinal. Pois, Caim era o irmão mais velho, que matou o irmão menor. Ele recebeu um sinal para que ninguém o matasse, conforme se acha escrito nos Génesis: “E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de que nunca fosse morto” (Gn 4, 15). Por conseguinte, também o povo judaico subsiste. Todas as gentes sujeitas ao império romano seguiram as leis romanas e suas superstições; depois, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo começaram a se separar delas. O povo judaico continua com o seu sinal, com o sinal da circuncisão, com o sinal dos pães ázimos. Caim não foi morto. Não foi morto porque tem um sinal. Foi amaldiçoado pela terra. O povo judaico, pois, derramou o sangue, não o recebeu, ele o derramou, outra terra o recebeu. A terra que recebeu é a Igreja. E aquele sangue clama da terra por Deus. Desta terra disse o Senhor: “A voz do sangue do teu irmão, clama da terra até mim” (Gn 4, 10). Eles são, portanto, como Caim marcado com o sinal. Os sacrifícios que faziam foram abolidos; e o que lhes restou, semelhante ao sinal de Caim, já está terminado e eles não o sabem. Matam o cordeiro, comem os pães ázimos. “Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7). Reconheço o cordeiro imolado. E quanto aos ázimos? “Celebremos, pois, a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da corrupção” (explica o que é velho a farinha fermentada), “mas com os ázimos da pureza e da verdade” (1 Cor 5, 8); nós já estamos na luz, possuímos o corpo de Cristo. Se temos uma vida nova, cantemos um cântico novo, um hino a nosso Deus. “Não pediste holocaustos nem vítimas. Então Eu disse: «Aqui estou» ” (7 c-8 a).

Vs. 8. 9: “No livro da Lei está escrito aquilo que devo fazer. Esse é o meu desejo, ó meu Deus; a tua lei está dentro do meu coração” (8 b. 9).

Cristo levou em consideração os seus membros, e fez a vontade do Pai. Mas em que livro está escrito a respeito dele? Talvez no início deste livro dos Salmos. Por que havemos de ir mais longe, ou procurar outros livros? Acha-se escrito no início deste livro dos Salmos. “Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem toma parte na reunião dos libertinos, antes põe o seu enlevo na lei do Senhor e nela medita dia e noite (Sl 1, 1 2).

V. 10: “Anunciei a tua justiça na grande assembleia” (10 a). Ele fala aos seus membros, exortando-os a fazerem o mesmo que Ele fez. Ele anunciou; anunciemos nós também. Padeceu; padeçamos com Ele. Foi glorificado; seremos com Ele glorificados. Qual o tamanho da assembleia? Ocupa a terra inteira. Qual a sua extensão? Por todos os povos. Porque se estende a todos os povos? Porque é a descendência de Abraão, no qual são abençoadas todas as gentes. Porquê entre todas as gentes? “Porque o seu eco ressoou por toda a terra” (Sl 18, 5). “Tu bem sabes, Senhor, que não fechei os lábios” (10 b). Falam meus lábios. As palavras dos meus lábios ressoem aos ouvidos dos homens; mas Tu conheces o meu coração. Uma coisa é o que ouve o homem, outra o que Deus conhece. Não sejam apenas nossos lábios a anunciarem, para que não digam a nosso respeito: “Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem. Mas não imiteis as suas obras” (Mt 23, 3). Ou: “Este povo honra-me só com os lábios, pois o seu coração está longe de mim” (Is 29, 13).

Ressoe o anúncio em teus lábios e aproxima-te de coração. “É que acreditar de coração leva a obter a justiça, e confessar com a boca leva a obter a salvação” (Rm 10, 10). Assim sucedeu àquele ladrão, crucificado com o Senhor, e que na cruz O reconheceu. Creu com o coração, confessou com a boca. Senhor, disse ele, “lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino” (Lc 23, 43). E o Senhor respondeu: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

“Tu bem sabes, Senhor, que não fechei os meus lábios” (10 b). Não acredite somente no coração, e de mudo cerre os lábios para não anunciar aquilo que acreditou. Pois existem cristãos que têm fé no coração; se pagãos, infiéis, injuriadores começarem a atacá-los por serem cristãos, mantém a fé no coração, mas receiam confessá-la pelos lábios. Mas o Senhor censura-os: “Pois quem se envergonhar de mim entre esta geração pecadora, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai” (Mc 8, 38), isto é, não o reconhecerei. Digam, portanto, os lábios o que guarda o coração, combatendo o medo. Guarde o coração o que os lábios proferem, combatendo a simulação.

Por vezes sentes temor e não ousas proferir o que sabes e crês: outras vezes, empregas a simulação e falas o que não tens no coração. Por isso diz o salmista: “Não fechei os meus lábios”, “Acreditei”. Eis que o coração já possui, já tem o que Deus há-de ver; que o salmista não cerre os lábios. E como falou aquilo que acreditou, procurando a retribuição por tudo aquilo que o Senhor lhe deu em paga, acrescentou: “Elevarei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor” (Sl 115, 13). Não ficou horrorizado ao perguntar-lhe o Senhor: “Podeis beber o cálice que Eu estou para beber” (Mt 20, 22)? Confessou com os lábios o que tinha no coração, e chegou à paixão. E porque sofreu a paixão, em que o inimigo O prejudicou? Na verdade, “É preciosa aos olhos do senhor a morte dos Seus fiéis” (Sl 115, 15). Hoje nos serve de conforto a morte que lhes infligiram os pagãos. Celebramos o dia natalício dos mártires, propondo-nos a imitação de seus exemplos. Observamos com atenção a sua fé: na Igreja Católica, preservados de qualquer simulação, agregados na unidade, confessaram a Cristo. Ambicionaram seguir a Cabeça que os precedera. Mas quais foram os que o desejaram? Os que foram pacientes no meio das tormentas, fiéis na confissão, verdadeiros nas palavras. Lançavam as setas de Deus na boca dos que os interrogavam e feriam-nos até irritá-los. Muitos feriram também para a salvação deles. Tudo isto contemplamos e queremos imitar. São esses os espectáculos cristãos. Cuida de não teres medo, nem fechares a boca.

V. 11: “Não escondi a tua justiça no fundo do coração” (11 a). “O justo viverá da fé” (Rm 1, 17).

Imagina o perseguidor interrogando com a ameaça de castigo, o que às vezes lhe era lícito: És pagão ou cristão? Cristão. Esta é a sua justiça: acreditou; viveu da fé. Não disse a si mesmo: Efectivamente, creio em Cristo, mas não direi a este perseguidor irritado e ameaçador que creio. Meu Deus sabe no íntimo do coração eu creio, que não O renuncio. Mas, e nos lábios? Não sou cristão. Teus lábios proferem testemunho contra teu coração. “Proclamei a tua fidelidade e a tua salvação” (11 b). Porque dizer que Cristo é a verdade? “Eu sou a Verdade” (Jo 14, 6). E como Cristo é a salvação? Simeão reconheceu o menino nas mãos de sua mãe no templo, e disse: “Porque meus olhos viram a Salvação” (Lc 2, 30). O ancião reconheceu o menino, tornou-se criança com o menino, renovou-se pela fé. Assim falou porque recebera uma promessa. O Senhor disse-lhe que não deixaria esta vida antes de ver a salvação de Deus. “Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia, concede-nos a tua salvação” (Sl 84, 8). A salvação de Deus, porém, atinge todos os povos, pois tendo dito em certa passagem: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça brilhar sobre nós a luz do seu rosto. Sejam conhecidos na terra os Teus caminhos”, acrescentou: “Entre as nações a tua salvação” (Sl 66, 2. 3). Por acaso o caminho vem ao encontro dos homens? Nosso caminho veio aos homens. E lhes disse: Anda por mim e não te desviarás: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).

“Não ocultei à grande assembleia a tua bondade e a tua verdade” (11 c). Neste Corpo estejamos também nós, sejamos do número dos seus membros. Queres ouvir como é a misericórdia do Senhor? Afasta-te do pecado e Ele te perdoará. Queres saber como é a Sua verdade? Persevera na justiça, e ela será coroada. Agora, pois, sua misericórdia te é anunciada.

Depois se revelará a verdade. Deus não é misericordioso e injusto ao mesmo tempo; nem justo sem ser misericordioso. Parece-te coisa pequena a misericórdia? Ele não te imputará os males anteriores; viveste mal até hoje, ainda vives deste modo. Começa a viver bem hoje e esta misericórdia se mostrará. Se tal é a misericórdia, qual é a verdade? Serão reunidos diante dele os homens de todas as nações, e Ele os separará como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; porá as ovelhas à direita, e os cabritos à esquerda. O que dirá às ovelhas? “Vinde benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado”. E aos cabritos? “Afastai-vos para o fogo eterno” (Mt 25, 32. 34. 41). Ali não há lugar para a penitência. Desprezaste a misericórdia de Deus, experimentarás a sua verdade.

Vs. 12. 13: “Senhor não me recuses a tua ternura” (12 a). Considerou o salmista os membros feridos. Não escondi a tua misericórdia e a tua vontade à grande assembleia, à Igreja que mantém a unidade, em todo o orbe da terra. Atende aos delinquentes e pecadores e não afastes deles as tuas misericórdias. “Que a tua graça e a tua verdade me protejam sempre!” (12 b). Não ousaria converter-me, se não estivesse seguro do perdão; não aguentaria perseverar, se não estivesse certo acerca da promessa.

Considero que és bom, considero que és justo; amo aquele que é bom e temo aquele que é justo. “Que a tua graça e a tua verdade me protejam sempre” (12 b). Porque elas sustentam e não devo delas apartar os olhos.

“Males sem conta me cercam” (13 a). Quem pode contar os pecados? Quem é capaz de enumerar as iniquidades alheias e próprias? Debaixo deste peso gemia aquele que dizia: “Perdoa-me os erros que me são desconhecidos” (Sl 18, 13), e sob tal peso o que acontecerá se cessar a misericórdia de Deus? “O Senhor está perto dos corações contritos”; fica bem perto. De quem o Senhor está próximo? Daqueles que têm o coração contrito (Sl 33, 19). Está longe dos soberbos e próximo dos humildes. Pois, “O Senhor é excelso, mas repara no humilde” (Sl 137, 6). Não pensem, contudo, os soberbos que se escondem dele. Ele conhecia de longe o fariseu orgulhoso e socorria de perto o cobrador de impostos que confessava os seus pecados (Lc 18, 11). O primeiro gabava-se dos seus méritos e encobria as feridas; o segundo não se gabava, mas mostrava seus ferimentos; não ousava levantar os olhos ao Céu e batia no peito. Não se poupava para que Deus o poupasse. Desta espécie são as palavras deste salmo. Digamos de coração, de boca, com todo o nosso ser. Ninguém se considere justo! Vive ainda na terra, mas convive ainda com a morte. Se o espírito vive por causa da justiça, o corpo, no entanto, está morto por causa do pecado (Rm 8, 10). “O corpo corruptível é um peso para a alma, e esta tenda terrena oprime e mente cheia de cuidados” (Sb 9, 15). A ti compete clamar, gemer, confessar, não te exaltar, não te gabar, não te gloriar de teus méritos; porque se tens alguma coisa que te alegre, o que é que não recebeste?

“As minhas iniquidades caem sobre mim, sem que as possa ver” (13 b). Temos algo a ver; o que impede a visão? Não será a iniquidade? Talvez tenha aparecido um tumor sobre o teu olho. Impedindo-te de ver a luz; e não podias abrir os olhos feridos para ver a luz; como, então, erguerás para Deus um coração ferido? Não é preciso primeiro curá-lo para veres? Não serás soberbo se disseres: Que eu veja primeiro, depois acredito? Vou mostrar-te a luz, ou antes a própria luz quer-se mostrar. A quem? Não é possível a um cego, porque ele não vê. Por que não vê? Porque tem a visão impedida em consequência de muitos pecados. Retirem-se as iniquidades, sejam perdoados os pecados, afaste-se o que torna as pálpebras pesadas, cure-se a ferida. Em primeiro lugar, cura o coração, purifica-o, ama o teu inimigo (Mt 5, 44; Lc 6, 27. 35). Depois de curado, não te será pesado, e amarás o teu inimigo com gosto. Sê forte nas tribulações, nas angústias, nas tentações. Persiste. Com o coração curado e purificado o que verei? “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Deste modo, responde ele, não posso. “As minhas iniquidades caem sobre mim, sem que as possa ver” (13 b). “São mais numerosas que os cabelos da minha cabeça” (13 c), refere-se aos cabelos da minha cabeça para significar um grande número. Quem pode contar os cabelos da cabeça? Muito menos os pecados que superam o número dos cabelos. Parecem pequenos mas são muitos. Tu te precaveste dos pecados graves; já não cometes adultério, já não praticas o homicídio, não roubas os bens alheios, não blasfemas, não levantas falso testemunho. Tu te acautelas dos pecados graves, relativamente aos leves? Derrubaste a parte volumosa, cuidado para não ficares sob os escombros.

Vs. 13. 14: “Por isso o meu ânimo desfalece” (13 d). Porque admirar se teu coração foi abandonado por teu Deus, se descuida de si mesmo? Quer dizer: Quero ver o Senhor através do meu coração e não posso, por causa da quantidade de meus pecados; ainda não é tudo: o coração nem a si mesmo compreende. Pois ninguém se compreende, ninguém presuma de si mesmo. Acaso Pedro compreendeu o próprio coração, por ele mesmo quando disse: “Mesmo que tenha de morrer contigo…” (Mt 26, 35). Em seu coração havia falsa presunção, escondia-se verdadeiro medo; ao doente estava oculto o que havia no coração, mas para o médico era evidente. Realiza-se o que este predisse. Deus conhecia nele o que ele mesmo desconhecia. “Por isso, o meu ânimo desfalece” (13 d). E então como clamaremos? O que diremos? “Senhor, vem em meu auxílio” (14 a). De certo modo, é como se dissesse: “«Senhor, se quiseres, podes purificar-me»” (Mt 8, 2).

“Senhor, vem em meu auxílio, vem depressa socorrer-me” (14).

V. 15: “Fiquem confundidos e cobertos de vergonha os que procuram tirar-me a vida” (15 a). Em certa passagem o salmista acusa: “Olha à minha volta e vê: não há quem cuide de mim” (Sl 141, 5), isto é, não havia quem me imitasse. Fala Cristo, na paixão; Ele olhava à direita, isto é, não para os ímpios judeus, mas a própria direita, para os apóstolos: E não havia quem cuidasse da minha vida. Mas como existem duas maneiras de procurar alguém uma com amizade e outra no intuito de perseguição, aqui trata dos segundos que quer que sejam confundidos e envergonhados por procurarem a sua vida; procuraram a sua vida, e conforme lhes pareceu conveniente, tiraram-lhe a vida; mas Ele tinha o poder de dar a sua vida, e poder de a retomar (Jo 10, 18). Portanto, aqueles que se alegraram quando Ele morreu, ficaram confusos com a ressurreição. “Retrocedam a corem de vergonha os que desejam a minha desgraça” (15 b). Não tomemos isto no pior sentido. Ele está desejando o bem para eles. Pois trata-se da voz daquele que disse na cruz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Por que então lhes diz que retrocedam? Porque os que antes eram soberbos a ponto de terem de retroceder, fizeram-se humildes para ressurgirem. Por esta razão, o Senhor censura Pedro. O Senhor estava para sofrer a paixão por causa da nossa Salvação e anunciava de antemão o que sucederia na própria paixão, mas Pedro lhe disse: “Deus te livre, Senhor! Isso nunca há-de acontecer” (Mt 16, 22. 23). Queria ir à frente do Senhor e dar conselhos ao Mestre. O Senhor, porém, lhe respondeu, para não deixá-lo ir à frente, mas para fazê-lo seu seguidor: “Afasta-te Satanás” (Mt 16, 23)! Satanás, por quereres ir à frente daquele que devias seguir; se ficares para trás e seguires, já não serás Satanás. Será o quê, então? “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18).

Vs. 16. 17: “Fiquem atónitos e cheios de vergonha os que troçam de mim” (16). São malévolos os que apesar de bendizerem, quanto ao que têm no coração, maldizem. Aconteceu aos judeus por causa do cego de nascimento que passou a ver. Quando eles o enchiam de insultos e o pressionavam, o cego perguntou-lhes: “Será que também quereis fazer-vos seus discípulos”? E injuriaram-no. Assim se exprime o evangelista: “Injuriaram-no, dizendo-lhe: «Discípulo dele és tu” (Jo 9, 27. 28). Eles maldisseram-No, mas o Senhor abençoou; fez ao curado aquilo que os judeus lhe disseram, e retribui a estes conforme a sua maldição. Existem outros malvados que desejam o bem; destes também devemos precaver-nos; Se te disser: Ninguém é melhor que tu, quando estás praticando o mal (porque o pecador se gloria nos desejos de sua alma e o iníquo se bendiz), louvando-te, deseja o mal. Como o primeiro, ao te maldizer, desejava-te um bem, assim o segundo profere o mal contra ti, ao te bendizer. Foge de ambas as espécies de inimigos; acautela-te de um e de outro. O primeiro se enfurece, o segundo acaricia; ambos são maus. O primeiro censura, o segundo elogia; mas tanto um é inimigo com as suas censuras, quanto o outro é fingido com os seus elogios. Acautela-te de ambos, reza em oposição a um e a outro. Mas eles vêem que em ti me glorio, se tenho alguma coisa de que me gloriar. “Aquele que se gloria, gloria-se no Senhor” (1 Cor 1, 31). “Mas alegrem-se e exultem em ti todos os que te procuram. Digam sem cessar os que desejam a tua salvação: “«O Senhor é grande» (17)». Embora o pecador se torne justo, glorifica aquele que justifica o ímpio (Rm 4, 5). Seja, portanto, pecador; louve aquele que chama ao perdão. Se já caminha na via da justiça, louve quem chama à coroa.

V. 18: O Senhor rasgue o meu saco e me cubra com a sua veste: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Se Cristo vive em ti, e todo o bem que tens é de Cristo, tudo o que terás é de Cristo. Por ti mesmo o que és? “Eu, porém, sou pobre e miserável (18 a)”. Não sou rico, porque não sou soberbo. Era rico aquele que dizia: “Ó Deus, dou-te graças, por não ser como o resto dos homens”. O cobrador de impostos, pobre, pois dizia: “Ó Deus tem piedade de mim, pecador” (Lc 18, 11. 13). O primeiro arrotava por causa da saciedade, o segundo chorava de fome.

“Eu, porém, sou pobre e miserável” (18 a). E o que hás-de fazer, ó desvalido e pobre? Mendiga diante da porta de Deus; bate e abrir-se-á. “Confia ao Senhor os teus cuidados e Ele será o teu sustentáculo; não permitirá que o justo vacile para sempre” (Sl 54, 23). Lança sobre o Senhor s teus cuidados, espera nele e Ele agirá. Porque hás-de te preocupar contigo? De que te proverás? Cuidou de ti o teu Criador. Ele que antes de existires cuidou de ti, como não cuidará quando já és aquilo que Ele quis que fosses? Não cuidará de ti aquele que faz o seu Sol se levantar sobre bons e maus e chover sobre justos e pecadores (Mt 5, 45)? Agora que já és justo e vives da fé (Rm 1, 17), há-de negligenciar, abandonar, deixar?

Ao contrário, favorece, ajuda, dá o necessário, corta o que é prejudicial. Se dá, consola para que perseveres; se tira, corrige para que não te percas. O Senhor cuida de ti, fica tranquilo. Teu Criador te sustenta, não escapas da mão do teu artífice, porque se caíres tu te quebrarás. Diz: Meu Deus o quis, Ele me carregará, me segurará. Lança-te nele; não penses que é inútil ou é um precipício. Ele disse: “Não sou Eu que encho o céu e a terra” (Jr 23, 24)? Ele jamais te faltará. Tu é que não lhe deves faltar, nem a ti mesmo.

“Ó Deus, cuida de mim” (18 b). “Tu és o meu auxílio e o meu libertador: ó meu Deus! Não tardes” (18 c d). O que quer dizer: “Não tardes?” “E, se não fossem abreviados esses dias, criatura alguma se poderia salvar” (Mt 24, 22), acabamos de ler acerca dos dias das tribulações. Rogam a Deus, como se fosse um só homem, os membros de Cristo, o Corpo de Cristo, espalhado por toda a parte, um só mendigo, um só pobre. Pois, também Cristo que era rico se fez pobre, conforme diz o Apóstolo: “Que sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). Enriquece os verdadeiros pobres e empobrece os falsos ricos. Clama o Corpo de Cristo a Deus: “Dos confins da terra grito por ti, com o meu coração desfalecido” (Sl 60, 3). Neste mundo as Escrituras, não nos prometem senão tribulações, angústias, aflições, abundância das tentações. Preparamo-nos principalmente para isso, para não desfalecermos por falta de preparação. “Ai das que estiverem grávidas e das que andarem amamentando” (Mt 24, 19). Grávidas são figuras dos que se enchem de esperanças e as que amamentam, dos que já alcançaram o objecto das suas ambições. Pois, a mulher grávida se enche de esperanças acerca do filho, mas não o vê ainda; a que já amamenta abraça o que esperava. Ouçamos enquanto vivamos, corrijamo-nos. Temos de mudar os corações, levá-los ao alto, não deixá-los habitar aqui; a região é má. Baste-nos ser necessário permanecer aqui pela carne. Baste a cada dia o seu problema (Mt 6, 34). Coração ao alto… Diz o Apóstolo aos fiéis que recebem o corpo e o sangue do Senhor: “Portanto, já que fostes ressuscitados com Cristo, procurais coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Aspirai às coisas do alto e não às coisas da terra. Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3, 1-3). Ainda não aparece o que vos foi prometido; está preparado, mas vós ainda não vistes. Agora não se realiza, mas realizar-se-á. Quem pode enumerar quantas profecias, segundo as Escrituras, já se realizaram? Nelas encontra-se escrito a respeito da Igreja, e já se vê realizado. O Senhor cuidará de mim. Tu és meu auxílio e protector, não tardes, meu Deus. “E se não fossem abreviados esses dias, criatura alguma se poderia salvar. Mas, por causa dos eleitos, esses dias serão reduzidos” (Mt 24, 22). Serão dias de tribulação, mas não tão longos quantos se pensa. Logo passarão; o repouso que se seguirá não passará. Embora longo, o mal deve ser suportado em vista do infinito.

SALMO 41 (40)

Catequese

Versículo 1: Amiúde rememoremos e não coramos de repetir o que vos é útil reter, isto é, que nosso Senhor Jesus Cristo, às vezes fala por si mesmo, a saber, por si enquanto nossa Cabeça, e outras vezes, fala em lugar do Corpo, que somos nós a sua Igreja. Tal acontece, porém, como se as palavras saíssem da boca de um só homem, a fim de entendermos integrarem-se Cabeça e Corpo numa unidade, sendo mutuamente inseparáveis, à semelhança da união, da qual se disse: “Os dois serão uma só carne” (Gn 2, 24; Ef 5, 31).

V. 2: “Feliz daquele que cuida do pobre; no dia da desgraça o Senhor o salvará” (2). Virão os dias maus, queiras ou não. Aproxima-se o dia do juízo, mau dia se não te lembraste do necessitado e do pobre. Mas não poderás fugir ao se tornar manifesto, porque não acreditas enquanto está oculto. És convidado a acreditar no que não vês, para não te envergonhares quando o vires. Entende o necessitado e o pobre, isto é, Cristo. Nele estão ocultas riquezas. Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2, 3). Daí vem que Ele, enquanto Deus, te livrará do dia mau; o que havia de humano nele ressuscitou, e em estado melhor foi levado ao Céu. Ele, contudo, que é Deus, e quis ser uma só e mesma pessoa também na natureza humana e com ela, não podia diminuir nem aumentar, morrer nem ressurgir. Morreu devido à fraqueza humana, pois Deus não morre. Não te admires de que o Verbo de Deus não morra, visto que não morre a alma do mártir. Diz o Senhor: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma” (Mt 10, 28). Por conseguinte, ao morrerem os mártires, suas almas não morrem; então ao morrer o Cristo, o Verbo haveria de morrer? Efectivamente, o Verbo é muito maior do que a alma humana, porque a alma humana foi criada por Deus, e se foi criada por Deus foi feita pelo Verbo, uma vez que por Ele tudo começou a existir (Jo 1, 3). Mas, como dizemos com razão: O homem morreu, embora sua alma não morra, apesar de que a divindade não morre, assim dizemos com certeza: Cristo morreu, apesar de que a divindade não morre. Porque morreu? Porque necessitado e pobre.

“Feliz daquele que cuida do pobre” (2 a). Olha os pobres, carentes, famintos, sedentos, peregrinos, nus, doentes, encarcerados; entende tais pobres, porque se os entenderes, hás-de entender aquele que disse: “Tive fome, tive sede, estive nu, fui peregrino, doente, prisioneiro” (Mt 25, 35-36). Então, no dia do infortúnio, o Senhor te livrará.

V. 3: Vê qual é a tua felicidade: “O Senhor o guardará” (3 a). O profeta deseja o bem para o homem que entende o necessitado e o pobre. Este voto é uma promessa; esperem confiantes os que agem assim. O que significa: “O Senhor o guardará e lhe dará vida?” (3 a). A que pertence o voto: “O vivifique”? À vida futura. É prometida aquela vivificação, da qual fala o Apóstolo: “O corpo está morto por causa do pecado; mas o espírito é a vossa vida por causa da justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele que ressuscitou Cristo de entre os mortos, dará vida também aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 10. 11). Este é o reviver prometido àquele que se lembra do necessitado e do pobre. Mas, conforme diz o Apóstolo a Timóteo: “Tem a promessa da vida presente e da futura” (1 Tm 4, 8). Não pensem os que entendem o necessitado e o pobre que hão-de ser recebidos no céu, mas serão negligenciados na terra. Quanto ao presente, referindo-se a esta vida: “e felicidade na terra” (3 b). Deus não te abandona na terra, só prometendo alguma coisa para o céu. Muitos maus cristãos cultuam a Deus por causa da vida eterna, e ao diabo em vista da vida presente. O próprio Cristo lhe responde: Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6, 24). Se cultuas a um por causa do que esperas obter do céu, e a outro devido ao que esperas na terra, como não será muito melhor adorar a um só, aquele que fez o céu e a terra. Descuidar-se-á de sua imagem na terra aquele que cuidou de criar a terra?

“Não o abandonará à mercê dos seus inimigos” (3 c). O inimigo é o diabo. Ninguém pense num homem inimigo, ao ouvir tais palavras; mas pensa naquele inimigo, ao ouvir tais palavras; mas pensa naquele inimigo ao qual diz o Senhor: “Foi algum inimigo meu que fez isto” (Mt 13, 28). É ele quem insinua que se lhe preste culto por causa dos bens terrenos, porque não consegue destruir o nome cristão. Vê-se vencido pela fama e pelos louvores de Cristo, vê que os mártires depois de mortos são coroados e dele triunfam. Os hesitantes venham à fé. Não digam: Quem pode cumprir esta lei? Se presumires das próprias forças, não cumprirás. Creiam, presumindo da graça de Deus, venham para ser ajudados, não para serem julgados. Todos os fiéis vivem no nome de Cristo, cada qual cumprindo os preceitos de Cristo, em seu respectivo estado, sejam casados, sejam solteiros ou virgens. Vivam quanto o Senhor lhes der de viver. Não presumam de suas forças, mas saibam que nele é que se devem gloriar. “O que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias, como se não tivesses recebido (1 Cor 4, 7)? Pensando nessas coisas, porque entendo o necessitado e o pobre e não despreza a pobreza de Cristo, entende as riquezas de Cristo, torna-se feliz na terra; e não será entregue às mãos do inimigo que procura persuadi-lo a adorar a Deus por causa dos bens celestes e ao diabo por causa dos terrenos.

V. 4: “O Senhor o assistirá” (4 a). Mas onde? Acaso no céu, talvez na vida eterna, de sorte que o diabo há-de ser cultuado por causa da indigência terrena, das necessidades da vida actual? De forma alguma. Tens a promessa da vida presente e da futura (1 Tm 4, 8). Aquele que veio à terra por tua causa, criou o céu e a terra. Ele diz: “O Senhor o assistirá no leito do sofrimento” (4 a). Leito de dor é a fraqueza da carne. Não digas: Não posso contar, carregar, frear a minha carne. Auxilia-te no intuito de que o consiga. O Senhor te assistirá em teu leito de dor. O catre te carregava; não eras tu quem o carregavas, mas jazias como paralítico sobre ele. Apresenta-se aquele que te ordenará: “Pega no teu catre e vai para tua casa” (Mc 2, 11). “O Senhor assistirá no leito do sofrimento” (4 a). Então o salmista volta-se para o Senhor, para Lhe perguntar: Porque é que, apesar do auxílio do Senhor, sofremos tantos males nesta vida, tantos escândalos, tanta inquietação, da parte da carne e do mundo? Volta-se para Deus, e nos expõe como que um conselho medicinal:

“Quando estiver de cama, o restabelecerá da doença” (4 b). Por cama entende-se algo de terreno. Toda a alma fraca nesta vida procura para si algum objecto terreno em que possa repousar, porque dificilmente pode de modo contínuo manter a intensidade do labor e a mente dirigida para Deus. Busca para si na terra alguma coisa onde possa descansar, como são os objectos a que mesmo os inocentes têm afeição. Não se pode falar aqui das concupiscências más. Mas removamos tudo isso, e pensemos como age um homem honesto. Ele descansa em casa, com a família, a mulher, seus filhos, com pobreza, em sua cozinha, na vinha plantada com as suas próprias mãos. Os homens honestos se recriam em tais coisas. No entanto, como Deus não quer que amemos senão a vida eterna, mistura amarguras nestes inocentes deleites. Temos assim tribulações, mas Ele refaz-nos a cama quando estamos enfermos. Por isso, não se queixe alguém que passa por tribulações no meio destas coisas que possui honestamente. Está a aprender a amar as coisas melhores no meio das tribulações amargas das coisas inferiores, para que ao viajar a caminho da pátria, não ame albergue em vez da sua casa.

V. 5: Mas qual o motivo disso tudo? Porque o Senhor corrige todos os filhos que ama (Hb 12, 6). Mas porque é assim? Porque foi dito ao homem depois do pecado: “Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gn 3, 19). Por conseguinte, o homem há-de reconhecer que sofre por causa dos seus pecados, nesta correcção em que toda a nossa cama é refeita, durante a nossa enfermidade; converta-se e repita o seguinte: “Eu disse: «Senhor, tem compaixão de mim; cura-me, embora tenha pecado contra ti» ” (5). Ó Senhor exercita-me no meio das tribulações; achas que deves castigar todo o filho que acolhes, pois não poupaste nem o Unigénito. Entreguemo-nos inteiramente à mão do médico; Ele não erra. Conhece o que examina, conhece a doença, porque foi Ele próprio que criou a natureza. Distingue o que Ele criou daquilo que nossa ambição acrescentou. Sabe que deu um preceito ao homem com saúde para que não adoecesse. Ele disse no paraíso: podes comer disto, daquilo não (Gn 2; 16. 17). O homem com saúde não escutou a ordem do médico, a fim de não cair. Ouça o doente para se curar: “Eu disse: «Senhor, tem compaixão de mim, cura-me embora tenha pecado contra ti?» (5). Em minhas acções, em meus pecados, não acuso a fortuna. Não digo aconteceu-me por acaso. Acaso aconteceu isto a Cristo? Não é Ele a nossa Cabeça sem pecado? “Terei de restituir aquilo que não roubei” (Sl 68, 5)? Será Ele o único livre no meio dos mortos? Livre entre os mortos, porque não tem pecado e, “todo aquele que comete o pecado é servo do pecado” (Jo 8, 34). Talvez o tenha dito Ele mesmo? É preferível dizer que foi Ele me lugar dos seus membros, porque a voz dos membros é a sua voz, uma vez que a voz da nossa Cabeça é a nossa voz. Pois estávamos nele quando declarou: “A minha alma está numa tristeza de morte” (Mt 26, 38). Viera para morrer, por isso não temia a morte. Nem recusava a morte aquele que tinha o poder de dar a sua vida e o poder de novamente retomá-la (Jo 10, 18). Mas, os membros falavam por meio da Cabeça, e a Cabeça falava em lugar dos membros. Encontramos, portanto, nele a nossa voz: “Cura-me, embora tenha pecado contra Ti!” (5 b). Estávamos nele, quando rezou: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” (Mt 27, 46)? No mesmo salmo, que começa por este versículo, encontra-se o seguinte: “Rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro” (Sl 21, 2). Que delitos havia nele, a não ser que consideremos, que o nosso velho homem foi simultaneamente com Ele crucificado, para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não somos mais escravos do pecado (Rm 6, 6)? A Ele e nele digamos: “Eu disse: «Senhor, tem compaixão de mim, cura-me, embora tenha pecado contra ti!» ” (5).

V. 6: “Os meus inimigos falam mal de mim e dizem: «Quando morrerá e será esquecido o seu nome» ” (6). É nosso Senhor Jesus Cristo quem fala, mas notai se aqui não incluem também os membros. Assim foi dito a respeito de nosso Senhor, quando andava na terra, revestido de carne mortal. Os judeus viram que a multidão aceitava sua autoridade e que os milagres revelavam sua divindade e majestade. Pois, ao verificarem tudo isso os judeus, aos quais o Senhor aplicou a parábola dos que disseram: “Este é o herdeiro. Matemo-lo e ficaremos com a sua herança” (Mt 21, 38), retomaram para si mesmos e entre si a palavra de Caifás: “Se o deixarmos assim, todos irão crer nele e virão os romanos, destruirão o nosso Lugar santo e a nossa nação. Vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo e não pereça a nação inteira”. O evangelista explica-nos as palavras que não sabia o que dizia: “Não dizia isto por si mesmo; mas como era Sumo-Sacerdote profetizou que Jesus devia morrer pela nação” (Jo 11, 48-52). No entanto, vendo que o povo atrás dele, disseram: “ «Quando morrerá e será esquecido o seu nome?» ” (6 b). Queriam dizer: Quando o matarmos, seu nome não se extinguirá sobre a terra, e morto já não poderá seduzir os outros. Morreu; e seu nome não se extinguiu, mas se disseminou. Mas como o grão de trigo que, lançado à terra morreu e deu muito fruto (Jo 12, 24). Por conseguinte, ao ser glorificado nosso Senhor Jesus Cristo, começaram os homens muito mais em maior número a crer nele. Já estando, portanto, nosso Senhor Jesus Cristo estabelecido no Céu, mas ainda connosco em labuta na terra continuam a dizer os seus inimigos: “ «Quando morrerá e será esquecido o seu nome?» ” (6 b). Por este motivo, o diabo excitou perseguições na Igreja para perder o nome de Cristo. Os mártires foram mortos, a fim de que Cristo morresse, não enquanto Cabeça, mas em seu Corpo.

O sangue derramado dos santos serviu para aumentar a Igreja e a morte dos mártires foi uma semeadura. “É preciosa aos olhos do Senhor a morte de Seus fiéis” (Sl 115, 15). Cristo morreu, seu nome não se extinguirá. Os mártires morreram, a Igreja aumentou ainda mais, o nome de Cristo se divulgou entre todas as gentes. Quem predisse sua morte e sua ressurreição, quem pedisse a morte e a coroa dos seus mártires foi o mesmo que fez predições a respeito da sua futura Igreja. É em vão, portanto, o que acreditais contra Ele; é melhor acreditar nele, para entenderes o necessitado e o pobre, porque Ele “sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). Agora se diz: Era uma vez um homem. Por que era? Porque morreu, foi crucificado, adorais um homem, tendes esperança em um homem, adorais um morto. Tu enganas-te. Procura entender o necessitado e o pobre, para te tornares rico por sua pobreza. O que quer dizer: entende o necessitado e o pobre? Recebes o Cristo necessitado e pobre, que diz em outro salmo: “Eu, porém, sou pobre miserável: ó Deus, cuida de mim” (Sl 39, 18). O que significa entender o necessitado e o pobre? “Esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem” (Fl 2, 7). Rico junto ao Pai, pobre entre nós; rico no Céu, pobre na terra. Deus rico, homem pobre. Entende que ali onde a ti se revela a fraqueza, esconde-se a divindade. É rico porque o é em si; pobre porque tu o eras. No entanto, a sua pobreza se tornou a nossa riqueza, assim como a sua fraqueza é a nossa fortaleza, a sua loucura é a nossa sabedoria, a Sua mortalidade é a nossa redenção, (1 Cor 1, 30). Aquele que se fez pobre veio enriquecer os pobres. Por isso, sobre o seio da fé, recebe o pobre para não permaneceres pobre.

V. 7: “Os que me visitam dizem palavras triviais” (7 a). Sofre a Igreja o mesmo que Cristo sofreu; padecem os membros com a Cabeça. Será o servo maior que o seu senhor, e o discípulo que o mestre? “Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós” (Jo 15, 20). “Se ao dono da casa chamaram Belzebu, o que não chamarão eles aos familiares?” (Mt 10, 24). Judas achava-se junto da nossa Cabeça. Não procurava motivo de crer, mas meios de O entregar. Em nossa Cabeça foi-nos proposto um exemplo. Como agiram aqueles membros, depois da ascensão de nossa Cabeça? Não o declara o apóstolo Paulo: “Por causa de uns intrusos, falsos irmãos, esses que furtivamente se intrometeram a espiar a nossa liberdade” (Gl 2, 4)? Esses também, portanto, entraram para ver, pois são hipócritas, fingidos, que se aproximam com caridade simulada, observando cada movimento, cada palavra dos santos. Falam com amor fingido. “O seu coração está cheio de malícia” (7 b). Pois, os inimigos ao inventarem calúnias, julgam-se importantes, por terem o que acusar. Como Judas prejudicou a si mesmo, não a Cristo, assim também os fingidos dentro da Igreja atingem a si mesmos, não a nós. Deles foi dito em outra passagem: “E a iniquidade mentiu a si mesma. E como entraram para ver, mal saem à rua, dão-na logo a conhecer” (7 c). Aquele que entrou para verificar, foi para fora e pôs-se a falar. Seria muito melhor ficar dentro e falar a verdade. É traidor e perseguidor, vai para fora e fala. Se pertences ao Corpo de Cristo, vem para dentro, adere à Cabeça. Se és trigo suporta o joio. Suporta a palha se és trigo (Mt 13, 30).

V. 8: “Todos os que me odeiam murmuram contra mim” (8 a). Cristo se dirige a eles. Porque estais contra mim? Porque não ficais comigo? Se me tivésseis sempre não vos dividiríeis, provocando cismas. Pois diz o Apóstolo: “Peço-vos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que estejais todos de acordo e não haja divisões entre vós” (1 Cor 1, 10). “Todos os que me odeiam murmuram contra mim e planeiam contra mim toda a espécie de mal” (8). Pelo facto de nada conseguirem, nem por isso nada quiseram fazer. Pois também o diabo desejou exterminar a Cristo, e Judas quis matá-lo. No entanto, Cristo morreu, ressuscitou, e nós fomos vivificados; ao diabo e a Judas é atribuída a paga de sua má vontade, e não da nossa salvação. Da intenção de alguém depende o prémio ou o castigo.

V. 9: “Uma doença maligna o atingiu. Donde está deitado não voltará a erguer-se” (9). Observai como sentenciaram contra a própria Cabeça: “Matemo-lo e ficaremos com a sua herança” (Mt 21, 38). Estultos. De que modo a herança será vossa? Seria porque o matastes? Eis que o matastes e a herança não será vossa. Quando exultaste por havê-lo matado Ele adormeceu; pois diz Ele em outro salmo: “Adormeci”. Se quisesse não teria adormecido. “Adormeci porque tenho o poder de oferecer a vida, e o poder de a retomar. Adormeci a acordei. (Jo 10, 18; Sl 3, 6). Por ventura, aquele que dorme, não poderá reerguer-se? Porque dormiu? Porque Adão era figura do futuro Adão (Rm 5, 14); e Adão dormiu, quando Eva foi tirada de seu lado (Gn 2, 21). Adão era figura de Cristo; Eva era figura da Igreja; por isso foi chamada mãe dos vivos. Quando é que Eva foi criada? Quando Adão dormia. Quando brotaram de Cristo os sacramentos da Igreja? Quando Cristo adormeceu na Cruz.

V. 10: Qual o motivo por que adormeceu? Por causa daquele que entrou para ver, e amontoou para si iniquidades.

“Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia de meu pão, até ele se levantou contra mim” (10). Quem é este amigo? Judas. Teria Cristo confiado nele, porque disse: “Em que eu confiava”? Ele não o conhecia desde o início? Não sabia o que havia de ser, antes do seu nascimento? Não havia dito a todos os discípulos: “Não vos escolhi eu a vós os Doze? Contudo, um de vós é um diabo” (Jo 6, 70). Como, então, confiou nele, a não ser porque ele mesmo está em seus membros, e o Senhor transferiu para si aquela confiança que muitos fiéis haviam depositado em Judas? Ao verem muitos dos que acreditavam em Cristo Judas andar entre os Doze discípulos, confiavam nele. Era qual os demais. Cristo, porém, estava em seus membros que nele confiavam, como está naqueles que estão famintos e sedentos. Como disse: “Tive fome”, também: “Confiei”. Por conseguinte, se lhe perguntarmos: Senhor, quando foi que confiaste? Da mesma forma com que foi interrogado: Senhor, quando foi que te vimos com fome? Assim como ali nos disse: “Sempre que fizestes isso a um destes irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40), igualmente aqui pode responder: Cada vez que confiou um desses pequeninos que são meus, fui Eu que confiei. Em que confiou? “Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim” (10). Como mostrou Ele na paixão a realização dessas palavras proféticas? Designou Judas por meio do bocado de pão (Jo 13, 26), para se manifestar que foi dito a respeito dele: Que comia de meu pão. E ainda, quando Judas veio para entregá-Lo este deu-lhe um beijo (Mt 26, 49), para se lhe atribuir a palavra do salmo: “Até o Amigo”.

V. 11: “Mas Tu, Senhor, tem compaixão de mim” (11 a). Relaciona-se com a condição de servo, com a condição de necessitado e de pobre. Tu, porém, tem piedade de mim, ergue-me e dar-lhes-ei a merecida retribuição. Notai quando foi dito o que já se realizou. Os judeus mataram Cristo para não perderem o Lugar santo (Jo 11, 48). Mas depois que Ele foi morto perderam o lugar. Foram expulsos do Reino e dispersados. Depois que ressuscitou, retribui-lhes com tribulações, para aviso, ainda não para condenação. “Levanta-me, para que me possa vingar deles” (11 b). Todavia, não deveis pensar que o Filho é menos poderoso que o Pai porque disse: “Levanta-me, para que me possa vingar deles” (11 b), como se Ele não pudesse ressuscitar a si mesmo. Ressuscitou aquilo que podia morrer, isto é, a carne morreu, a carne foi ressuscitada. Para evitar que penseis ter Deus, o Pai de Cristo, podido ressuscitar o Cristo, isto é, a carne de seu Filho, e o próprio Cristo, que é o verdadeiro Deus igual ao Pai, não tinha poder para ressuscitar sua carne, ouvi a palavra do Evangelho: “Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei” (Jo 2, 19, 21). O evangelista, para que não duvidássemos, também acrescentou: “Ele falava do templo que é o seu corpo”.

V. 12: “Nisto reconhecerei que me quereis bem: se o meu inimigo não triunfar de mim” (12). Os judeus se regozijaram ao ver Cristo crucificado e pensavam que se realizava o seu plano de prejudicá-lo. Viram o fruto da sua crueldade: Cristo pendente da cruz. Sacudiram a cabeça dizendo: “Se és Filho de Deus desce dessa cruz” (Mt 27, 39. 40). Podia descer, mas não desceu. Permaneceu na cruz enquanto eles O insultavam, ficou firme enquanto eles o insultavam, ficou firme enquanto eles vacilavam. De facto, Ele nos ensinou a paciência. Não fez demonstração de maior força, pois não quis agir conforme a provocação dos judeus. É efeito de maior poder ressuscitar do sepulcro do que descer da cruz. “Se o meu inimigo não triunfar de mim” (12 b). Naquela ocasião eles se alegraram. Cristo ressuscitou. Cristo foi glorificado. Eles vêem agora que em seu nome o género humano se converte. “Como um cordeiro que é levado ao matadouro, ou como ovelha emudecida nas mãos do tosquiador. Fomos curados pelas suas chagas” (Is 53, 7. 5).

Verificamos que este crucificado arrasta após si o género humano; foi inutilmente que nossos pais disseram: Matemo-Lo; “toda a gente se foi com Ele!” (Jo 12, 19). Talvez não fosse, se Ele não tivesse sido morto.

“Nisto reconhecerei que me queres bem: se o meu inimigo não triunfar de mim” (12)

Vs. 13. 14: “Tu me ajudarás, porque vivo com sinceridade e me farás viver sempre na tua presença” (13).

Firmaste-me para sempre, enfraqueceste-me, por algum tempo; firmaste em tua presença, enfraqueceste diante dos homens. O que fazer então? A Ele louvor e glória: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel” (14 a). Ele é, pois, o Deus de Israel, o nosso Deus, o Deus de Jacob, o Deus de filho menor, o Deus do povo menor. O filho mais velho é o povo mais antigo, que foi reprovado; o filho menor é o povo amado. “O mais velho servirá o mais novo” (Gn 25, 23). Esta palavra agora se realizou. Caim, o irmão mais velho, que matou o menor, ficou marcado com um sinal para não ser morto, isto é, para que aquele povo subsista (Gn 4, 15). Deles, dos judeus, são os profetas e a lei. Por ela e pelos profetas Cristo foi anunciado. Ao tratarmos com pagãos e lhe mostrarmos que agora se realizou na Igreja de Cristo o que foi anteriormente predito do nome de Cristo, da Cabeça e do Corpo de Cristo, a fim de que eles não pensem que inventamos aquelas predições. Predisse anteriormente, cumpriu no presente, e o que ainda não realizou, há-de realizar-se. Se alguém quiser experimentar onde estão escritas as promessas, leia Moisés e os profetas. Se algum inimigo replicar: Vós inventastes vossas profecias, apresentem-se os códices dos judeus, porque o mais velho servirá o menor. Leiam-se, aliás, as profecias, agora cumpridas e digamos todos: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, desde agora e para sempre. Ámen! Ámen!” (14).

SALMO 42 (41)

Catequese

Versículo 2: Ouvi o que por nosso intermédio o que Deus nos inspira, exultai nele connosco, em sua palavra, em sua verdade, em sua caridade. O salmo começa por um santo desejo, e diz quem o canta: “Como suspira a corsa pelas águas correntes, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus” (2). Quem quer que sejas tu, se está em teu poder o que buscas? No entanto, não é apenas um só homem, mas é um só Corpo: o corpo de Cristo, que é a Igreja (Cl 1, 24). Não se encontra tal desejo em todos os que entraram na Igreja; contudo, todos os que experimentaram a suavidade do Senhor, não pensem que estão sozinhos, mas acreditem, que tais sementes foram espalhadas no campo do Senhor por todo o orbe da terra, e constitui a voz de certa unidade cristã o que se segue: “Como suspira a corça pelas águas correntes, assim minha alma suspira por Ti, ó Deus” (2).

V. 1: O título do salmo é o seguinte: “Ao director do coro. Poema dos filhos de Coré” (1). Encontram-se os filhos de Coré igualmente em títulos de outros salmos. Houve um homem chamado Coré e teve filhos, que eram conhecidos sob o nome de filhos de Coré (Nm 26, 11). Nós perscrutemos o segredo desta figura, e o nome dê à luz o mistério de que está prenhe. É grande sacramento a denominação de filhos de Coré atribuída aos Cristãos. Porquê filhos de Coré? Porque filhos do esposo, filhos de Cristo. Os Cristãos são apelidados filhos do esposo. Porque razão Cristo era Coré? Porque Coré significa Calvário. Perguntava qual a razão de se denominar a Cristo de Coré. Procuro saber com maior insistência por que Cristo tem referência a Calvário. Logo não nos ocorre que Cristo foi crucificado no “Lugar do Crânio” (Mt 27, 33)? É claro que ocorre. Por conseguinte, os filhos do esposo (Mt 9, 15), os filhos redimidos em seu sangue, os filhos de sua cruz, que na fronte trazem o sinal daquilo que os inimigos pregaram no Calvário, chama-se filhos de Coré; Para que eles o entendam é que se canta o presente salmo. O que havemos de entender? E qual o objecto deste conhecimento? Ouso dizer: “O que é invisível nele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20). Avante, irmãos, juntos corramos para a fonte do entendimento. Aspiremos como o cervo pela fonte, não a fonte desejada pelos que ainda não receberam o baptismo em vista da remissão dos pecados, mas, já baptizados, anelemos por aquela fonte: “Pois em ti está a fonte da vida e é na tua luz que vemos a luz” (Sl 35, 10). Se Cristo é fonte, também é luz. Todo aquele que entende, é iluminado por certa luz, não corporal, não carnal, não exterior, mas interior. Existe, portanto, irmãos, certa luz interior, que não possuem os que não entendem. Daí dirigir-se o Apóstolo, com censuras: “É isto, pois, o que digo e recomendo no Senhor: Não volteis a proceder como procedem os gentios, no vazio da sua mente; vivem obscurecidos no pensamento, alienados, da vida de Deus, devido à sua ignorância que neles existe e ao endurecimento do seu coração” (Ef 4, 17. 18). Corre à fonte, deseja o manancial das águas. Junto de Deus está a fonte da vida e a fonte inexaurível; na sua luz temos uma luz indefectível. Deseja tal luz, certa fonte, certa luz que teus olhos desconhecem. Os olhos interiores são capazes de vê-la. Corre para a fonte, deseja-a; mas não de qualquer forma, nem corras como qualquer animal. Corre como o cervo. O que quer dizer como o cervo? Não haja tardança na corrida, corre sem preguiça. Sabemos que o cervo tem grande velocidade.

V. 2: Talvez a Escritura não quisesse apenas levar isto em conta do cervo, mas também insinuar outra coisa. Ouve o que acontece ainda ao cervo. Ele mata as serpentes, depois de matá-las sente sede mais ardente, e, por isso, mortas as serpentes, corre mais veloz para as fontes. As serpentes representam os teus vícios. Consome as serpentes da iniquidade e desejarás com maior ardor a fonte da verdade. Por conseguinte, se ainda favoreces teu vício, tua ambição, tua avareza, tua serpente, se ainda encontro em ti tal desejo, como correrás para a fonte das águas? Quando hás-de aspirar pela fonte da sabedoria, se ainda sofres as consequências do veneno da malícia? Mata em ti tudo o que é contrário à verdade; se te vires de certo modo isento das perversas ambições, não penses como se não houvesse mais o que desejar. Existe ainda alguma coisa que te eleve, se já conseguiste afastar os obstáculos que havia em ti. Anela por algum prazer; aspira pelas “fontes das águas”. Deus tem como te refazer e desalterar aquele que O procura sedento, depois de matar as serpentes, como um cervo veloz.

Nota-se outra coisa ainda no cervo. Conta-se que os cervos, quando avançam no meio de um bando, quando procuram outras partes da terra nadando, apoiam as suas cabeças uns nos outros, de sorte que um vai à frente, e o segundo põe sobre ele a cabeça, e assim, em seguida, todos eles até ao fim do rebanho. Quando o da frente, que suportava o primeiro lugar o peso da cabeça, fica cansado, vai para o fim, de modo a que outro tome o seu lugar e carregue o que ele carregava, para que o primeiro descanse, apoiando a cabeça, como os demais faziam: assim se vão alternando em carregar o peso e terminam a viagem ajudando-se mutuamente. Não seria de uma espécie de cervos que fala o Apóstolo: “Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo” (Gl 6, 2)?

V. 3: Um cervo desses já fiel, sofre da parte dos cervos que, ao contrário, têm a inteligência obscurecida; estes, mergulhados nas trevas interiores e obcecados pela cupidez dos vícios. Além disso, insultam o fiel, que não mostra aquele em quem crê, dizendo: “Onde está o teu Deus”. Ouçamos o que o cervo replica a tais palavras. Em primeiro lugar, exprime qual a sua sede: “Como aspira a corça pelas águas correntes, assim minha alma suspira por ti, ó Deus” (2). Como continuava o salmista? “A minha alma tem sede de Deus, de Deus Vivo!” (3 a). De que tem sede? “Quando poderei contemplar a face de Deus?” (3 b). Esta é a minha sede: ir contemplar. Este desejo é idêntico àquele que fez o salmista exclamar em outra parte: “Uma só coisa peço ao Senhor, e ardentemente a desejo: é habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida” (Sl 26, 4). Com que intuito? “Para saborear o seu encanto e ficar em vigília no seu templo”.

V. 4: Enquanto medito, antes de ir, antes de apresentar-me, “Dia e noite, as lágrimas são o meu alimento, porque a toda a hora me perguntam: «Onde está o teu Deus?» ” (4). Minhas lágrimas se tornaram, não minha amargura, mas o meu pão. Eram-me suaves estas lágrimas. Tendo sede daquela fonte, como ainda não podia beber, com maior avidez absorvia minhas lágrimas. Ele não disse: Minhas lágrimas se tornaram minha bebida, para não parecer que as desejava, como se fossem fontes de águas. Tornaram-se meu pão as minhas lágrimas, mas permanece a sede que me devora e me arrasta para a fonte das águas.

Quando no mundo tudo corre bem para mim, reputo como mal, enquanto não me apresento ante a face de Deus. Porque tentas levar-me a congratular-me, como se fosse dia, quando a prosperidade mundana me sorria? Não é enganadora? Não é transitória, caduca, mortal? Não causa mais decepção do que deleite? Verdadeiramente, mesmo quando a felicidade deste mundo nos cerca com o seu brilho, enquanto estamos neste corpo, vivemos exilados, longe do Senhor. (2 Cor 5, 6).

“Porque a toda a hora me perguntam: «Onde está o teu Deus?» ” (4 b c).

Procuro também eu o meu Deus, a fim de verificar se é possível não só acreditar, mas ver igualmente alguma coisa. Pois, vejo as coisas que Deus criou, mas não vejo meu Deus que as fez. Olho a terra; ela foi criada. Grande é sua beleza, mas teve um artífice. Admirável o milagre da germinação das sementes, mas tudo isso tem um Criador. Mostro a grandeza do mar e a sua extensão, com espanto e admiração, e busco o seu artífice. Contemplo o céu e a beleza das estrelas; admiro o esplendor do Sol, suficiente para iluminar o dia, e a Lua que alivia as trevas nocturnas. Tudo isto é admirável, louvável. E não se acham só na terra, mas também no céu. Mas ainda não se estanca a minha sede. Louvo tudo isso que admiro, mas tenho sede daquele que o fez. Volto-me para mim mesmo. Descubro que tenho corpo e alma; governo o primeiro, sou governado pela segunda. O corpo deve servir e a alma dirigir. Distingo que a minha alma é melhor do que o corpo, e verifico que a alma, não o corpo, é que faz tais perguntas. Louvava a terra e a conhecera pelos olhos. Conhecera com os olhos o céu, os astros, o Sol, a Lua, que elogiava. Os olhos, membros corporais, são as janelas da alma. Está dentro quem as vê através delas; quando ela está ausente pelo pensamento, é em vão que se abrem as janelas. Não alcanço com estes olhos meu Deus, que fez todos esses objectos visíveis a meus olhos. O que significa ver interiormente? Ver o que não é cor, nem som, nem odor, nem sabor, nem calor, nem frio, nem objecto duro ou mole. Queira saber a cor da sabedoria. Ao pensarmos na justiça, e gozarmos interiormente de sua beleza, através do pensamento, que soa a nossos ouvidos? O que pomos na boca? Que vapor entra pelo nariz? O que tocam as mãos e nos dá prazer? Está no interior, é bela, é louvada e contemplada; e se os olhos estão nas trevas, a alma goza daquela paz. O que é que via Tobias, enquanto estava cego, quando dava conselhos ao filho que via (Tb 4, 2)? Há alguma coisa que percebe a alma, ela que rege o corpo, o orienta e o habita. Ela não o capta pelos olhos corporais, nem pelos ouvidos, nem pelo nariz, nem pelo paladar, nem pelo tacto corporal, mas por si mesma.

A alma, para se ver a si como se conheçe, faz abstracção de todos os sentidos corporais, que lhe trazem impedimento e barulho.

V. 5: Ao procurar meu Deus entre as coisas visíveis e corporais, sem encontrá-Lo, percebo que meu Deus, é alguma coisa acima de minha alma. Aquele que possui ocultamente uma excelsa morada, tem igualmente na terra seu tabernáculo. Seu tabernáculo terrestre é a sua Igreja, que ainda peregrina. Mas é na Igreja que há-de ser procurado, porque no tabernáculo se encontra o caminho que leva à casa. “Quando passava em cortejo para a casa do Senhor” (5 b). Entrarei no local do tabernáculo, do tabernáculo admirável, até à casa de Deus. Pois já admiro muitas coisas no tabernáculo! Pois, o tabernáculo de Deus na terra é os homens fiéis; porque o pecado não impera neles, “não entregueis os vossos membros, como armas da injustiça, ao serviço do pecado. Pelo contrário, entregai-vos a Deus, e entregai os vossos membros, como armas da justiça” (Rm 6, 13). Contemplo a própria alma que obedece a Deus, tolera todas as coisas ásperas e duras, dispendendo-se em justiça e caridade para com os outros.

Contemplo também estas virtudes na alma; mas ainda ando no lugar do tabernáculo. Vou além; e embora seja admirável o tabernáculo, fico estupefacto ao chegar à casa de Deus. A esta casa se refere outro salmo, após ter-se proposto uma questão dura e difícil: a de saber por que razão nesta terra com frequência tudo corre bem para os maus e mal para os bons, e disse: “Reflecti sobre estas coisas para as entender, mas foi muito penoso para mim. Só quando entrei no santuário de Deus, compreendi o fim que os espera” (Sl 72, 16. 17).

A fonte donde brota o entendimento está na casa de Deus. Ali entendeu o salmista a sorte de cada um deles, e encontrou a solução do problema da felicidade dos iníquos e das dificuldades dos justos. Como solucionou? Viu que as penas dos maus são adiadas, reservadas para o fim e que os bons são provados aqui, por meio de trabalhos para que no final consigam a herança.

No entanto, foi conduzido à casa de Deus, seguindo certa suavidade, e um deleite interior e oculto, como se da casa de Deus viesse o som suave de algum órgão, e tendo ouvido determinado som interior, foi conduzido por sua suavidade, e pôs-se a seguir aquela melodia, fez abstracção de todos os ruídos da carne e do sangue, e alcançou a casa de Deus. Como chegaste ao mais recôndito da casa de Deus? “Entre vozes de alegria e de louvor da multidão em festa” (5 c). Na casa de Deus a festa é eterna. Ali não se celebra coisa alguma que seja transitória. O coro dos anjos é eternamente festivo. A presença de Deus trás uma alegria indefectível. É um dia de festa, sem início e sem fim. Daquela eterna e perpétua festividade ressoa não sei bem que eco sonoro, suave aos ouvidos do nosso coração; mas isto se o ruído do mundo não o abafa.

V. 6: Enquanto estamos neste corpo estamos longe do Senhor, “porque o corpo corruptível é o peso para a alma, e esta tenda terrena oprime a mente cheia de cuidados” (Sb 9, 15).

Se conseguirmos dissipar um pouco as névoas que nos cercam, caminhando pelo desejo, uma vez ou outra alcançamos aquele som, de forma a captarmos, após muitos esforços; alguns bens daquela casa; mas, devido ao peso da nossa fraqueza, recaímos nos nossos hábitos e reincidimos em nossos costumes. Da mesma forma que ali havíamos encontrado motivos de alegria, aqui não nos faltam ocasiões de gemermos. Levado pela alegria causada pelo som interior, inteligível, despreza as riquezas exteriores e é arrebatado pelas interiores. Mas não deixa de ser homem e ainda geme, ainda carrega a frágil carne, ainda corre perigo por meio dos escândalos deste mundo. Volta, portanto, o olhar para si mesmo, e diz a si mesmo, no meio destas tristezas, comparando os bens actuais com aqueles que fora ver, e saiu depois de ter visto: “Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?” (6 a). Assim é: Alegramo-nos por causa de determinada doçura interior e por termos percebido, apesar de ter sido apenas breve e rapidamente, algo de imutável, com a penetração do espírito.

Porque ainda me perturbas, porque estás triste ainda? Pois não duvidas a respeito de Deus. Tens que te responder aos que te perguntam: “Onde está o teu Deus?” Já pressenti algo de imutável; porque me perturbas? “Espera em Deus?” “Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar” (Rm 8, 25).

“Espera em Deus”. Porque: “Confia em Deus: ainda o hei-de louvar” (6 b). Qual o objecto do louvor? “Ele é o meu Deus e o meu salvador” (6 c).

Mas também nós, que temos as primícias de Espírito, gememos no nosso íntimo, aguardado a adopção filial, a libertação do nosso corpo” (Rm 8, 23). Ao se consumar em nós a salvação, viveremos sem fim na casa de Deus, sem fim louvando aquele ao qual foi dito: “Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar” (Sl 83, 5).

Ainda não acontece tudo isso, porque a salvação prometida ainda não chegou. Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera não é esperar (Rm 8, 24). Persevera; persevera até que venha a salvação. Escuta a teu Deus. Escuta a teu Deus que te escuta no íntimo: “Confia no Senhor! Sê forte e corajoso, e confia no Senhor” (Sl 26, 14), pois que “aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 10, 22; 24, 13).

V. 7: “A minha alma está abatida” (7 a). Acaso se perturba junto de Deus? Junto de mim é que se perturba. O Apóstolo se atemoriza ao dizer: “Assim, pois, quem pensa estar de pé tome cuidado para não cair” (1 Cor 10, 12). Uma vez que em mim não há firmeza, nem confio em mim mesmo. “A minha alma está abatida” (7 a). Não pare em ti e diz: “Para ti, Senhor, elevo o meu espírito” (Sl 24, 1). Escuta a explicação desta passagem. Não confies em ti, mas espera em Deus. Se confiar em ti tua alma se inquieta, pois sabe que em ti não há segurança. Se a minha alma se inquieta, só me resta a humildade e que ela não presuma de si mesma. Nada atribua a si mesma, a fim de lhe conceder Deus o que lhe for útil. Dentro de mim se inquietou a minha alma e foi a soberba que me causou tal inquietação, “Por isso, penso muito em ti, desde as terras do Jordão e dos montes Hermon e Miçar” (7 b c). Talvez se refira ao baptismo, que dá a remissão dos pecados. Ninguém corre em busca da remissão dos pecados sem antes se desgostar de si mesmo. Ninguém acorre à procura da remissão dos pecados se não se confessar pecador, se não humilhando-se diante de Deus. Não foi de um monte elevado. Partindo de um monte pequeno ele se tornará grande. “Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado” (Lc 14, 11; 18, 14).

Se procuras qual a interpretação desses nomes, verás que Jordão significa: descida deles. Desce, portanto, para subires; não te eleves para não escorregares. Hermon traduz-se: Anátema. Censura-te a ti mesmo desgostando-te de ti mesmo; desagradarás a Deus se te comprazes em ti mesmo. Tendo em vista que Deus é quem nos dá todos os bens, porque Ele é bom e não por sermos dignos, porque Ele é misericordioso e não que tenhamos merecido alguma coisa.

V. 8: “De abismo em abismo ressoa o fragor das águas revoltas” (8 a). É a Deus que se dirige o salmista. Qual é o abismo que chama a outro? De facto, entender isto é um abismo. Abismo é um lugar profundo, impenetrável, incompreensível. Costuma dar-se este nome principalmente a uma imensa quantidade de água. É grande sua profundidade, a distância até ao fundo, ao qual não se pode chegar. Finalmente, foi declarado em outra passagem: “O teus juízos são como o abismo profundo” (Sl 35, 7). A Escritura chama a atenção para o facto de que os juízos de Deus são incompreensíveis. Razoavelmente pode entender-se por abismo o homem acerca do qual foi dito: “O íntimo do coração do homem é insondável. Mas Deus disparará sobre eles as suas flechas” (Sl 63, 7. 8).

Se o homem é um abismo, como é que um abismo chama outro abismo? Mas invoca, quer dizer: chama a si. Pois foi dito de alguém: Invoca a morte, isto é, vive de tal modo que chama a morte para si. Pois ninguém faz uma oração para invocar a morte, mas é levando uma vida má que os homens invocam a morte. Um abismo chama outro abismo. Um homem chama outro. Ao aprender-se a sabedoria, a fé, um abismo chama ao outro. Os santos pregadores da palavra de Deus chamam outro abismo, porquanto eles mesmos são um abismo. Diz o Apóstolo, para notificar que eles são um abismo: “Pouco me importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano” (1 Cor 4, 3). Ouvi o que diz adiante: “Nem eu me julgo a mim mesmo” (1 Cor 4, 3). Acreditais haver no homem tão grande profundidade que ele mesmo não sabe o que existe em si? Quanta profundidade tinha a fraqueza latente em Pedro, quando desconhecia o que se passava em seu íntimo e com temeridade prometia que havia de morrer com o Senhor ou por Ele! Que abismo! Este abismo, era patente aos olhos de Deus. Pois, Cristo lhe pronunciou o que ele mesmo ignorava. Todo o homem, por mais santo, por mais justo, por mais perfeito que seja, é um abismo, e chama outro abismo, quando prega a outrem verdades da fé ou relativas à vida eterna.

“De abismo em abismo ressoa o fragor das águas revoltas”; (8 a b). Fico tremendo quando minha alma está perturbada, e tenho um medo veemente dos teus juízos, pois “os teus juízos são como o abismo profundo” (Sl 35, 7). Existia certa condenação, proferida num juízo teu, enquanto estamos presos a esta carne mortal, aflita, pecadora, sujeita às concupiscências, pois disseste ao homem que pecara: “Morrerás” e “Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gn 2, 17; 3, 19). Este é o primeiro abismo de teus juízos; um abismo chama a outro abismo, porque eles vão de pena em pena, de trevas em trevas, e do ardor da concupiscência às chamas do inferno. Devo ser humilde. Para onde me afastarei longe de tua presença e fugirei do teu espírito (Sl 138, 7), se um abismo chama a outro abismo, e depois destes trabalhos ainda nos ameaçam outros mais graves?

“As tuas vagas e torrentes passaram sobre mim” (8 c). Vagas são as penas que já sinto. Tudo o que sofro constitui as tuas vagas. Nos trabalhos que passo estão todas as tuas vagas; nos mais pesados que me ameaçam, chegaram a mim a tuas ondas. A ameaça ainda não pesa, mas está suspensa. Mas como Tu libertas, disse a minha alma: “Confia em Deus: ainda O hei-de louvar. Ele é o meu Deus e o meu salvador” (6 b c).

V. 9: “Durante o dia, o Senhor, há-de enviar-vos os seus favores, para que eu reze e cante, à noite, ao Deus que me dá a vida” (9). Dai atenção enquanto tudo corre bem; ouvi quando tudo está bem; aprendei enquanto estais tranquilos, a doutrina da Sabedoria, e guarda a palavra de Deus como alimento. Quando alguém se acha no meio da tribulação, deve ser-lhe útil o que ouviu quando estava tranquilo. Efectivamente, na prosperidade, Deus te manda sua misericórdia, se O servires fielmente, porque te livra da tribulação; mas não te declara esta misericórdia que te concedeu durante o dia a não ser quando chega a noite. Ao vir a tribulação, então seu auxílio não te abandona. Está escrito em certa passagem: “A misericórdia, no tempo da tribulação, é propícia como nuvem de chuva no tempo da seca” (Eclo 35, 24). Como o dia representa a prosperidade neste mundo, assim a noite é figura da adversidade. De outro modo ainda, o Verão figura a prosperidade no mundo, e o Inverno significa a adversidade. E o que faz a formiga? Junta no Verão o que lhe será útil no Inverno. Portanto, enquanto é Verão, quando tudo corre bem, enquanto estais tranquilos, ouvi a palavra de Deus. Como será possível, no meio das tempestades, atravessardes sem tribulação o mar inteiro? A quem isto pode suceder? Se acontece a alguém, ainda é mais de recear a própria tranquilidade.

Vs. 9. 10: Qual o teu modo de agir nesta peregrinação? O que farás? “Para que eu reze e cante, à noite, ao Deus que me dá a vida” (9 b). Assim faço eu, cervo sedento, que anseia pelas águas das fontes, e recorda-se da suavidade daquela voz que o conduzirá através do tabernáculo até à casa de Deus, enquanto o corpo corruptível pesa sobre a alma (Sb 9, 15).

Possuo em meu íntimo a vítima a imolar, dentro de mim o incenso a oferecer, interiormente o sacrifício com que tornarei propício o meu Deus: “Sacrifício agradável a Deus é o espírito contrito” (Sl 50, 19). Que espírito contrito tenho interiormente, qual sacrifício?

“Quero dizer a Deus: «Tu és o meu protector, porque te esqueces de mim? Porque hei-de andar triste sob a opressão do inimigo? (10).

Suporto tais trabalhos neste mundo que parece teres me esquecido. Tu, porém, estás me exercitando. Sei que diferes a concessão do que me prometeste, mas não retiras a promessa. Como se fossemos nós a falar, clamou nossa Cabeça: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”? (Sl 21, 2; Mt 27, 46).

V. 11: “Quebram-se os meus ossos quando os inimigos me insultam” (11 a b). Trata-se daquele diabo tentador. “E, porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos; mas aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 24, 12). Ao constatarmos que muitas vezes as igrejas cedam diante de escândalos, não dirá o Corpo de Cristo: O inimigo “quebram-se os meus ossos”? Pois, os ossos designam os fortes, e por vezes até os fortes cedem diante das tentações.

“Porque hei-de andar triste sob a opressão do inimigo? Quebram-se os meus ossos” (10 c. 11 a). Vês aqueles que pareciam ter alguma fortaleza cederem diante das tentações, os fracos perderem a confiança quando vêem os fortes sucumbirem. Quão imensos são estes perigos.

Vs. 11. 12: “Quando os inimigos me insultam e repetem a toda a hora: «Onde está o teu Deus»?” (11 b c d). Quantas vezes o ouviram os mártires, fortes e pacientes, quantas vezes lhes foi dito: “Onde está o vosso Deus”. Os homens viam os seus tormentos exteriores, mas não consideraram que interiormente seriam coroados. Os inimigos que me atormentam, recriminam-se, a dizer cada dia: “Onde está o teu Deus?”

Por isso, uma vez que minha alma me perturba, o que lhe direi senão: “Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?” (12 a). E ela, de certo modo, me responde: Não queres que te perturbe, estando cercada de tantos males? Suspiro pelo bem, tenho sede, labuto, e não queres que te perturbe? “Confia em Deus: ainda O hei-de louvar” (12 b). Externa a própria confissão, repete em confirmação da sua esperança: “Ele é o meu Deus, e o meu salvador” (12 c).

SALMO 43 (42)

Catequese

Versículo 1: Todos aqueles que se aperfeiçoam, que gemem com o anseio daquela cidade celeste, que estão cientes de serem peregrinos, que se mantêm no caminho; esta boa semente, este trigo de Cristo geme no meio do joio; e será assim até que chegue o tempo da colheita, isto é, o fim do mundo. Geme, pois, no meio do joio, quer dizer entre os malvados, dolosos e sedutores, ou envenenados pelas insídias; junto são alimentados no meio de contrariedades, têm em comum os dons de Deus, que são concedidos em geral aos bons e aos maus por aquele que faz que o Sol se levante sobre os bons e os maus, e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores (Mt 5, 45). Vê; por conseguinte, a descendência de Abraão, a geração santa quantas coisas têm em comum com os maus, dos quais um dia há-de separar-se. Vendo, pois, quantas coisas os bons têm em comum com os maus, com os quais, porém, não têm causa comum, prorrompe nesta prece: “Faz-me justiça, ó Deus, e defende a minha causa contra a gente sem piedade!” (1 a b). Pede: “Faz-me justiça, ó Deus” (1 a). Não temo o juízo porque conheço a tua misericórdia. Por enquanto, nesta peregrinação, ainda não separas um lugar para mim, porque vivo misturado ao joio até ao tempo da colheita. Ainda não separas para mim a chuva, nem a luz: Distingue a minha causa. Há já diferença entre aquele que acredita em ti, e aquele que não crê. A fraqueza é igual, mas a consciência difere; igual o labor, diverso o desejo. O desejo dos ímpios perecerá. “Faz-me justiça, ó Deus, e defende a minha causa contra gente sem piedade! Livra-me do homem mentiroso e perverso” (1). “Do homem”, de certa espécie de homens, porque há homem e homem e dentre esses dois um será levado e outro deixado (Mt 24, 40).

V. 2: Até à colheita faz-se mister paciência, com uma indeterminada separação, por assim dizer, uma vez que bons e maus acham-se misturados, apesar de continuar o joio sendo joio, e o trigo, trigo. Como igualmente a fortaleza é necessária, imploremo-la àquele que nos ordenou sermos fortes. Não serei aquilo que Ele mandou, se Ele mesmo não nos fizer tais, conforme a palavra: “Aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 10, 22; 24, 13). Acrescenta o salmista, visando que a alma não se arrogue fortaleza, para não se debilitar: “Tu, ó Deus, és meu refúgio. Porque me rejeitaste? Porque hei-de andar triste sob a opressão do inimigo” (2)? Interroga qual o motivo da sua tristeza. Ando triste, o inimigo me aflige com tentações quotidianas, sugerindo amor ao mal, ou medo de que seria errado temer. A alma, lutando contra uma e outra coisa, embora não se deixe apanhar, corre perigo, contrai tristeza e diz a Deus: “Porquê”? Pergunta. Ouça a resposta de Isaías, venha-lhe em socorro a leitura: “Não quero contender eternamente, nem me irritar para sempre; de contrário, destruiria o sopro da vida de quantos criei. Irritei-me um momento por culpa sua, castiguei-o e tomou o seu caminho preferido” (Is 57, 16. 17). A solução da questão: Por que me repeliste? E por que ando triste? É a seguinte: Por causa do pecado. Querias pecar mas sem sofrer; não te bastava ser injusto, querias ainda agir injustamente e ficar impune. Considera a palavra mais exacta de outro salmo: “Foi bom para mim ter sido castigado, pois assim aprendi os teus decretos” (Sl 118, 71). Orgulhoso, aprendera a iniquidade, aprenda humilhado os teus decretos. “Porque hei-de andar triste sob a opressão do inimigo?” (2 b). Queixavas-te do inimigo. Na verdade, ele aflige, mas tu foste quem lhe deu acesso. E agora sabes como agir. Escolhe o teu plano, aceita o rei, exclui o tirano.

V. 3: Mas para agir desta maneira, presta atenção ao que o salmista diz, as suas súplicas, a sua oração; esta voz é de todos nós: “Envia a tua luz e a tua verdade, para que elas me guiem e conduzam à tua montanha santa, à tua morada” (3). Tua luz, tua verdade: dois nomes, uma realidade. O que é a luz de Deus senão a verdade de Deus? Ou o que é a verdade de Deus senão a luz? E ambos são um só Cristo. “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8, 12). “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Ele é a luz, Ele é a verdade. Venha, pois, e nos liberte, distinguindo da causa de uma gente ímpia a nossa causa. Separe o trigo do joio, “porque o Filho do homem enviará os seus anjos, que hão-de retirar do seu Reino todos os escandalosos e todos quantos praticam a iniquidade e lançá-los na fornalha ardente. Então os justos resplandecerão como o Sol” (Mt 13, 41-43). Temos o penhor, mas esperamos o prémio. Seu santo monte é a sua Santa Igreja. É aquele monte que surgiu duma pedra mínima, segundo a visão de Daniel, e esmagou os reinos da terra; e cresceu tanto que encheu toda a terra (Dn 2, 35).

Neste momento é que o salmista foi ouvido, conforme declara aquele que diz: “Em alta voz invoco o Senhor e Ele responde-me da sua montanha santa” (Sl 3, 5).

Quem orar fora deste monte, não espere ser ouvido com proveito para a vida eterna. É verdade que muitos são atendidos em muitos pedidos. Não se congratulem por terem sido ouvidos; foram ouvidos também os demónios, que pediam ser mandados, para entrar nos porcos (Mt 8, 32). Anelemos ser atendidos em vista da vida eterna segundo o desejo que formulamos: envia a tua luz e a tua verdade: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Agora estamos em sua montanha; isto é, na sua Igreja, e no seu tabernáculo. O tabernáculo é próprio dos peregrinos, e a casa dos que nela coabitam. Ao ouvires falar de tabernáculo, entende que se trata de guerra, acautela-te do inimigo. Como será a casa? “Felizes os que habitam na tua casa. E Te louvam sem cessar” (Sl 83, 5).

V. 4: Que esperança alimentamos, depois de conduzidos ao tabernáculo, e estabelecidos em seu santo monte? “Eu irei ao altar de Deus” (4 a). Existe um altar sublime e invisível, ao qual não tem acesso o injusto. Partindo de seu monte santo, da sua Santa Igreja, eu me aproximei do sublime altar de Deus. Qual será o sacrifício ali? Aquele que entra é tomado para o holocausto. Por que diz: “Eu irei ao altar de Deus, ao Deus que é a alegria da minha vida” (4 a b)? Agora ando eu triste na vida antiga, mas então alegrar-me-ei na vida nova. A paciência é sempre suave para Deus. Ele sofria em consequência de uma aflição terrena, e no entanto queria agradar a Deus e dar-Lhe graças, forte na tribulação. Devia apresentar-se paciente, diante de Deus, uma vez que não se pode ficar isento de tribulação.

V. 5: “Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?” (5 a). Acho-me cercado de tribulações, de doenças, de tristezas. Por que te perturbas ó minha alma? Se se dirige a sua alma; pergunta-se qual a pessoa que fala? Será a carne que fala à alma, apesar de que a carne inanimada não fale? Seria mais adequado dizer que a alma fala à carne do que a carne à alma. Mas, visto que não disse porque estás triste, ó minha carne, mas: “Porque estás triste, ó minha alma?” Não é a alma que fala à carne. A tristeza é o dom da alma. Uma incomodidade corporal pode chamar-se dor, mas não tristeza. Mas a alma se contrista devido a uma dor corporal. Difere ter dor de contristar-se. A carne sente dor, enquanto a alma se entristece. Entendamos, então que temos algo onde se encontra a imagem de Deus, a saber, a mente, a razão. A mente invoca a luz de Deus e a verdade de Deus. Com ela entendemos o que é justo e o que é injusto, discernimos o verdadeiro do falso. Ela denomina-se intelecto, da qual carecem os animais. Se alguém negligenciar o intelecto, e o pospõe a outros bens, rejeitando-o como se não o possuísse, escute o que lhe diz o Salmo: “Não sejas irracional como um cavalo ou um jumento” (Sl 31, 9). Nosso intelecto, por conseguinte, fala à nossa alma. Esta se sente enfraquecida no meio das tribulações, causada por tanta angústia, oprimida pelas tentações, doente de tantos trabalhos. A mente se alça para as alturas aprende a verdade e diz: “Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?” (5 a). Vede se não é esta a fala do Apóstolo em sua luta, prefigurando a alguns, talvez mesmo a nós e declarando: “Sim, eu sinto gosto pela lei de Deus, enquanto homem interior, mas noto que há outra lei nos meus membros”, isto é, certos movimentos carnais; e numa luta quase desesperada invoca a graça de Deus: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso!” (Rm 7, 22. 25).

Dignou-Se o Senhor prefigurar em si mesmo os que lutam desta forma, afirmando: “A minha alma está numa tristeza de morte” (Mt 26, 38). Ele sabia bem com que finalidade viera. Teria horror da paixão Aquele que havia dito: “É por isso que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente” (Jo 10, 17. 18)?

Mas: “A minha alma está numa tristeza de morte”. Quem o disse era uma figura dos seus membros. Por vezes a alma acredita com firmeza e sabe muito bem que o homem irá, segundo a sua fé, para o seio de Abraão; acredita isto, e no entanto ao sobreviver um perigo de morte, perturba-se por causa da sua afinidade com a vida neste mundo; presta ouvidos àquele voz de Deus interna, ouve interiormente um canto racional. Assim, do alto, no silêncio, vem um som perceptível pelo espírito, não pelo ouvido. Quando ouvir tal cântico, aborrece o estrépito material, e a vida humana inteira parece-lhe um tumulto que impede a audição de um som vindo do alto imensamente deleitável, incompreensível, inefável. De facto, quando sucede tal perturbação, o homem sente o ataque e diz à sua alma: “Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?” (5 a). Ou será que isto acontece porque dificilmente se encontra uma vida purificada, diante do juiz que julga até o que é puro e irrepreensível? Pode haver uma vida humana, na qual não se encontrem os homens o que repreender segundo as normas da justiça. Mas, se os olhos de Deus são os que examinam, se a norma que mede sem possibilidade de engano é que procede, Deus encontra no homem algo de repreensível, que não aparecia nos homens. Experimentando tal receio a alma talvez se perturbe; de certo modo, pergunta-lhe a mente: Porque estás receosa dos pecados que não podes evitar inteiramente? “Confia em Deus: ainda o hei-de louvar” (5 b). Estas palavras curam algumas faltas; as demais são purificadas por fiel confissão. De facto, teme, se te declaras justo, se não repetes a palavra de outro salmo: “Não chames a contas o teu servo” (Sl 142, 2). Preciso da tua misericórdia. Pois, se empregares um julgamento sem misericórdia, para onde irei?” Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir” (Sl 129, 3)? Pela boca de outro profeta, Deus censura desta mesma forma os arrogantes e os soberbos: “Porque quereis entrar em contenda contra mim? Todos vós me fostes infiéis – oráculo do Senhor” (Jr 2, 29). Não pleiteies, portanto, em juízo; esforça-te por ser justo; à medida que puderes confessa-te pecador, espera sempre a misericórdia. É possível que quisesses confiar em ti mesmo: “Espera no Senhor”, não em ti. O que és em ti mesmo? O que provém de ti? Seja Ele a tua cura, Ele que recebeu os ferimentos por tua causa. “Confia em Deus: ainda o hei-de louvar” (5 b). Como? “Ele é o meu Deus e o meu salvador” (5 c). Estando doente dirijo-me a ti. Conheço o médico e não me gabo de estar são. Tem idêntico sentido ao que se exprime em outro salmo: “Eu disse: «Senhor, tem compaixão de mim; cura-me, embora tenha pecado contra ti!” (Sl 40, 5).

Mas, vigias, praticando boas obras. “Reparte o teu pão com os esfomeados” (Is 58, 7), ouviste de Isaías. Não penses que só o jejum basta. O jejum castiga-te mas não nutre a outrem. Frutuosas serão tuas economias se prestarem algum alívio ao próximo. Jejua de sorte a te alegrares de te refazeres enquanto teu próximo come, e de seres ouvido por causa de suas orações. Isaías diz a este respeito: “Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá e te dirá: «Aqui estou!» Se repartires o teu pão com o faminto”. (Is 58, 9. 10).

Por vezes, o pão é dado com tristeza e murmuração; procura antes ver-se livre da importunação do mendigo do que saciar a fome do indigente. “Deus ama a quem dá com alegria” (2 Cor 9, 7). Se dás o pão com tristeza, perdes simultaneamente o pão e o merecimento. A justiça do homem nesta vida consiste em jejum, esmola e oração. Queres que tua oração voe para Deus? Dá-lhe duas asas: o jejum e a esmola.

SALMO 44 (43)

Catequese

Versículo 1: Este Salmo atribui-se aos filhos de Coré. Coré traduz-se por crânio ou Calvário, e encontramos escrito no Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado no lugar chamado Calvário. Por isso, torna-se claro que este salmo é cantado pelos filhos de sua paixão. A este respeito temos o testemunho evidente e firme do apóstolo Paulo. Quando a Igreja padecia perseguições da parte dos gentios, deste salmo ele tirou o versículo que citou como exortação e conforto. Nele se encontra a palavra que Paulo incluiu na sua epístola: “Por causa de ti, estamos expostos à morte o dia inteiro, fomos tratados como ovelhas destinadas ao matadouro” (Rm 8, 36). Ouçamos, portanto, no salmo a voz dos mártires. E vede como é boa a motivação desta palavra dos mártires: Por tua causa. Assim igualmente o Senhor quando disse: “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça” (Mt 5, 10), para que não sucedesse que alguém ao sofrer perseguição, se quisesse gloriar dos seus padecimentos, apesar de não ser boa a sua causa. Por conseguinte, exorta os seus: Sereis felizes quando os homens vos fizerem isto ou aquilo, ou o disserem por minha causa. Por esta razão também a palavra: Por tua causa somos postos à morte o dia todo. Existe um plano de Deus muito profundo, que merece longa consideração, e cujo motivo vamos procurar. Deus tirou os nossos pais, os patriarcas, e todo o povo de Israel, com mão forte do Egipto. Afogou no mar os inimigos, que os perseguiam. Deu-lhes grandes vitórias apesar do seu pequeno número. Depois, aprouve-lhe de certo modo afastar de si o seu povo, de sorte que os Seus santos sofreram matanças, mortes, sem resistência, defesa ou impedimento. Ele como que apartava seu rosto de seus gemidos, parecia esquecê-los, como se não fosse o Deus que, com mão forte e braço levantado, por poder evidente, livrou do Egipto. Mas devemos investigar profundamente por que razão assim sucedeu. Deus não abandona e se aparentemente se afasta, retira o objecto mal desejado e ensina qual convém desejar. Se Deus sempre nos cumulasse de prosperidades materiais, e enquanto somos mortais não sofrêssemos tribulação alguma, nem aflições e angústias, não desejaríamos outras maiores da parte dele.

Por isso, Ele mistura com as falsas suavidades desta vida as amarguras das tribulações. Para que busquemos a outra vida, suave e salutar.

Vs. 2. 3: “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos os nossos pais nos contarem os prodígios que fizeste nos seus dias, em tempos passados” (2). Eles recordam o que ouviram de seus pais, admirados porque parece que Deus abandonou aqueles que Ele quis experimentar nos sofrimentos, e de certo modo dizem: Nossos pais não nos contaram coisas como essas que padecemos. Pois, no salmo 21 foi dito: “Em ti confiaram os nossos pais; confiaram e tu os libertaste. Eu, porém, sou verme e não um homem. O opróbrio dos homens e o desprezo da plebe” (Sl 21, 5. 7). Esperavam e os livraste; eu esperei e me abandonaste, e foi em vão que em ti acreditei, que meu nome está escrito junto de ti, e teu nome se gravou em mim? Foi isto que nossos pais nos indicaram. “Com a tua mão expulsaste povos e estabeleceste o teu povo na terra que fora de outros; castigaste as outras nações e fizeste-os prosperar a eles” (3).

Quer dizer, expulsaste povos do seu país, para os introduzir e implantar, e confirmar o seu reino com tua misericórdia. Tudo isso nossos pais nos contaram.

V. 4: Mas talvez puderam realizar tais factos porque eram fortes guerreiros? De modo nenhum. Não foi isto que os nossos pais nos contaram, nem o que se encontra na Escritura: “Não foi com a sua espada que conquistaram a terra, não foi o seu braço que lhes trouxe a vitória; mas foi a tua direita, a força do teu braço, foi a luz da tua presença porque lhes tinhas amor” (4 d). “Teu braço”, teu próprio Filho. “Foi a luz da tua presença” (4 d); qual o sentido da expressão? Apareceste por meio de tais sinais que eles entendiam estares presente. Enfim, todos os que se admiram perante tais factos, o que dizem? Vi a Deus presente.

“Mas foi a tua direita, a força do teu braço, foi a luz da tua presença, porque lhes tinhas amor” (4 c d e), a saber, de tal modo agiste em relação a eles que os amaste.

V. 5: E então? Deus era um outrora e é outro agora? De modo algum. Como continua? “Ó Deus, Tu és o meu rei!” (5 a). Tu és o mesmo, não mudaste. Vejo os tempos mudados, ao invés do criador dos tempos que não muda.

Costumas conduzir-me, reger-me, socorrer-me. “Tu deste a vitória a Jacob” (5 b). O que significa? Embora estejas oculto por tua substância, e natureza, pelas quais és o que és, e não Te apresentaste aos nossos pais segundo aquilo que és, de modo que te vissem face a face, contudo dás a vitória a Jacob através de seres criados. Efectivamente a visão face a face é reservada aos libertados, por ocasião da ressurreição. Igualmente, no Novo Testamento, apesar de terem visto a revelação de teus mistérios, e haverem anunciado os segredos que lhes foram revelados, todavia afirmaram que viram em espelho e em enigma e estar reservada ao futuro a visão face a face. (1 Cor 13, 12). “Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, a vossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele, em glória” (Cl 3, 3. 4). Está reservada para esta ocasião a visão face a face referida por João: “Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1 Jo 3, 2).

Tu és meu Rei e meu Deus, Tu dás a vitória a Jacob. Por que razão sofremos agora tais males?

V. 6: Por conseguinte, nossos pais nos contaram a obra que fizeste em seus dias, nos tempos de outrora, porque para implementá-los, com tua mão dispersaste nações e abalaste povos: “Contigo vencemos os nossos inimigos” (6 a). Época virá em que todos os inimigos dos cristãos serão ventilados como palha, carregados pelo vento como poeira e varridos da superfície da terra.

“Contigo venceremos os nossos inimigos, no teu nome esmagarás os nossos adversários” (6).

V. 7: “Não confio no arco e a minha espada não me salvará” (7). Nem a nossos pais foi a sua espada.

V. 8: “Tu nos livraste dos nossos inimigos e confundiste os que nos odiavam” (8). Fala no pretérito acerca do futuro; fala como se fosse facto passado, por ser tão certo como se já estivesse realizado. Muitos profetas assim se exprimem no pretérito ao pronunciarem eventos futuros, ainda não realizados.

O salmista também diz, ao pronunciar a futura paixão do Senhor: “Trespassaram-me as minhas mãos e os meus pés. Posso contar todos os meus ossos”. Ele não disse: Trespassarão e contarão. “Repartem entre si a minhas vestes” (Sl 21, 17. 19). Não disse repartirão. Todos esses verbos estão no pretérito, enquanto os eventos são futuros. Porque para Deus os acontecimentos futuros são tão certos como se fossem passados. Para nós são certos os factos passados; os futuros incertos.

V. 9: “A toda a hora te louvaremos, ó Deus” (9 a). Vede como inclui também verbos no futuro, para entenderes que as palavras que disse no pretérito são predições de futuro. Qual o motivo de dizer: Louvaremos e celebraremos? A razão está em que nos salvaste dos que nos afligiam, e em nós se realizará a palavra: “Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar” (Sl 83, 5).

V. 10: Por conseguinte, o futuro está garantido para nós, os factos passados nos foram contados por nossos pais. E agora? “Contudo, rejeitaste-nos e cobriste-nos de vergonha” (10 a), Confundiste, não diante da nossa consciência, mas perante os homens. Houve uma época em que os cristãos eram atormentados, tinham de fugir de toda a parte. Em todo o lugar se dizia como insulto e opróbrio. Este homem é cristão. Onde está, pois, aquele nosso Deus, nosso Rei, que dá a vitória a Jacob? Onde está quem fará tudo o que o Espírito Santo nos revelou? Terá Deus mudado? Cumpre-nos entender a sua vontade de que sofrêssemos tudo isto nesta época intermediária. Quais os sofrimentos? “Já não acompanhas os nossos exércitos” (10 b). Enfrentamo-los, eles prevalecem e nós somos fracos. Onde está o teu poder? Onde a resistência de Amalec, vencida pelo sinal da cruz? (Ex 17, 11)?

V. 11: “Fizeste-nos recuar diante dos inimigos” (11 a). Eles adiante e nós atrás. Eles vencedores e nós vencidos. “E os que nos odeiam saquearam-nos à vontade” (11 b); a quem senão a nós?

V. 12: “Entregaste-nos como ovelhas para o matadouro, dispersaste-nos entre os pagãos” (12). As nações nos devoraram. É uma figura dos que sucumbiram diante dos tormentos, de sorte que foram assimilados pelos pagãos. A Igreja chora-os, como a membros seus que foram devorados.

V. 13: “Vendeste o teu povo por um preço irrisório” (13 a). Vimos o que deste, mas não o que recebeste por eles. “E pouco lucraste com essa venda” (13 b).

Vs. 14. 15: “Fizeste de nós o opróbrio dos nossos vizinhos, a irrisão, o desprezo dos que nos rodeiam. Fizeste de nós objecto de escárnio para os pagãos” (14. 15 a).

“Os povos abanam a cabeça, troçando de nós” (15 b). Meneiam a cabeça como insulto. “Todos os que me vêem escarnecem de mim; estendem os lábios e abanam a cabeça” (Sl 21, 8). Assim agiram para com o Senhor e para com todos os seus santos, que eles puderam perseguir, prender, entregar, atormentar, matar.

Vs. 16. 17: “A minha ignomínia está sempre diante de mim e a vergonha cobre-me o rosto, ao ouvir os insultos e as afrontas” (16. 17 a). Isto é, por causa dos que me insultam e me recriminam porque Te adoro e Te louvo. Incriminam-me a respeito daquele nome que apaga todos os meus crimes. “À vista dos inimigos e dos opressores” (17 b). Os feitos mencionados do passado, não se realizam em nós, e os que esperam no futuro ainda não se vêem. Os do passado são os seguintes: o povo foi tirado do Egipto, com grande glória para Ti, Senhor; foi libertado dos perseguidores, foi estabelecido em um reino. Quais são os feitos no futuro? O povo de Deus há-de ser retirado do Egipto deste mundo, guiado por Cristo, que aparecerá em sua glória. Haverá de colocar os santos à direita, os maus à esquerda, sendo estes condenados com o diabo à pena eterna, enquanto Cristo e os santos receberão eternamente o reino. Esses eventos são futuros e os outros passados. Entre um e outros o que acontece? Tribulações. Por que razão? Para revelar a alma que adora a Deus, e até que ponto o adoro; para se manifestar se O adora gratuitamente, sendo gratuita a salvação que recebeu. Se, no entanto, Deus te disser: O que me deste para seres criado? Que resposta Lhe daremos, se foi Ele que primeiro nos fez gratuitamente, por ser bom e não termos merecido alguma coisa? Em seguida o que diremos a respeito da nossa restauração, do segundo nascimento? Foram os nossos méritos que fizeram o Senhor nos dar a salvação perpétua? De modo nenhum. Se o Senhor levasse em alguma conta os nossos méritos, teria sido a nossa condenação. Não veio inspeccionar os merecimentos, mas conceder a remissão dos pecados. Eras malvado e foste libertado; o que deste a Deus? O que tens dele que não recebeste gratuitamente? Com justeza é denominada graça, porque é dada gratuitamente. Por este motivo, exige-se de ti que O adores gratuitamente, mas não por te dar bens temporais, e sim por outorgar os eternos.

Cuida de não imaginares os bens eternos como não são: Se cogitares deles de maneira carnal, não adorarás a Deus gratuitamente. Talvez dirás: Eu O adoro, porque me dará uma quinta eternamente. Ainda tens a mente corrupta; não O adoras com casto amor, ainda ambicionas uma recompensa. Queres possuir no século futuro o que forçosamente deixarás neste. Queres mudar o desejo carnal não amputá-lo. Não é louvável o jejum de quem reserva o estômago para uma ceia lauta. Era esta a esperança dos judeus. Pois eles esperam também a ressurreição, mas acham que hão-de ressuscitar e gozar dos mesmos prazeres corporais que aqui apreciam. Por isso ao lhes ser proposta aquela questão pelos saduceus, que não acreditam na ressurreição, a respeito da mulher que desposara sucessivamente sete irmãos, e eles queriam saber de quem seria ela na ressurreição, ficaram atordoados sem saber responder. Ao invés, ao ser proposto o mesmo problema ao Senhor, uma vez que na ressurreição prometida não há tais prazeres mas existem alegrias eternas derivadas do próprio Deus, Ele respondeu: “Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. Na ressurreição, nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos; não podem morrer: são semelhantes aos anjos” (Mt 22, 29. 30; Lc 20, 35. 36). Como será então? Mas serão todos como os anjos de Deus. Sua alegria consiste naquilo que disse o Senhor: “Pois digo-vos que os seus anjos vêem constantemente a face do Pai” (Mt 18, 10)? S a alegria dos anjos consiste em ver a face do Pai, prepara-te para tal regozijo. Podes encontrar algo de melhor do que ver a face de Deus? Se até mesmo suspeitares existir algo de mais belo do que o ser do qual deriva toda a beleza, infeliz amor que te aprisiona de tal modo que não consegues pensar em Deus! O Senhor encarnara e aos homens aparecia como homem. O que havia de grandioso na sua aparência? A carne mostrava-se carne. Em que se mostrava a importância daquele do qual foi dito: “Vimo-lo sem aspecto atraente” (Is 53, 2).

Quem é que não tinha beleza nem esplendor? O mesmo de quem se disse: “Tu és o mais belo do filho dos homens” (Sl 44, 3). Apresentando-se aos olhos dos que O viam na condição de uma carne desfigurada, o que disse? “Quem recebe os meus mandamentos e os observa esse é que me tem amor; e quem me tiver amor será amado por meu Pai, e Eu o amarei e hei-de manifestar-me a Ele” (Jo 14, 21). Promete que se mostrará embora o vissem. Mas qual o sentido disso? Parecia dizer: Vedes a condição de servo, enquanto a de Deus está oculta. Pela primeira vez eu vos atraio, mas vos reservo a visão da segunda.

Vs. 18. 19: Finalmente como se exprimem os filhos de Coré: “Tudo isto nos aconteceu, sem nos termos esquecido de ti, sem termos traído a tua aliança, sem o nosso coração te abandonar, nem os nossos pés se afastarem do teu caminho” (18. 19). Este é o sentido: Nosso coração não voltou atrás, não nos esquecemos de ti, não traímos tua aliança, e estamos sujeitos a grandes tribulações e perseguições por parte das nações. Seria como se nos dissesse o salmista: estais sujeitos à tribulação; a muitos padecimentos, à perda de muitos bens apreciáveis neste mundo; mas não vos abandonei no caminho estreito que vos mostro. Procuráveis caminhos largos; o que vos digo então? Aquele caminho leva à vida eterna; o que quereis trilhar leva à morte. “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que seguem por ele. Como é estreita a porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida e como são poucos os que o encontram!” (Mt 7, 13. 14)!

Quais são esses poucos? Aqueles que toleram as tribulações, que suportam as tentações, que não desfalecem diante destes trabalhos, e que não são dos que recebem a palavra com alegria e quando vem o calor do Sol, o tempo da tribulação murcham; mas dão fruto pela perseverança. (Mt 13, 20. 21. 23; Mc 4, 16. 17. 20; Lc 8, 13-15). Que tenhas a raiz da perseverança, a fim de que ao arder o Sol não te queime, mas dê crescimento.

V. 20: “Contudo, Tu nos esmagaste na região das feras” (20 a). “E nos envolveste em profundas trevas” (20 b). Sombras da morte representam a nossa mortalidade. A verdadeira morte é a condenação em companhia do diabo.

V. 21: “Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus e estendido as mãos para um deus estrangeiro (21).

Vs. 22. 23: “Porventura não teria dado Deus por isso? Pois Ele conhece os segredos do nosso coração” (22). Penetra e percebe. Se penetra os segredos do coração, o que Ele faz ali? “Porventura não teria Deus dado por isso?” (22 a). Sabe para si, percebe para nossa causa. Em verdade, às vezes procura e diz que vem conhecer aquilo que te faz notório. Declara-te sua obra, não o seu conhecimento. Dizemos frequentemente: Que dia alegre! Quando o tempo está firme. Por acaso o dia se alegra? Mas dizemos que está alegre porque nos torna alegres. Assim também que Deus vem a saber quando nos torna cientes. Deus diz a Abraão: “Sei agora que na verdade temes a Deus” (Gn 22, 12). Antes não sabia. De facto, o próprio Abraão é que não se conhecia; a prova é que o fez conhecer. Não raro o homem pensa poder o que não pode, ou julga não poder o que pode. A divina providência o experimenta e pela prova ele se torna ciente. Então se diz que Deus o conheceu, porque o fez conhecer. Por acaso Pedro se conhecia quando disse ao médico: “Mesmo que tenha de morrer contigo…” (Mt 26, 35)? O médico o examinara e sabia o que havia no corpo do doente; este não o sabia. Veio a prova. O médico demonstrou a verdade do diagnóstico, e o doente perdeu a sua presunção. Assim também conhece Deus e examina. Conhece. Como examina. Por tua causa, para que te encontres a ti mesmo, e agradeças Áquele que te fez.

“Pois Ele conhece os segredos do nosso coração” (22 b). Que segredos? “Por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro” (23). Podes assistir à morte de um homem; não sabes, contudo, porque é morto. Deus o sabe. É um segredo. Na verdade, na Igreja Católica não faltou quem sofresse para obter uma glória humana? Se falassem desses homens, o Apóstolo não teria dito: “Ainda que entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita” (1 Cor 13. 3). Sabia ser possível que alguns fizessem por jactância, não por amor. Por conseguinte, isso não é evidente; só Deus vê, nós não o podemos.

“Por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro” (23). O Apóstolo Paulo daí tirou um testemunho para exortar os mártires a não desfalecerem nas tribulações sofridas pelo nome de Cristo.

V. 24: “Desperta, Senhor, porque dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre!” (24). A quem se dirigem essas palavras? E quem fala? O Senhor te responderá: Sei o que estou dizendo; sei que não dorme o guarda de Israel (Sl 120, 4); todavia, os mártires exclamam: “Desperta, Senhor, porque dormes”? (24 a). Ó Senhor Jesus! Foste morto, dormiste na paixão, já ressuscitaste por nossa causa. Sabemos bem que foi por nós que ressuscitaste. Porque motivo ressuscitaste? Os gentios que nos perseguem, te consideram morto, não crêem que ressuscitaste. Levanta-te, portanto, também para eles. Levanta-Te para que entendam que ressuscitaste e fiquem quietos. Enfim, acontece que os mártires ao morrerem assim falam, dormem; e acordam por meio da Sua morte, a Cristo que verdadeiramente morreu, Cristo ressurgiu, de certo modo, entre os gentios, isto é, eles acreditaram na ressurreição. Assim, progressivamente eles foram acreditando, ao se converterem para Cristo.

V. 25: “Porque escondes a tua face”? (25 a). Como se estivesses ausente, esquecido de nós? “E te esqueces da nossa miséria e tribulação?” (25 b).

V. 26: “A nossa alma está prostrada no pó” (26 a). Onde está prostrada? Quer dizer, o pó nos persegue. Perseguem-nos aqueles dos quais disseste: “Mas os ímpios não são assim! São como a palha que o vento leva” (Sl 1, 4). “A nossa alma está prostrada no pó, e o nosso corpo colado à terra” (26). Parece-me que se refere a um castigo excessivamente humilhante: ficar prostrado com o ventre colado ao chão. Quem se prostra até dobrar os joelhos, pode ainda baixar-se mais; quem, porém, se prostra até que o ventre fique aderente ao solo não tem mais como humilhar-se. Se, com razão, dizes a Deus quando amas e ardes de caridade: “A minha alma está unida a ti” (Sl 62, 9); e “Para mim, e felicidade é estar perto de Deus” (Sl 72, 28), de facto, aderes a Deus, quando estás de acordo com Ele. Foi com exactidão que se disse estar o ventre aderente ao solo para figurar os que, não tolerando a perseguição, consentiram no desejo dos malvados; assim eles aderiram à terra.

“Vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres” (Mt 19, 21. 22). Como são doces estas palavras à boca da Igreja! Fizeram-nos os espirituais todos. Ao contrário, se as repetisses a um homem carnal: Pratica isto, facilmente se retirará de ti, entristecido, como fez aquele jovem rico, chamado pelo Senhor.

V. 27: “Levanta-te! Vem em meu auxílio” (27 a). Efectivamente, Ele se levantou e nos socorreu. Pois quando se levantou, isto é, se fez notório às nações, as perseguições cessaram. Mesmo aqueles que estavam aderentes à terra foram libertados, e fazendo penitência, foram restituídos ao Corpo de Cristo, embora fossem fracos, imperfeitos, de maneira a se realizar neles a palavra: “Os teus olhos viram-me e em embrião. Tudo isto estava escrito no teu livro” (Sl 138, 16). Levanta-Te, Senhor, e ajuda-me e salva-nos, pela tua bondade. Isto deu-se gratuitamente, por causa de teu nome, e não por mérito de minha parte. Foste Tu que Te dignaste fazê-lo, sem que eu disso fosse digno. Poderíamos, sem teu auxílio, até mesmo não Te esquecer, não deixar nosso coração voltar atrás, não estender as mãos para um deus estranho? De onde tiraríamos a força se tu não me falasses interiormente, não nos exortasses, nem nos abandonasses?

Por conseguinte, quer sejamos pacientes nas tribulações, quer estejamos alegres na prosperidade, “Salva-nos pela tua bondade!” (27 b), mas não por nossos méritos e sim por causa de teu nome.